ANALISAR,INTERPRETAR E APLICAR OS RECURSOS EXPRESSIVOS DAS LINGUAGENS,RELACIONANDO TEXTOS COM SEUS CONTEXTOS.
terça-feira, 3 de agosto de 2010
DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
Não pense, contudo, que a única manifestação de diversidade linguística existente nas línguas - no caso, na língua portuguesa - resume-se ao regionalismo. Há outras manifestações dessa diversidade. Quais serão elas?
Leia o texto de Carlos Drummond de Andrade para pensar mais um pouco sobre essa questão:
Antigamente
Antigamente, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca, e não caíam de cavalo magro. Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-Diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de alteia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n'água.
Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com linguiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um "cabrito", não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por Ceca e Meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete de roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram grandessíssemos tratantes.
Havia os que tomaram chá em criança e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: "Farei presente". Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: "Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo"; ao que o Reverendíssimo correspondia: "Para sempre seja louvado". E os eruditos,se alguém espirrava - sinal de defluxo - eram impelidos a exortar: "Dominus tecum". Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramotana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas teteias.
Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O .London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam.
Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
Pelo que você pôde perceber pela leitura do texto, a diversidade linguística também está relacionada a momentos culturais, em que determinados hábitos exigem a utilização de certos termos. Muitos desses termos, com o passar do tempo, podem até mesmo "morrer", ou seja, podem ser abandonados se, por exemplo, o objeto que ele represente deixar de existir no cotidiano das pessoas. No texto lido, podemos identificar alguns casos como esse: carniceiro, carmim, escarradeira. Os novos hábitos e o panorama social não permitem e não necessitam que o carniceiro passe à porta; o carmim foi substituído por produtos de alta tecnologia; a escarradeira passou a ser falta de higiene....
Nesse sentido, podemos dizer que o tão propalado choque de gerações ocorre também nas línguas, nos termos e expressões utilizadas pelas pessoas. Esta situação denomina-se, igualmente, diversidade linguística.
Jargões e gírias
Você poderá pensar, se o tão propalado choque de gerações ocorre também nas línguas, pode-se dizer que os termos empregados por determinada categoria profissional, ou grupo social são exemplos de diversidade linguística?
Certamente! Veja um exemplo do que você acabou de pensar:
"Permissa máxima vênia, veritas dicenda est! É cediço que os réus, aqui presentes, incidiram frontalmente nos termos do que dispõe o art. 121, na forma do 14 do CP; certo de que não poderão isentar-se das devidas penalidades. Não há que se conformar a ordem jurídica, que os querelados saiam impunes do ato horrendo a que deram causa. Agiram, sim, dolosamente! Pelo exposto, requer se digne V. Exa., com fulcro nos dispositivos ora falados, a condenação dos réus."
Este bem poderia ser o teor da acusação que um promotor de justiça faria aos jovens que assassinaram o índio pataxó Galdino, em Brasília, há alguns anos atrás, requerendo a condenação dos réus ...
A preleção acima, se levada a efeito e lida por nós, nos coloca como cidadãos quase que incapazes de entender nossa própria língua, não é mesmo? Se você prestar atenção, ao utilizar uma fala plena de jargões, o advogado constrói um discurso em que o poder fala mais alto.
Além dos jargões, existem ainda as gírias. Essas, você conhece muito bem: nossos alunos as utilizam bastante - e nós também. Afinal, uma língua se dinamiza, se constrói a partir dos termos e construções criadas por seus usuários...
Hoje em dia, as gírias estão cada vez mais circunscritas a grupos específicos. Por exemplo, nas tão badaladas músicas funk, as gírias características de determinado grupo social estão sempre presentes. Você já escutou MV Bill, um dos grandes autores desse tipo de composição musical? Então, ouça a música 5, do CD 1. Lá estará uma dessas suas composições. Preste bem atenção à letra...
Minha condição é sinistra
Não posso dar role, não posso ficar de bobeira na pista
Na vida que eu levo não posso brincar
Eu carrego uma nove e uma HK
Pra minha segurança e tranquilidade do morro
Se pa, se pam, eu sou mais um soldado morto
Ligado na polícia, bolado com os "Alemão"
Disposição cem por cento até o osso
Tem mais um pente
E aí, sobre o que MV Bill está falando mesmo? A língua, não temos dúvidas, é a nossa. Mas o vocabulário e as expressões nos deixam incertos em relação ao que o compositor quis dizer... Vamos ler mais um exemplo, desta vez retirado de uma crônica?
Para encurtar um pouco esta nossa conversa, voltemos nosso pensamento, agora, para o ensino e para a sala de aula.
Muitas vezes, temos alunos oriundos de outros estados do Brasil, cujo sotaque - ou vocabulário utilizado - não é o mesmo que nós utilizamos aqui, no Rio de Janeiro. O que muitos de nós fazemos? Procuramos uma gramática e buscamos ensinar o certo...
Nesse sentido, reflitamos com Possenti (1996):
Se nossas perguntas são sempre sobre o que é certo ou errado, e se nossas respostas a essas perguntas são sempre e apenas baseadas em dicionários e gramáticas, isso pode revelar uma concepção problemática do que seja realmente uma língua, tal como ela existe no mundo real, isto é, na sociedade complexa em que é falada. Os dicionários e as gramáticas são bons lugares para se conhecer aspectos da língua, mas não são os únicos e podem até não ser os melhores...
Para encerrar, mesmo, reflita: será que as gramáticas, obras que cristalizam normas e regras são, realmente, o melhor instrumento para se conhecer a dinâmica e o uso de uma língua?
Rio Grande do Sul
Bem, mas não é só Minas Gerais, neste imenso país-continente, que nos contempla com regionalismos. Em quaisquer municípios e estados brasileiros, eles serão encontrados. Ouça, no CD 1, a música de número 4. Ela se chama Gaudério, foi escrita por Vitor Ramil e João da Cunha Vargas e é tipicamente gaúcha. Vamos lá?
Poncho e laço na garupa
Do pingo quebrei o cacho
Dum zaino negro gordacho
Assim me soltei no pampa
Recém apontando a guampa
Pelito grosso de guacho
Fui pelechando na estrada
Do velho torrão pampeano
Já serrava sobreano
Cruzava de um pago a outro
Quebrando queixo de potro
Sem nunca ter desengano
Fui conhecendo as estâncias
O dono, a marca, o sinal
Churrasco que já tem sal
Guaiaca que tem dinheiro
Cavalo que é caborteiro
E o jujo que me faz mal
Conheço todo o Rio Grande
Qualquer estrada ou atalho
Quando me seco trabalho
Na velha lida campeira
Corro bem uma carreira
Manejo bem o baralho
Na tava sempre fui taura
Nunca achei parada feia
Quando o parceiro cambeia
Distância de nove passo
Quando espicho bem o braço
Num tiro de volta e meia
Num bolicho de campanha
De volta de uma tropeada
Botei ali uma olada
A maior da minha vida:
Dezoito sorte corrida
Quarenta e cinco clavada
E quanto baile acabei
Solito, sem companheiro
Dava um tapa no candeeiro
Um talho no mais afoito
Calçado no trinta e oito
Botava pra fora o gaiteiro
Trancava o pé no portal
Abria a porta da sala
Entre bufido de bala
E a providência divina
Só manotaços de china
Rasgando a franja do pala
Ninguém me toca por diante
Nem tampouco cabresteio
Eu me empaco e me boleio
Não paro nem com sinuelo
E tourito de outro pelo
Não berra no meu rodeio
Não quero morrer de doença
Nem com a vela na mão
Eu quero guasquear no chão
Com um balaço bem na testa
E que seja em dia de festa
De carreira ou marcação
E peço, quando eu morrer
Não me por em cemitério
Existe muito mistério
Prefiro um lugar deserto
E que o zaino paste perto
Cuidando os restos gaudério
E vou levar quando eu for
No caixão algum troféu:
Chilena, adaga, chapéu
Meu tirador e o laço
O pala eu quero no braço
Pra gauderiar lá no céu!
(Poema de João da Cunha Vargas musicado por Vitor Ramil que o gravou no disco Ramilonga - a estética do frio)
E agora? De que trata a letra da música que você escutou? Dá para entendermos tudo o que o autor dessa letra quis nos dizer? Confesso que, até agora, estou à procura de um autêntico gaúcho que me explique alguns dos termos e expressões utilizados naquela melodia como, por exemplo...
Poncho e laço na garupa
Do pingo quebrei o cacho
Dum zaino negro gordacho
Assim me soltei no pampa
Recém apontando a guampa
Pelito grosso de guacho
Fui pelechando na estrada
Do velho torrão pampeano
Já serrava sobreano
Cruzava de um pago a outro
Quebrando queixo de potro
Sem nunca ter desengano
Ou, ainda,
Entre bufido de bala
E a providência divina
Só manotaços de china
Rasgando a franja do pala
Ninguém me toca por diante
Nem tampouco cabresteio
Eu me empaco e me boleio
Não paro nem com sinuelo
E tourito de outro pelo
Percebemos, com muito custo, que talvez haja uma rixa, uma quase-briga entre o narrador e outra pessoa. Mas, como essa briga acontece ? Como o narrador se considera "o bamba"???
A dificuldade que sentimos ao tentar interpretar os dois pequenos trechos nos comprovam que cada região do país, provavelmente cada Estado - ou quem sabe, cada município ou cidade, como já dissemos - possui seu vocabulário específico, seus termos e expressões de trato cotidiano, que não se confundem com os de outras cidades, municípios, Estados ou regiões, embora queiram dizer, por vezes, a mesma coisa. É esta diversidade linguística, caracterizada pelo regionalismo, que nos faz ser unos e múltiplos, ao mesmo tempo.
As letras de música são criadas especialmente para aquele fim. Podem ser lindas como um poema, mas dependem da melodia e do ritmo para viver integralmente.
Depois de ouvir a música, vamos conhecer a letra de Construção, de Chico Buarque, e pensar nas possibilidades educativas que ela traz.
Construção
(Chico Buarque, 1971)
Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfegoBr />
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado
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