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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Upa, neguinho Upa, neguinho na estrada upa, pra lá e pra cá virge, que coisa mais linda! upa, neguinho começando a andá começando a andá, começando a andá e já começa a apanhá cresce, neguinho e me abraça cresce e me ensina a cantá eu vim de tanta desgraça mas muito te posso ensiná capoeira, posso ensiná ziquizira, posso tirá valentia, posso emprestá mas liberdade só posso esperá patá tá tri tri tri tri trá trá trá Gianfrancesco Guarnieri e Edu Lobo Álbum: Arena Conta Zumbi (1965) Sobre os autores Vocês devem ter notado que quase todos os versos da letra fazem rima em "á": cá, andá, apanhá, cantá e por aí vai. Mas, você poderia se perguntar: está certo escrever "apanhá"? O r não cai apenas quando o verbo se liga aos pronomes o e a, que assumem as formas lo e la? Sim, é verdade. Rigorosamente, no padrão culto da língua, apenas nesse caso o verbo "apanhar" assumiria a forma "apanhá". A composição não pretende ser escrita na linguagem culta, mas numa espécie de dialeto que é a língua dos africanos trazidos para o Brasil e de seus descendentes. É a língua dos escravos, a mesma que nos deixou o delicioso sinhô no lugar de senhor, por exemplo. É esse idioma que vamos encontrar na literatura que tematizou o negro e as perversidades a que foi submetido pelo branco dominador. Assim, no famoso poema "Essa negra Fulô" (1928) e nos "Poemas Negros" (1947), ambos de Jorge de Lima, vamos encontrar uma dicção, uma fisionomia parecida com a que vemos em "Upa,neguinho", que faz parte da peça Arena conta Zumbi. A canção é aparentemente jocosa, leve, cheia de graça, como é essa língua meio portuguesa, meio africana. A interjeição "upa", tantas vezes repetida ao longo da música, dá ainda um ar brincalhão e mais graciosidade a essa fala de alguém que vê uma criança negra ensaiando os primeiros passos e as primeiras decepções. Repare que é de longa data o trabalho infantil neste país, onde o crioulinho sai do ventre da mãe direto para o mundo do trabalho forçado. Mas o eu da composição, que, como vamos saber mais ao fim, é um negro adulto, que veio de tanta desgraça, de alguma maneira se alegra e se reconforta na visão do neguinho. Só o pequeno escravo pode fazer com que seu sofrimento tão grande desapareça por um momento. Sabe-se que, quando se é intensamente explorado e humilhado, a auto-estima é a primeira coisa que se perde. O explorado, de tanto ser explorado, acaba pensando como o explorador, ou seja, acaba achando que ele próprio não vale grande coisa e que merece o desprezo dos outros. O explorador faz que o explorado, de tanto ser explorado, pense que ele, explorado, só merece ser explorado. A coisa é redundante mesmo. É um círculo vicioso. Mas, nessa canção, o escravo adulto adquire um grãozinho de auto-estima ao ver o negrinho. Ele se dá conta de que pode ensinar algo a ele, que possui um saber que vale a pena ser transmitido: capoeira, ziquizira, valentia... O escravo adulto conhece formas de luta e brincadeira (a capoeira), conhece artes curandeiras (ele pode tirá a ziquizira) e tem na valentia sua forma de dignidade. Mas essa dignidade é ao mesmo tempo limitada. Ele não tem o principal: a liberdade, que é o que faz um homem ser homem. Esse escravo tão humano e sensível, sabedor de tantas artes, é tratado de forma infra-humana: liberdade só posso esperá... Sem liberdade, não há auto-estima que se sustente. A auto-estima do negro adulto é capenga como os passos do negrinho, cujo desenvolvimento, muito paradoxalmente, se acompanha de mutilação: ele começa a andar, a se desenvolver, e já começa a apanhar. Mas ainda assim existe graça, poesia, em seus passos desajeitados, de criança que mal consegue se equilibrar ainda: essa é a graça da música, que trata no entanto de assunto tão grave, tão espinhoso como a escravidão, a opressão social. Afinal, era preciso sobreviver de alguma maneira, era preciso fechar um pouco os olhos e cantar em meio a tanta desgraça.