http://precisoaprenderlinguasestrangeiras.blogspot.com.br/

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

ANTONIO CARLOS JOBIM

Águas de março É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um caco de vidro, é a vida, é o sol é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol é peroba do campo, é o nó da madeira caingá, candeia, é o Matita Pereira É madeira de vento, tombo da ribanceira é o mistério profundo é o queira ou não queira é o vento ventando, é o fim da ladeira é a viga, é o vão, festa da cumeeira é a chuva chovendo, é conversa ribeira das águas de março, é o fim da canseira é o pé, é o chão, é a marcha estradeira passarinho na mão, pedra de atiradeira Uma ave no céu, uma ave no chão é um regato, é uma fonte é um pedaço de pão é o fundo do poço, é o fim do caminho no rosto o desgosto, é um pouco sozinho É um estrepe, é um prego é uma ponta, é um ponto é um pingo pingando é uma conta, é um conto é um peixe, é um gesto é uma prata brilhando é a luz da manhã, é o tijolo chegando é a lenha, é o dia, é o fim da picada é a garrafa de cana, o estilhaço na estrada é o projeto da casa, é o corpo na cama é o carro enguiçado, é a lama, é a lama é um passo, é uma ponte é um sapo, é uma rã é um resto de mato, na luz da manhã são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é uma cobra, é um pau, é João, é José é um espinho na mão, é um corte no pé são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um passo, é uma ponte é um sapo, é uma rã é um belo horizonte, é uma febre terçã são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho Pau, pedra, fim do caminho resto de toco, pouco sozinho Pau, pedra, fim do caminho, resto de toco, pouco sozinho Tom Jobim Coleção Disco de Bolso: O tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco (1972) Sobre o autor Chega dezembro e com ele vêm o natal, o reveillon, as férias, depois o carnaval... Na verdade, o ano seguinte só se inicia mesmo depois de encerradas as folias populares. Nada melhor que uma boa enxurrada para varrer as cinzas do ano anterior e então começar vida nova. Nada melhor que as refrescantes águas de março, que esfriam nossa cabeça para enfrentar mais um ano de luta... É verdade que, em cidades como São Paulo, com problemas tão graves como os de saneamento básico, essas águas são muitas vezes sinônimo de enchente, caos e até mesmo de morte. Mas isso não é culpa da natureza: cabe à cultura (no caso, aos administradores públicos, urbanistas e engenheiros) proteger os homens. Certamente não eram as chuvas paulistas que Tom Jobim tinha em mente quando compôs "Águas de março". "É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um caco de vidro, é a vida, é o sol é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol é peroba do campo, é o nó da madeira caingá, candeia, é o Matita Pereira..." O que temos aqui? Eu diria que um conjunto de elementos que lembram uma paisagem não urbana propriamente: pau, pedra, toco, a solidão, peroba, nó de madeira etc. São elementos de um contexto mais natural, onde quase não se sente a ação do homem. O "quase" que eu disse vai por conta dos seguintes objetos: caco de vidro, elemento que implica fabrico, tecnologia; candeia, objeto rústico para iluminação, a indicar, no entanto, que esse lugar tomado pelas águas de março não tem luz elétrica; e anzol, que, apesar de artefato humano, tem a ver com uma forma primitiva de relação com a natureza, ou seja, a pesca, favorecida decerto em tempos mais chuvosos, em que os rios ficam cheios. Índices de uma cultura mais ligada à natureza são ainda a referência a caingás, bem como pela referência ao matita pereira. Como vocês podem percerber, estamos a léguas dos centros urbanos, num espaço onde ainda vigoram lendas, personagens folclóricas, populações pré-modernas, como os índios, e onde são enfatizados os ciclos naturais, vida e morte, sol e noite: "é um caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol." A letra de Tom Jobim é basicamente descritiva, repertoriando uma série de elementos que visam construir a atmosfera desencadeada pelas chuvas num ambiente mais rural. Sendo descritiva, não conta com uma progressão dramática, um desfecho. Essa estrutura descritiva é enfatizada pela reiteração intensa do verbo "ser", um verbo que serve, entre outras coisas, para dar atributo, qualidade a algo. Mas talvez esse verbo tenha um sentido algo ambíguo aqui. A letra já se inicia sem mencionar o sujeito a que se liga o verbo. "É pau, é pedra, é o fim do caminho", e assim até o fim, com variação dos predicativos. Imaginamos que o que é pau, o que é pedra "é" as águas de março. Ou seja, "águas de março" significa pau, pedra, peroba do campo e tudo mais. Como dissemos, trata-se de representar a atmosfera úmida de março. Chegamos quase a sentir o cheiro da madeira molhada, a imaginar o corpo se refrescando (é o fim da canseira, como diz a letra). Mas, se é assim, por que o verbo "ser" não está no plural, para concordar com "águas", no plural? Podemos cogitar alguns motivos: convenhamos que repetir "são" a todo o instante ficaria um pouco exaustivo. Seria são pra lá, são pra cá, são acolá. A forma "é" está muito mais na ponta da língua, o que dá bem mais agilidade à música; além disso, o sujeito, "águas de março", é mais lógico do que sintático. Ele figura no título da canção, mas não na letra, pelo menos até quase o fim. "Águas de março" é o pressuposto do texto, mas não está estruturado nele sintaticamente. O título serve aqui para indicar o objeto de que se está falando. Por tudo isso, a concordância no singular é mais do que legítima. Tanto é assim que Tom Jobim, que não era bobo, coloca bonitinho o verbo "ser" no plural quando a expressão "águas de março" vem, no finzinho da canção, literalmente reproduzida no corpo do texto, passando de idéia de fundo a elemento de estrutura sintática, ou seja, passando de sujeito lógico a sujeito sintático: "são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração. " A concordância no plural tem o efeito de um resumo: todos os elementos relacionados nesse texto são, formam as águas de março. Note-se, no entanto, que o verbo no singular retorna: "é a promessa de vida". É como se se quisesse dar mais peso agora à "promessa de vida" do que às águas de março. O que importa mais agora é a promessa de vida. Mas você pode perguntar: isso também não se aplica ao resto da letra? Não poderíamos dizer que a letra quis mais enfatizar os elementos, os aspectos vitais ligados às águas de março, daí ter usado o verbo no singular? É possível. Há em toda a composição de Tom Jobim um apego a elementos variados, há mesmo uma espécie de desejo de fazer o inventário de um mundo já meio fantástico para nós, homens urbanos, para quem saci e índio têm algo em comum: a inexistência, o serem coisas do passado. Esse estilo de inventário acaba como que dando relevo ao detalhe, mas sem prejuízo de dar conta do conjunto. Tudo isso é banhado pelas águas de março, que fecham o verão. Notemos ainda que os elementos ligados à ação do homem vão aumentando ao longo da canção: "É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto ... é o carro enguiçado, é a lama, é a lama." Ora, a palavra "projeto" é bastante ligada ao plano da cultura. A natureza é o lugar do espontâneo, do acaso, que são o oposto do projeto, do cálculo. Já estamos num território não tão primitivo, o que é marcado pelo "carro enguiçado" na lama. Trata-se de um mundo entre a natureza e a cultura. Natural o bastante para que não tenha calçamento e fazer veículos atolarem e culturalmente modificado com a presença de carros e casas. É um mundo intermediário, de lama e de projeto, e onde a chuva cai como uma bênção. O projeto, no entanto, respeita o ciclo natural: só é possível começar de fato a construção da casa ("é o tijolo chegando") quando cessarem as chuvas. Com a terra seca e o outono, então uma nova vida pode lançar as bases. Mas infelizmente nós, paulistas, temos de rezar para que as águas de março não sejam promessa de morte e de desapropriação.