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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

ANÁLISE DE OBRAS DE VÁRIOS AUTORES:As novas caras de Fernando Pessoa

Edição 185 - Janeiro 2013

As novas caras de Fernando Pessoa

Um grupo de jovens pesquisadores europeus e latino-americanos lança em Portugal vários inéditos do autor lisboeta. São poemas, contos, argumentos para cinema e ensaios sobre política
por Ricardo Viel

“I know not what tomorrow will bring”, escreveu Fernando Pessoa no dia 29 de novembro de 1935, horas antes de sucumbir a uma complicação hepática, provavelmente causada pelo excessivo consumo de álcool. Aos 47 anos e com apenas um livro publicado em português (Mensagem), o poeta fazia constar em seu derradeiro manuscrito, na cama de um hospital lisboeta, a dúvida inquietante: não sabia o que o amanhã traria.
Não sabia, mas desconfiava que o futuro lhe reservaria o reconhecimento não alcançado em vida. Já em 1912, numa séria de ensaios sobre poesia, Pessoa previu a iminente aparição de um “supra Camões”, alguém que “descolaria para segundo plano” a figura do autor de Os Lusíadas. Está claro que falava de si. E foi pensando nessa posteridade que guardou com tanto cuidado os milhares de papéis que escritos ao longo de quatro décadas. Deixou duas arcas que continham cerca de 30 mil folhas, na grande maioria, inéditas. Havia ainda textos publicados em revistas e jornais, além de cartas e outros itens particulares.
“Pessoa disse, certa vez, que o reconhecimento seria a memória futura. Claramente tinha a noção de sua genialidade”, aponta Vasco Silva, diretor do selo Babel, que nos últimos anos vem trazendo à tona muito texto desconhecido do autor. “Cerca de 30% do espólio segue inédito. Por diversas vezes, se pensou que o essencial da obra de Pessoa estivesse publicado, mas não está. Há material para décadas. Ele foi um trabalhador infatigável, e tratá-lo como poeta não é de todo correto. Afinal, escreveu até mais em prosa do que em poesia”, diz o publisher que, com orgulho, se apresenta como o editor que mais publicou Pessoa.


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*O poeta no colo da mãe, em 1888, e aos 7 anos, em 1895. Ele era trilíngue - dominava português, o inglês e o francês
 
No início dos anos 40, a Ática, dona do selo coordenado por Vasco Silva, foi a primeira casa a lançar versos do literato após sua morte. Ao longo das décadas seguintes, deu a conhecer a grandeza de heterônimos como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares. Deste último editou, em 1982, o Livro do Desassossego. A obra, de prosa, demonstrou que, ao contrário do que se dizia, ainda havia muita riqueza de Pessoa a ser descoberta. Trata-se da mesma sensação que se tem hoje com as recentes publicações de inéditos. São poemas, ensaios sobre tradições portuguesas e sobre política, contos, correspondências amorosas e até argumentos de filmes. Um tesouro que as editoras brasileiras ainda não adquiriram.
 
 
Grafia incompreensível

Causa estranheza que, 77 anos depois da morte de um dos maiores poetas do século 20, continue existindo tanto material desconhecido. Uma das explicações possíveis é que a pesquisa dos documentos legados por Pessoa nunca foi fácil. Primeiro, porque os papéis estiveram espalhados durante décadas e quase inacessíveis à consulta. Depois, porque Pessoa anotava em qualquer lugar – muitas vezes uma mesma página trazia extratos de textos diferentes –, e compreender sua grafia, principalmente a do final da vida, é tarefa quase de detetive. Das cerca de 30 mil folhas encontradas nas duas arcas, a grande maioria se constitui de manuscritos, embora haja alguns textos datilografados.
Não bastasse, o autor deixou centenas de projetos inconclusos, o que também dificulta a tarefa de ordenar o material. Escreveu sobre assuntos absolutamente diversos (filosofia, astrologia, ocultismo) e em três idiomas, já que nasceu em Lisboa, mas aos seis anos se mudou com a família para a África do Sul, onde foi alfabetizado em inglês. O francês, aprendeu quando adulto.
Hoje, quase todo o seu espólio está digitalizado e já não é necessário pagar direitos autorais de nenhuma obra aos herdeiros. Daí terem surgido recentemente tantas publicações com inéditos de Pessoa. Um dos responsáveis, e talvez o maior deles, por tal advento é Jerônimo Pizarro, colombiano de 35 anos que dedicou os últimos dez a estudar o legado do autor, com a ajuda de bolsas científicas. Em suas pesquisas nos papéis deixados pelo poeta, acabou por conhecer outros investigadores, jovens como ele – e, na maioria, estrangeiros –, que vêm desenvolvendo estudos semelhantes. Graças ao suporte do selo Babel, o colombiano passou a coordenar o grupo e as publicações dos novos livros, sejam os que trazem textos do próprio Pessoa, sejam os que discorrem sobre ele e seus heterônimos. Por sinal, foi devido a Alberto Caeiro que Pizarro travou os primeiros contatos com o escritor português, ainda na Colômbia, há 15 anos. “Lembro-me até hoje. Estava no gramado da universidade e tinha nas mãos um livro de poesia do Caeiro.”
“O Jerônimo revelou-se essencial para juntar pessoas que são completamente diferentes e que, se não fosse por ele, provavelmente nunca trabalhariam juntas”, diz Patricio Ferrari, doutor em linguística de 37 anos. O argentino editou em 2010, ao lado de Pizarro, o livro Provérbios Portugueses, compilação inédita de 300 máximas que Pessoa reuniu e traduziu para o inglês entre 1913 e 1914.




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*À esquerda, o autor com 27 anos. À direita, em outro retrato famoso, caminhando por Lisboa

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Em fevereiro de 2003, após uma longa viagem à Índia, Ferrari – que morou por uma década nos Estados Unidos –fazia mestrado em literatura comparada na França quando, aconselhado pelo irmão, leu o poema Tabacaria, de Álvaro de Campos. Sentiu uma empatia tão profunda que, meses depois, desembarcou em Lisboa para continuar seus estudos, agora tendo como foco a poesia trilíngue de Pessoa. Caminho parecido seguiu o filósofo Antonio Cardiello, também de 37 anos. Em 1999, por recomendação de um amigo, o italiano de Padova leu o Livro do Desassossego. “Comecei a folhear uma versão traduzida numa livraria. Como não sabia quem era Pessoa, achei que estivesse vivo. Foi um amor cego. Não conseguia entender como um autor desconhecido internacionalmente podia ter escrito prosa tão linda e tão fecunda em termos filosóficos.”
À semelhança dos outros dois pesquisadores, Cardiello chegou a Lisboa atraído pelo poeta e sem falar português. “Em 2006, conheci o Pizarro, que me levou à Biblioteca Nacional, onde está guardado o espólio. Até então, me parecia que Pessoa não passava de uma invenção, talvez do [Jorge Luis] Borges. Só tive certeza de que realmente existiu quando vi aquele material, com a caligrafia dele.” Cardiello e o colombiano editaram, em 2012, a antologia Prosa de Álvaro de Campos e desnudaram uma faceta inesperada do heterônimo que se dizia engenheiro.
 
Companheirismo

Além da equipe ligada a Pizarro e do selo Babel, há outros investigadores descobrindo novas caras do poeta e outras editoras publicando materiais inéditos. Em 2012, a Assírio Alvim, por exemplo, lançou uma coletânea de contos de Pessoa e um livro com as cartas de amor trocadas entre ele e a namorada Ofélia. Não é casual, aliás, que sejam pesquisadores jovens e em sua maioria estrangeiros que estejam na vanguarda dos estudos pessoanos. Como se viu, para fazer um trabalho de qualidade a respeito do literato, é necessário debruçar-se sobre os milhares de papéis deixados por ele, tarefa que requer tempo e disciplina. Boa parte dos estrangeiros que chegou a Lisboa na década passada com o intuito de analisar o escritor tinha bolsas acadêmicas e podia se dedicar exclusivamente à pesquisa. “Curiosamente, não há vaidade entre nós. Pelo contrário, existe muito companheirismo. Um ajuda o outro, até mesmo a decifrar a caligrafia de Pessoa”, garante o espanhol Pablo Javier Pérez López, 29 anos, que descobriu “o poeta filósofo” numa visita a Portugal. Ele publicou recentemente na Espanha um livro sobre a filosofia na obra do lisboeta (Poesía, Ontología y Tragedia en Fernando Pessoa).
Essa união de cérebros num projeto coletivo era algo até então raro nos estudos do autor português. Havia muita competição e desconfiança entre os investigadores, e cada um guardava suas descobertas como se fosse um segredo. “Quando se diz que cada pessoano quer o poeta só para si é verdade. Mas nossa geração procura ficar fora disso”, afirma Cardiello. Sob a ótica do italiano, a chave para estudar e editar Pessoa é ser humilde e não buscar sentenças conclusivas. “Todos nós corremos o risco de assumir uma posição definitiva em relação à obra e aos pensamentos dele, o que seria uma tolice. Pessoa nunca foi definitivo.” “Sê plural como o universo!”, escreveu certa vez o autor, dando a pista de que não se deve buscar a unidade em sua obra e, sim, tratar de entendê-la como uma colcha de fragmentos.
Não à toa, o trabalho de editar o literato sempre se mostrou complexo e bastante subjetivo. Maior prova disso são as várias versões do Livro do Desassossego, diferentes inclusive em número de páginas. Às vezes, nem mesmo Pessoa sabia como classificar as próprias criações. Nos congressos sobre ele, os pesquisadores frequentemente citam um documento do espólio. Trata-se de um manuscrito em que o poeta anotou: “Álvaro de Campos ou Livro do Desassossego ou outra coisa qualquer”. Editar é, de certo modo, também criar um novo Pessoa.
 
Um dia especial

O fato de jovens estrangeiros estarem atualmente na vanguarda dos estudos sobre o escritor causa certa tensão entre acadêmicos e especialistas portugueses. Uma das críticas, quase sempre feita na surdina, é de que os novos pesquisadores inflam desnecessariamente a bibliografia do autor ao publicar textos menores. Mas também há espaço para elogios: “O trabalho desse grupo é muito importante por abrir novas possibilidades de investigação acerca de Pessoa”, avalia Manuel Portela, professor da Universidade de Coimbra e coordenador de um projeto de reedição virtual e coletiva do Livro do Desassossego.









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*Das esq. para a dir., Patricio Ferrari, Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Os três são responsavéis por muitas das novas descobertas sobre Fernando Pessoa
 
Entre as empreitadas que o grupo de Pizarro levou adiante, destacam-se a digitalização e a catalogação da biblioteca pessoal do poeta, que se encontra na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A tarefa é importante por dois motivos. Primeiro, porque, ao analisar minuciosamente a biblioteca, consegue-se decifrar o que o literato estava lendo enquanto escrevia determinados textos. Ou melhor: pode-se avaliar a influência de certos autores em sua obra. O segundo motivo deriva da peculiaridade de o escritor fazer muitas notas marginais em seus livros. Por isso, ao folheá-los, existe a chance de descobrir preciosidades. Foi o que aconteceu numa tarde de 2008, quando Cardiello se encontrava sozinho na Casa Fernando Pessoa, escarafunchando o livro Pioneer Humanists, de John M. Robertson. Na última página, se deparou com umas anotações. “Gosto do céu porque não creio que elle seja infinito/ Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?”, diziam as primeiras linhas de uma poesia sem título de Alberto Caeiro. “Vi que se tratava de um poema completo, acabado, mas imaginei que o Jerônimo já o conhecia. Quando ele voltou do almoço e leu os versos, percebemos que estávamos diante de algo inédito. Foi um dia muito especial”, recorda o italiano.
Depois de anos em Portugal, a legião estrangeira de pesquisadores começa se separar. Pérez Lopez regressou à Espanha. Pizarro voltou a Bogotá, onde é professor catedrático de literatura. Ferrari obteve uma bolsa de pós-doutorado e passará seu tempo entre Lisboa, Rhode Island e Estocolmo. Já Cardiello sonha em ir para o Brasil. “A situação na Europa está muito difícil. Aqui não acontece mais nada. O único país que pode seguir os passos de Portugal na tarefa de divulgar Fernando Pessoa é o Brasil.” O grupo se distancia geograficamente, mas tem claro que sua missão não terminou. “Ainda desconhecemos muito do que o Pessoa conhecia”, resume Pérez Lopez.


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Ricardo Viel é jornalista.