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GRANDES AUTORES DA MÚSICA BRASILEIRA:“GRANDES AUTORES DA MÚSICA BRASILEIRA:“:Antonio Carlos Jobim Sabiá”.“Pra não dizer que não falei das flores” . “Caminhan­do.Disparada,cálice.AGENOR DE OLVEIRA-O CARTOLA O mundo é um moinho.Apesar De Você Chico Buarque.Roda-viva; ANTONIO CARLOS JOBIM,Águas de março ;MÚSICA: ALEGRIA ,ALEGRIA S abiá”.“Pra não dizer que não falei das flores” . “Caminhan­do.Disparada,cálice.AGENOR DE OLVEIRA-O CARTOLA O mundo é um moinho.Apesar De Você Chico Buarque.Roda-viva; ANTONIO CARLOS JOBIM,Águas de março ;MÚSICA: ALEGRIA ,ALEGRIA

  GRANDES CANTORES DA MUSICA BRASILEIRA

Antonio Carlos Jobim

  

Antonio Carlos Jobim

 

Antonio Carlos Jobim

                                                               ******

 

Rio de Janeiro: a montanha, o sol, o mar [1954]

Hino ao sol Descendo o morro O samba de amanhã Noites do Rio Arpoador A montanha o sol o mar

Orfeu da Conceição [1956]

Overture Monólogo de Orfeu Um nome de mulher Se todos fossem iguais a você Mulher, sempre mulher Eu e o meu amor Lamento no morro

O Pequeno Príncipe [1957]

O pequeno príncipe (parte 1) O pequeno príncipe (parte 2)

Canção do amor demais [1958]

Chega de saudade As praias desertas Caminho de pedra Luciana Janelas abertas Eu não existo sem você Outra vez Estrada branca Vida bela Modinha Canção do amor demais

Chega de Saudade [1959]

Chega de Saudade Brigas, Nunca Mais Desafinado

Por toda minha vida [1959]

Por toda minha vida Estrada branca Soneto da separação Canção do amor demais As praias desertas Eu sei que vou te amar Canta, Canta mais Modinha Cai a tarde Sem você Eu não existo sem você

Amor de gente moça [1959]

Dindi De você, eu gosto Discussão Sem você Fotografia Janelas abertas Demais O que tinha de ser A felicidade Canta, canta mais Só em teus braços Esquecendo você

O amor, o sorriso e a flor [1960]

Samba de uma nota só Só em teus braços Meditação Corcovado Discussão Outra vez

Brasilia, Sinfonia da Alvorada [1961]

O Planalto deserto Texto O Planalto deserto O homem Texto O Homem A chegada dos candangos Texto o Trabalho e a construção O trabalho e a construção Coral

João Gilberto [1961]

O amor em paz Trenzinho (Trem de ferro) Insensatez Este seu olhar

The composer of Desafinado, plays [1963]

Garota de Ipanema O amor em paz Água de beber Vivo sonhando O morro não tem vez Insensatez Samba de uma nota só Meditação Só danço samba Chega de saudade Desafinado Corcovado

GETZ / GILBERTO [1963]

Garota de Ipanema Desafinado Corcovado Só danço samba O grande amor Vivo sonhando

Antonio Carlos Jobim [1963]

Garota de Ipanema Amor em paz Água de beber Vivo sonhando O morro não tem vez Insensatez Corcovado Samba de uma nota só Meditação Só danço samba Chega de saudade Desafinado

Caymmi visita Tom [1964]

Só tinha de ser com você Inútil paisagem Sem você

The wonderful world of Antonio Carlos Jobim [1964]

Ela é carioca Água de beber Surfboard Inútil paisagem Só tinha de ser com você A felicidade Bonita O morro não tem vez Valsa do Porto das Caixas Samba do avião Por toda a minha vida Dindi

Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim [1967]

Garota de Ipanema (The girl from Ipanema) Dindi Corcovado (Quiet nights of quiet stars) Meditação (Meditation) Inútil paisagem (If you never come to me) Insensatez (How insensitive) O amor em paz (Once I loved)

Wave [1967]

Wave The red blouse Olha pro céu (Look to the sky) Batidinha Triste Mojave Diálogo Lamento no morro Antigua Capitão Bacardi

A certain mr. Jobim [1967]

Bonita Se todos fossem iguais a você Desafinado (Off-key) Fotografia Surfboard Outra vez (Once Again) Esperança perdida (I was just one more for you) Estrada do sol Por causa de você (Don't ever go away) Retrato em branco e preto (Zingaro)

Tide [1970]

Garota de Ipanema Tema Jazz Sue Ann Remember Tide Takatanga Caribe Rockanália

Stone Flower [1970]

Tereza meu amor Children's games Choro Aquarela do Brasil (Brazil) Stone Flower Amparo (Olha Maria) Andorinha God and the devil in the land of the sun Sabiá

Sinatra & Company [1971]

Água de beber (Drinking Water) Se todos fossem iguais a você (Someone to Light up My Life) Triste Por causa de você (Don't Ever Go Away) Estrada branca (This happy madness) Wave Samba de uma nota só (One Note Samba)

O Tom de Antonio Carlos Jobim e o Tal de João Bosco [1972]

Águas de março

Matita Perê [1973]

Águas de março Ana Luiza Matita Perê Tempo do mar Crônica da casa assassinada Rancho nas nuvens Nuvens douradas Águas de março (Waters of march)

Elis & Tom [1974]

Águas de março Pois é Só tinha de ser com você Modinha Triste Corcovado O que tinha de ser Retrato em branco e preto Brigas, nunca mais Por toda a minha vida Fotografia Soneto de separação Chovendo na roseira Inútil paisagem

Urubu [1975]

Bôto Lígia Correnteza Angela Saudade do Brasil Arquitetura de morar O homem

Miúcha & Antonio Carlos Jobim [1977]

Samba do avião É preciso dizer adeus

Tom Vinicius Toquinho Miúcha [1977]

Corcovado Wave

Sinatra – Jobim Sessions [1979]

Corcovado (Quiet nights of quiet stars) Inútil paisagem (If you never come to me) Garota de ipanema (The girl from ipanema) Meditação (Meditation) O amor em paz (Once I loved) Insensatez (How insensitive) Samba de uma nota só (one note samba) Por causa de você (Don't ever go away) Wave Bonita Se todos fossem iguais a você (Someone to light up my life) Água de beber (Drinking water) Sabiá (Song of the sabia) Estrada Branca (This happy madness) Triste Concentrate on you Manhã de carnaval (A day in the life of a fool)

Miúcha e Tom Jobim [1979]

Turma do funil Aula de matemática Falando de amor Dinheiro em penca

Terra Brasilis [1980]

Vivo sonhando Canta, canta mais Olha Maria Samba de uma nota só Dindi Corcovado Marina del Rey Desafinado Você vai ver Estrada do sol Garota de Ipanema Chovendo na roseira Triste Wave Se todos fossem iguais a você Falando de amor Two kites Modinha Sabiá Estrada branca

Edu & Tom - Tom & Edu [1981]

Ai quem me dera Chovendo na roseira Angela Luiza É preciso dizer adeus

Gabriela [1983]

Chegada dos retirantes Tema de amor de Gabriela Pulando carniça Pensando na vida Casório Origens Ataque dos jagunços Caminho da mata Ilhéus Tema de amor de Gabriela (versão completa)

Para viver um grande amor [1984]

A violeira Imagina Meninos, eu vi

O tempo e o vento [1985]

Introdução O Tempo e o Vento (Passarim) Chanson Pour Michelle Rodrigo Meu Capitão Um Certo Capitão Rodrigo Minuano Bangzália Senhora Dona Bibiana Querência – Boi Barroso

Passarim [1987]

Passarim Bebel Borzeguim Anos dourados (Looks like december) Chansong Luiza Tema de amor de Gabriela Passarim (inglês) Anos dourados

Rio Revisited [1987]

Águas de março Samba de uma nota só Desafinado Água de beber Dindi Wave Chega de saudade Two kites Sabiá Samba do avião Corcovado

Tom Jobim inédito [1987]

Wave Chega de saudade Sabiá Samba do avião Garota de Ipanema Retrato em branco e preto Modinha (Seresta n° 5) Modinha Canta, canta mais Eu não existo sem você Por causa de você Sucedeu assim Imagina Eu sei que vou te amar Canção do amor demais Falando de amor Inútil paisagem Derradeira primavera Canção em modo menor Estrada do sol Aguas de março Samba de uma nota só Desafinado A felicidade

Tom canta Vinicius [1990]

Soneto da separação Insensatez Eu não existo sem você Derradeira primavera Modinha Eu sei que vou te amar A felicidade Ela é carioca Garota de Ipanema

No Tom da Mangueira [1991]

Piano na Mangueira Fala Mangueira - Mangueira

Antonio Brasileiro [1994]

Só danço samba Piano na Mangueira Insensatez (How insensitive) Querida Surfboard Samba de Maria Luiza Forever Green Pato preto Meu amigo Radamés Radamés y Pelé Chora coração Trem de ferro

Antonio Carlos Jobim : composer [1995]

Ela é carioca (She's a carioca) Água de beber Surfboard Inútil paisagem (Useless landscape) Só tinha de ser com você A felicidade Bonita O morro não tem vez Valsa do Porto das Caixas Samba do avião Por toda a minha vida Dindi Eu preciso de você (Hurry up and love me) Se todos fossem iguais a você Desafinado (Off-key) Fotografia (Photograph) Outra vez Esperança perdida (I was just one more for you) Estrada do sol Por causa de você (Don't ever go away) Retrato em branco e preto (Zingaro) Esperança perdida Fotografia Por causa de você Desafinado

Minha alma canta [1995]

Janelas Abertas Chega de saudade Sem Você Por toda minha vida É preciso dizer adeus

Antonio Carlos Jobim – The man from Ipanema [1995]

Passarim Só danço samba Águas de março Amor em paz Lamento no morro Luiza Chovendo na roseira Anos dourados O grande amor Água de beber Modinha Borzeguim Soneto da separação Gabriela Retrato em branco e preto Dindi Inútil paisagem Fotografia (Photograph) Chansong Meditação (Meditation) O que tinha de ser O morro não tem vez Bonita Wave Tide Chega de saudade Sue ann Samba de uma nota só Mojave Tema jazz Triste Captain Bacardi Desafinado Garota de Ipanema (The girl from Ipanema) Corcovado Insensatez Vivo sonhando

Meus primeiros passos e compassos [1997]

Incerteza Pensando em você Faz uma semana Solidão Outra vez Tereza da praia Sinfonia do Rio de Janeiro O que vai ser de mim Se é por falta de adeus Engano Vem viver ao meu lado A chuva caiu Teu castigo Samba não é brinquedo Foi a noite Sonho desfeito Pé grande Só saudade Eu e o meu amor Mulher, sempre mulher Lamento no morro Se todos fossem iguais a você Luar e batucada

Raros compassos 1 [2000]

Se todos fossem iguais a você Maria da graça A chuva caiu Água de beber Eu sei que vou te amar Insensatez Esquecendo você Corcovado Coffee delight Por causa de você Só tinha de ser com você Mágoa Isto eu não faço não Brigas, Nunca Mais Chega de saudade Flor do mato O que tinha de ser Canção da eterna despedida O nosso amor Frevo de Orfeu Perdido nos teus olhos Estrada do sol A felicidade É preciso dizer adeus

Raros compassos 2 [2000]

Por toda a minha vida Meditação Para não sofrer Demais Vivo Sonhando Frase Perdida Não devo sonhar A felicidade Latin manhattan Insensatez Janelas abertas Esquecendo você Só danço samba Brigas, Nunca Mais Chega de saudade Foi a noite Na hora do adeus Por causa de você Domingo sincopado O grande amor Sucedeu assim Eu não existo sem você Acho que sim Se todos fossem iguais a você

Raros compassos 3 [2000]

Este seu olhar Chega de saudade Eu não existo sem você Para não sofrer Amor sem adeus Só danço samba Inútil paisagem Eu sei que vou te amar Moonlight daiquiri Oficina A felicidade Sem você Esquecendo você Garoto Se todos fossem iguais a você Descendo o morro O que tinha de ser Sucedeu assim O nosso amor Só em teus braços Meditação Foi a noite Samba não é brinquedo Por causa de você Derradeira Primavera

Jobim Sinfônico [2003]

O planalto deserto O homem A chegada dos candangos O trabalho e a construção Prelúdio Overture Macumba Modinha Se todos fossem iguais a você A felicidade Lenda Imagina Saudade do Brasil Matita Perê Canta, canta mais Trem para Cordisburgo Chora coração Milagre e palhaços O jardim abandonado Bangzália Meu amigo Radamés Gabriela Garota de Ipanema

Antonio Carlos Jobim em Minas [2004]

Desafinado Samba de uma nota só Por causa de você Estrada do sol Se todos fossem iguais a você Água de beber Eu não existo sem você Eu sei que vou te amar Modinha Chega de saudade Dindi Eu preciso de você Retrato em branco e preto Corcovado Ligia Falando de amor Águas de março Garota de Ipanema
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Águas de março

É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho
é um caco de vidro, é a vida, é o sol
é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
é peroba do campo, é o nó da madeira
caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
é o mistério profundo
é o queira ou não queira
é o vento ventando, é o fim da ladeira
é a viga, é o vão, festa da cumeeira
é a chuva chovendo, é conversa ribeira
das águas de março, é o fim da canseira
é o pé, é o chão, é a marcha estradeira
passarinho na mão, pedra de atiradeira

Uma ave no céu, uma ave no chão
é um regato, é uma fonte
é um pedaço de pão
é o fundo do poço, é o fim do caminho
no rosto o desgosto, é um pouco sozinho

É um estrepe, é um prego
é uma ponta, é um ponto
é um pingo pingando
é uma conta, é um conto
é um peixe, é um gesto
é uma prata brilhando
é a luz da manhã, é o tijolo chegando
é a lenha, é o dia, é o fim da picada
é a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
é o projeto da casa, é o corpo na cama
é o carro enguiçado, é a lama, é a lama
é um passo, é uma ponte
é um sapo, é uma rã
é um resto de mato, na luz da manhã
são as águas de março fechando o verão
é a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho
é uma cobra, é um pau, é João, é José
é um espinho na mão, é um corte no pé
são as águas de março fechando o verão
é a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho
é um passo, é uma ponte
é um sapo, é uma rã
é um belo horizonte, é uma febre terçã
são as águas de março fechando o verão
é a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho

É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho

Pau, pedra, fim do caminho
resto de toco, pouco sozinho

Pau, pedra, fim do caminho,
resto de toco, pouco sozinho

   

Tom Jobim
Coleção
Disco de Bolso:
O tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco
(1972)
Sobre o autor



Chega dezembro e com ele vêm o natal, o reveillon, as férias, depois o carnaval... Na verdade, o ano seguinte só se inicia mesmo depois de encerradas as folias populares. Nada melhor que uma boa enxurrada para varrer as cinzas do ano anterior e então começar vida nova. Nada melhor que as refrescantes águas de março, que esfriam nossa cabeça para enfrentar mais um ano de luta... É verdade que, em cidades como São Paulo, com problemas tão graves como os de saneamento básico, essas águas são muitas vezes sinônimo de enchente, caos e até mesmo de morte. Mas isso não é culpa da natureza: cabe à cultura (no caso, aos administradores públicos, urbanistas e engenheiros) proteger os homens.
Certamente não eram as chuvas paulistas que Tom Jobim tinha em mente quando compôs "Águas de março".

"É pau, é pedra, é o fim do caminho
é um resto de toco, é um pouco sozinho
é um caco de vidro, é a vida, é o sol
é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
é peroba do campo, é o nó da madeira
caingá, candeia, é o Matita Pereira..."


O que temos aqui? Eu diria que um conjunto de elementos que lembram uma paisagem não urbana propriamente: pau, pedra, toco, a solidão, peroba, nó de madeira etc. São elementos de um contexto mais natural, onde quase não se sente a ação do homem. O "quase" que eu disse vai por conta dos seguintes objetos: caco de vidro, elemento que implica fabrico, tecnologia; candeia, objeto rústico para iluminação, a indicar, no entanto, que esse lugar tomado pelas águas de março não tem luz elétrica; e anzol, que, apesar de artefato humano, tem a ver com uma forma primitiva de relação com a natureza, ou seja, a pesca, favorecida decerto em tempos mais chuvosos, em que os rios ficam cheios. Índices de uma cultura mais ligada à natureza são ainda a referência a caingás, bem como pela referência ao matita pereira. Como vocês podem percerber, estamos a léguas dos centros urbanos, num espaço onde ainda vigoram lendas, personagens folclóricas, populações pré-modernas, como os índios, e onde são enfatizados os ciclos naturais, vida e morte, sol e noite:

"é um caco de vidro, é a vida, é o sol,
é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol."


A letra de Tom Jobim é basicamente descritiva, repertoriando uma série de elementos que visam construir a atmosfera desencadeada pelas chuvas num ambiente mais rural. Sendo descritiva, não conta com uma progressão dramática, um desfecho. Essa estrutura descritiva é enfatizada pela reiteração intensa do verbo "ser", um verbo que serve, entre outras coisas, para dar atributo, qualidade a algo. Mas talvez esse verbo tenha um sentido algo ambíguo aqui. A letra já se inicia sem mencionar o sujeito a que se liga o verbo.

"É pau, é pedra, é o fim do caminho", e assim até o fim, com variação dos predicativos. Imaginamos que o que é pau, o que é pedra "é" as águas de março. Ou seja, "águas de março" significa pau, pedra, peroba do campo e tudo mais. Como dissemos, trata-se de representar a atmosfera úmida de março. Chegamos quase a sentir o cheiro da madeira molhada, a imaginar o corpo se refrescando (é o fim da canseira, como diz a letra). Mas, se é assim, por que o verbo "ser" não está no plural, para concordar com "águas", no plural? Podemos cogitar alguns motivos: convenhamos que repetir "são" a todo o instante ficaria um pouco exaustivo. Seria são pra lá, são pra cá, são acolá. A forma "é" está muito mais na ponta da língua, o que dá bem mais agilidade à música; além disso, o sujeito, "águas de março", é mais lógico do que sintático. Ele figura no título da canção, mas não na letra, pelo menos até quase o fim. "Águas de março" é o pressuposto do texto, mas não está estruturado nele sintaticamente. O título serve aqui para indicar o objeto de que se está falando. Por tudo isso, a concordância no singular é mais do que legítima. Tanto é assim que Tom Jobim, que não era bobo, coloca bonitinho o verbo "ser" no plural quando a expressão "águas de março" vem, no finzinho da canção, literalmente reproduzida no corpo do texto, passando de idéia de fundo a elemento de estrutura sintática, ou seja, passando de sujeito lógico a sujeito sintático:

"são as águas de março fechando o verão
é a promessa de vida no teu coração. "


A concordância no plural tem o efeito de um resumo: todos os elementos relacionados nesse texto são, formam as águas de março. Note-se, no entanto, que o verbo no singular retorna: "é a promessa de vida". É como se se quisesse dar mais peso agora à "promessa de vida" do que às águas de março. O que importa mais agora é a promessa de vida. Mas você pode perguntar: isso também não se aplica ao resto da letra? Não poderíamos dizer que a letra quis mais enfatizar os elementos, os aspectos vitais ligados às águas de março, daí ter usado o verbo no singular? É possível. Há em toda a composição de Tom Jobim um apego a elementos variados, há mesmo uma espécie de desejo de fazer o inventário de um mundo já meio fantástico para nós, homens urbanos, para quem saci e índio têm algo em comum: a inexistência, o serem coisas do passado. Esse estilo de inventário acaba como que dando relevo ao detalhe, mas sem prejuízo de dar conta do conjunto. Tudo isso é banhado pelas águas de março, que fecham o verão. Notemos ainda que os elementos ligados à ação do homem vão aumentando ao longo da canção:

"É um estrepe, é um prego,
é uma conta, é um conto

...
é o carro enguiçado, é a lama, é a lama."


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          CHICO BUARQUE DE HOLANDA
               E O GOLPE MILITAR.





No término da Segunda Guerra Mundial, o gover­no getulista chega ao fim no Brasil. A tradição autoritarista trazida por Vargas dá espaço a um período curto de liberalismo. É nesse momento que nasce Chico Buarque de Holanda1.

Posteriormente, o governo de Juscelino Kubits­chek traz uma política “desenvolvimentista”.

A inauguração de Brasília, em 1960, marco desse governo, traz à tona essa ideologia, que dá origem à produção de novas condições para a criação ar­tística no país. Vemos surgir diversos artistas van­guardistas, como, por exemplo, os cineastas Glauber Rocha e Ruy Guerra, a bossa nova de João Gilberto e a arquitetura inovadora de Oscar Nie­meyer e Lúcio Costa, idealizadores da nova capital brasileira.

Apesar do espaço aberto pelo fim do regime de Getúlio, porém, Chico pouco aproveita esse período, pois, quando desperta, aos 20 anos, para uma vida intelectual e artística conscientes, tem-se em 1964 o golpe militar, que dá início a uma ditadura que dura mais de 20 anos.

       A década de 60 é marcada por efervescência no campo político-social do país. Uma vontade de participar ativamente da política interna é desper­tada em diversas camadas da sociedade.    Os movi­mentos estudantis são intensificados e passam a agir junto ao povo. Podemos tomar como exemplo os Centros Populares de Cultura (CPCs), da União Nacional dos Estudantes (UNE). Destacamos ain­da a mobilização do operariado e dos agricultores, que constituem o movimento sindical em torno da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas. “Tudo isso expressava grande inquietação social, em parte explicada pela situação crítica da economia do país, e que, na esfera política, se refletia em episódios tensos” (bolle, 1980, p. 93).

        Dois momentos marcantes dessa época são, respectivamente, a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e a posse de seu vice-presidente João Goulart, com idéias de reformas sociais e econômicas que deram origem ao golpe de 1964.

            O governo de Goulart é marcado pelo agrava­mento da crise econômica e pela intensa vida política, bem como pelos conflitos sociais e polí­ticos no país. Diante disso, alegando combater a subversão e assegurar a ordem democrática, os militares tomam o poder na noite de 1º de abril de 1964. O que tem tudo para ser mentira, torna-se uma verdade que modificaria radicalmente as es­truturas do país durante os anos seguintes.

        Os efeitos em termos de censura cultural não se fizeram sentir imediatamente. Os estudantes e artistas não são reprimidos imediatamente, e é, aliás, após 1964 que as atividades artísticas, prin­cipalmente no teatro, intensificam-se. Surgem grupos como o Teatro de Arena e o Oficina, acen­tuando um caráter nacionalista na arte.

o movimento musical é intensificado com a chamada Era dos Festivais. As canções de protesto adquirem importância, ocupando o papel de contestadoras da sociedade. Muitos são perse­guidos pela ditadura nessa época. É no governo de Medici, contudo, que essa perseguição torna-se mais presente no cotidiano dos cidadãos. Lançan­do a “política do desaparecimento”, Medici inicia uma verdadeira “caça às bruxas”, prendendo, tor­turando e exilando muitas pessoas. A censura é instaurada no teatro, na TV e no cinema, na músi­ca e até nas universidades. Isso elimina quase que totalmente a possibilidade de germinar uma cultu­ra crítica. Podemos dizer que “o AI-5 foi um golpe dentro do golpe, um golpe de misericórdia na ca­ricatura de democracia. Caímos, aí sim, na clandes­tinidade” (gabeira, 1984, p. 119).

                Diante desses fatos e com o endurecimento cada vez maior da censura, a sociedade vê-se dividida em dois pólos: um defendendo a luta armada e outro, a diplomacia. O primeiro, dizendo ser pos­sível a redemocratização sem o uso das armas, usa o bordão “o povo unido derruba a ditadura”. O segundo toma o caminho oposto e busca exemplo.

em Che Guevara e na “guerrilha urbana”, usando como símbolo uma frase contestatória à primeira, dizendo que “o povo armado derruba a ditadura”. Constantemente essas frases vêm juntas em mani­festações. A verdade é que, mesmo seguindo cami­nhos diferentes, ambas as vertentes são contestadoras do regime, portanto consideradas “subversivas”. Isso faz com que tanto um grupo quanto o outro sofram com as medidas tomadas pelos militares. Uns são mortos, outros exilados, presos, torturados ou, simplesmente, desaparecem.



                                  Todos os acontecimentos acima citados acabam por se refletir no setor cultural. A exemplo do que ocorre entre os “guerrilheiros” e os “diplomatas”, os artistas também se dividem, tomando posições diferenciadas. Especificamente na música vemos bem clara essa divisão. De um lado, tem-se aqueles que buscam um afrontamento direto ao regime, questionando e criticando a realidade da sociedade. De outro, encontram-se os que usam os recursos da linguagem para esconder suas mensagens de modo subliminar nas canções. Os primeiros sendo ovacionados pelo público e duramente reprimidos pela censura, os segundos, muitas vezes, sendo re­primidos por ambas as partes. Nesse contexto, ci­tamos dois grandes compositores, ícones na época e causadores de grande polêmica: o artesão da linguagem (bolle, 1980, p. 101), Chico Buarque de Holanda, e o poeta popular, Geraldo Vandré.

           De um lado vemos um garoto de classe média alta, conhecedor da língua portuguesa a fundo e apreciador das palavras, com fama de bom moço e conhecido por seu lirismo e seus belos olhos verdes. De outro, o cantor popular vindo da Paraíba para o Rio de Janeiro, falando de forma clara e objetiva. É nos Festivais da Canção, citados anteriormente, que encontramos o palco para suas “disputas”. É no ano de 1966, no II Festival de Música Popular Bra­sileira, realizado pela TV Record, que esses dois célebres cantores encontram-se em uma final pela primeira vez. Chico Buarque apresenta sua música “A banda”, interpretada juntamente com a cantora Nara Leão, e Vandré concorre com “Disparada”, interpretada por Jair Rodrigues, Tri Maraiá e Trio Novo. Para desgosto do público, que não vê “A banda” como uma canção de protesto, os cantores dividem o primeiro lugar do Festival.

            A segunda batalha ocorre no II Festival Inter­nacional da Canção, realizado pela TV Globo, no ano de 1968. Chico ganha o primeiro lugar com a canção “Sabiá”. Vandré concorre com a canção “Pra não dizer que não falei das flores” ou “Caminhan­do”, que se torna o hino da resistência à ditadura. Há contestação do público, que, apesar do protes­to contido em “Sabiá”, vê a música de Chico como algo alienante.

Se analisarmos as quatro músicas citadas acima, vemos que todas possuem uma forma de protesto, porém com muita diferença entre Chico e Vandré.

A BANDA           

Chico Buarque





Composição : Chico Buarque
 


Estava à toa na vida
O meu amor me chamou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


A minha gente sofrida
Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou

A namorada que contava as estrelas parou

Para ver, ouvir e dar passagem


A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu

E a meninada toda se assanhou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


Estava à toa na vida
O meu amor me chamou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


A minha gente sofrida
Despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor


O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou

A moça feia debruçou na janela

Pensando que a banda tocava pra ela


A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A lua cheia que vivia escondida surgiu

Minha cidade toda se enfeitou

Pra ver a banda passar cantando coisas de amor


Mas para meu desencanto
O que era doce acabou

Tudo tomou seu lugar

Depois que a banda passou


E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor

Depois da banda passar

Cantando coisas de amor...


Em “A banda”, é possível notar o recorte de uma cena da vida urbana. Nessa música, Chico nos mostra a dureza da vida da “gente sofrida” que “despediu-se da dor”. Ao mesmo tempo, Chico nos mostra a desesperança presente na sociedade da época, fala-nos de pessoas tristes, amedrontadas e solitárias e da clausura de cada pessoa por causa do regime militar. A canção é uma sobreposição de esperança e desesperança. A primeira, presente nos trechos iniciais da música e, a segunda, pre­sente durante toda a canção e mais explicitada na última estrofe: “Mas para meu desencanto o que era doce acabou/tudo tomou seu lugar depois que a banda passou/e cada qual no seu canto, em cada canto uma dor/depois da banda passar cantando coisas de amor”.


Sabiá
Chico Buarque
Composição : Tom Jobim e Chico Buarque







 


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar

Para o meu lugar

Foi lá e é ainda lá

Que eu hei de ouvir cantar

Uma sabiá


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar

Vou deitar à sombra

De um palmeira

Que já não há

Colher a flor
Que já não dá
E algum amor Talvez possa espantar
As noites que eu não queira
E anunciar o dia


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar

Não vai ser em vão

Que fiz tantos planos

De me enganar

Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer


Vou voltar
Sei que ainda vou voltar

E é pra ficar

Sei que o amor existe

Não sou mais triste

E a nova vida já vai chegar
E a solidão vai se acabar
E a solidão vai se acabar

Em “Sabiá”, Chico fala do exílio e da vontade de voltar para a terra. Ao mesmo tempo em que mostra um saudosismo, faz uma crítica à socieda­de, mostrando que tudo de que ele sente saudade nesta terra não existe mais. Podemos notar isso na seguinte estrofe: “vou voltar, sei que ainda vou voltar/vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há/colher a flor que já não dá”.


Disparada

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Geraldo Vandré

Composição : Geraldo Vandré e Theo de Barros


 


Prepare o seu coração
Prás coisas

Que eu vou contar

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão

Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar...


Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar

E a morte, o destino, tudo

A morte e o destino, tudo

Estava fora do lugar

Eu vivo prá consertar...


Na boiada já fui boi
Mas um dia me montei

Não por um motivo meu

Ou de quem comigo houvesse

Que qualquer querer tivesse

Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu...


Boiadeiro muito tempo
Laço firme e braço forte

Muito gado, muita gente

Pela vida segurei

Seguia como num sonho

E boiadeiro era um rei...


Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo

E nos sonhos

Que fui sonhando

As visões se clareando

As visões se clareando
Até que um dia acordei...


Então não pude seguir
Valente em lugar tenente

E dono de gado e gente

Porque gado a gente marca

Tange, ferra, engorda e mata

Mas com gente é diferente...


Se você não concordar
Não posso me desculpar

Não canto prá enganar

Vou pegar minha viola

Vou deixar você de lado

Vou cantar noutro lugar


Na boiada já fui boi
Boiadeiro já fui rei

Não por mim nem por ninguém

Que junto comigo houvesse

Que quisesse ou que pudesse

Por qualquer coisa de seu
Por qualquer coisa de seu
Querer ir mais longe
Do que eu...


Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo

E já que um dia montei

Agora sou cavaleiro

Laço firme e braço forte

Num reino que não tem rei

      Em “Disparada”, Vandré nos mostra alguns trechos muito mais agressivos, apesar do uso da linguagem poética. Suas mensagens são bem mais claras do que as de Chico em “A banda”. Podemos dizer que a canção de Vandré é uma afronta direta ao governo e às torturas a que alguns eram sub­metidos pelos militares. Fala também da consci­ência política, de um despertar para o que ocorre na sociedade e da censura sofrida. Essas visões fi­cam claras, principalmente, nos seguintes versos: “Mas o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo/E nos sonhos que fui sonhando, as visões se clareando/As visões se clareando, até que um dia acordei/Então não pude seguir valente em lugar tenente/E dono de gado e gente, porque gado a gente marca/Tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente/Se você não concordar não posso me desculpar/Não canto pra enganar, vou pegar minha viola/Vou deixar você de lado, vou cantar noutro lugar”. Na última frase de sua canção po­demos notar uma crítica clara ao governo e a po­lítica militarista: “Laço firme e braço forte num reino que não tem rei”.

Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores


Composição : Geraldo Vandré





 

Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Pelos campos há fome
Em grandes plantações
Pelas ruas marchando
Indecisos cordões
Ainda fazem da flor
Seu mais forte refrão
E acreditam nas flores
Vencendo o canhão
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição:
De morrer pela pátria
E viver sem razão
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Somos todos soldados
Armados ou não
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Aprendendo e ensinando
Uma nova lição
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer


       Vandré fala de forma explícita do governo. Cita ainda a luta armada e a imobilidade das pessoas que defendem a diplomacia, podemos notar ainda uma crítica aos movimentos que pre­gavam “a paz e o amor”, mostrando que de nada adianta “falar de flores” àqueles que atacam com armas. Sua canção é um protesto escancarado, ao contrário do de Chico, e torna-se o hino da resis­tência. Podemos notar esse protesto nos seguintes trechos: “Há soldados armados, amados ou não,/quase todos perdidos de armas na mão,/nos quar­téis lhes ensinam uma antiga lição: de morrer pela pátria e viver sem razão./vem, vamos embora, que esperar não é saber,/quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, ou ainda no próprio título da canção “Pra não dizer que não falei das flores/Caminhando”.




 

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Chico Buarque

Composição : Chico Buarque e Gilberto Gil 


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue...(2x)


Como beber dessa bebida amarga;
Tragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito.

Silêncio na cidade não se escuta.

De que me vale ser filho da santa?!

Melhor seria ser filho da outra;
Outra realidade menos morta;
Tanta mentira, tanta força bruta.


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue...


Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano.

Quero lançar um grito desumano,

Que é uma maneira de ser escutado.

Esse silêncio todo me atordoa...

Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa.


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue...


De muito gorda a porca já não anda. (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta.

Como é difícil, Pai, abrir a porta... (Cálice!)

Essa palavra presa na garganta...

Esse pileque homérico no mundo.

De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade.


Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice

De vinho tinto de sangue...


Talvez o mundo não seja pequeno, (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado. (Cale-se!)

Quero inventar o meu próprio pecado. (Cale-se!)

Quero morrer do meu próprio veneno. (Pai! Cale-se!)

Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)

Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel. (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça. (Cale-se!)




                ANÁLISE DA MÚSICA CÁLICE 




   CÁLICE uma das músicas mais panfletárias do Chico Buarque, somando-se o fato dele ter como parceiro a genialidade do Gil, fizeram uma grande obra. A análise é extensa por conta de que todos os versos vêm imbuídos de metáforas usadas para contar o drama da tortura no Brasil no período da ditadura militar.
(Pai, afasta de mim esse cálice).
O verso  sintetiza uma súplica (que é coletiva apesar de ser apresentada em primeira pessoa) por algo que se deseja ver longe ou que não exista. O fato de ser uma súplica, ou seja, um pedido feito com muito desejo (implorado) denuncia o aspecto negativo daquilo que se deseja ver afastado. O objeto de tal rejeição, na música, é o cálice que remete a forma imperativa do verbo calar, “cale-se”, representando toda a essência autoritária do regime militar que impunha o silêncio de ideologias contrárias a ele e calava todas as atitudes de contestação àquele status quo. E a constatação de esse “cale-se” realmente era feito existir através da coação .



(De vinho tinto de sangue)

Se na Bíblia este o conteúdo do cálice é o sangue de Jesus Cristo, na música, ele é o sangue derramado pelas vítimas das torturas e mortes comuns neste contexto. Se Jesus foi submetido a muitos atos de crueldade durante seu calvário, aquele que enfrentava a ditadura também passava por um “calvário”, no qual os atos de crueldade tomavam forma de diversos
tipos de torturas.

(Como beber dessa bebida amarga)




 A metáfora do verso remete à dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram subjugadas de forma desumana.
  O eu lírico da música revela sua indignação por ter que viver tal situação ao indagar Como beber dessa bebida amarga. O pronome “dessa” comprova a relação direta entre a bebida amarga e o vinho
tinto de sangue, o que remete a dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram desumanamente subjugadas.

(Tragar a dor, engolir a labuta)

Tragar a dor, engolir a labuta. Através do contraste entre “tragar” e “dor” enfatiza-se a imposição de ter que agüentar a dor como algo banal, assim como o simples ato de fumar.
   A segunda parte de verso reflete a necessidade, também imposta, de assimilar o cotidiano, o trabalho (a labuta) de maneira natural (engolir), mesmo que as condições trabalhistas  não fossem as melhores e os movimentos sindicais trabalhistas fossem duramente reprimidos.Tudo isso deixa transparecer o poder da força que impedia a autonomia dos indivíduos de pronunciar sua condição, seus sentimentos e desejos.


(Mesmo calada a boca, resta o peito)





A segunda parte de verso reflete a necessidade, também imposta,
Mas, mesmo que o livre-arbítrio de pronunciar-se seja cerceado (Mesmo calada a boca...), resta a liberdade de sentir (...resta o peito). Mais adiante, o eu lírico admite que o “peito” também poderia ser calado (Mesmo calado o peito...), ...), mas, ainda assim, resta um último refúgio, algo intocado: a mente (...resta a cuca), onde as  ideologias, idealizações e pensamentos não podem ser reprimidos. Posição otimista diante dos fatos e a crença neste elemento como instrumentos de luta, de resistência e como um recanto fértil da esperança em dias melhores.

(Silêncio na cidade não se escuta)




O silêncio está metaforicamente relacionado à censura, que, desta forma, é entendida como uma quimera, um absurdo inexistente, porque, na medida em que o silêncio não se escuta, o silêncio não existe.
O verso Silêncio na cidade não se escuta reflete o quadro tenso da situação política em vigor. O paradoxo “escutar o silêncio” denuncia o fato de não haver tranqüilidade nas ruas, mas sim, confusão, barulho. E é, justamente, o “barulho” da repressão dos agentes do sistema contra quem se opunha a ele.




(De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra)
Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas descrenças naquele regime político e rebaixam a figura da “pátria mãe” à condição inferior a de uma “prostituta”..
 (De que me vale ser filho da santa) e o rebaixamento da figura da “santa” à condição inferior de uma “puta”, termo que fica subentendido no lugar de outra (em Melhor seria ser filho da outra) e que rimaria com escuta, do verso anterior. Teríamos então, a expressão popular “filho da puta”, que neste contexto pode significar uma pessoa valente disposta a enfrentar a ditadura e não se render às circunstâncias.


(Outra realidade menos morta).
   A indignação por não ter liberdade de escolha é, mais uma vez, manifestada ao lado da declaração do desejo de viver em outra realidade (Outra realidade menos morta), na qual os homens não tenham a individualidade e os direitos anulados. Uma realidade que não seja construída com base em mentiras e na coação física, já que o regime militar implantava imagens distorcidas da conjuntura política,social e econômica do país, para dar a impressão de que o Brasil desenvolvia-se comoum“milagre econômico”. E essa versão dos militares tinha que ser aceita como uma verdade absoluta, mesmo que fosse necessário aplicar a força bruta.

(Tanta mentira, tanta força bruta)




O regime militar propagandeava que o país vivia um “milagre econômico” e todos eram obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta.



(Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano)

   O eu lírico admite a dificuldade de aceitar passivamente as imposições de regime e permanecer calado diante de atos escusos (prisões e torturas) que eram realizados, preferencialmente, à noite. E aí reside uma grave crítica a postura dos militares: tudo era tão arbitrário que precisava ser feito “às escondidas”, “às escuras”.  como se estivesse esperando um ‘espetáculo’ na arquibancada . 
   



   (Quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado)

Todo esse quadro desemboca no desespero e sentimento de abandono do ser reprimido que quer lançar um “grito desumano”, talvez, a única forma de ser escutado, já que ninguém escuta seu grito humano.

 (Esse silêncio todo me atordoa)




Esse verso denuncia os métodos de torturas e repressão..
Temos a recorrência da palavra “silêncio” em Esse silêncio todo me atordoa.
. E, mais uma vez, é utilizada para formar um paradoxo (pelo fato de atordoar), denunciando os métodos de torturas e repressão, utilizados para conseguir o silêncio das vítimas fazendo-as perderem os sentidos. Há também a conotação do transtorno diante da submissão à censura, imposta pelo regime militar. Mas, mesmo atordoado por esta situação, o eu lírico permanece atento, em estado de alerta para o fim dessa conjuntura,
.

(Atordoado, eu permaneço atento)




Mesmo atordoado o eu-lírico permanece atento, em estado de alerta para o fim dessa conjuntura, como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir.(Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa) Entretanto, o espetáculo pode ser, ironicamente, somente o surgimento de mais um mecanismo de imposição de poder do regime, representado pelo monstro da lagoa.

  Uma possível referência a Lagoa Rodrigo de Freitas, local em que ficava a casa de Chico Buarque onde a música foi composta.

(De muito gorda a porca já não anda.)




Essa “porca” refere-se ao sistema ditatorial, que, de tão corrupto e ineficiente, já não funcionava. O porco também é um símbolo da gula, que está entre os sete pecados capitais, retomando a temática de religiosidade e elementos católicos.

(De muito usada a faca já não corta)




Demonstra inoperância, ou seja, mostra o desgaste de uma ferramenta política utilizada à exaustão.
     A  inoperância, ou seja, o objeto que servia para cortar, já não o faz. Mostra, ainda, o desgaste de algo que foi muito usado, além de simbolizar corte, ferimentos e violência constante, muito comuns na realidade dos que lutavam para mudar a realidade

(Como é difícil, pai, abrir a porta).
Um relance de esperança é percebido em Como é difícil, pai, abrir a porta. É expresso o apelo ao divino para que sejam diminuídas as dificuldades, mas ao mesmo tempo apresenta a tarefa como“difícil”, não impossível. A porta se mostra como a passagem de saída de tanta violência e contexto tão adverso. Sinaliza, ainda, uma possibilidade  bíblica de um novo tempo, como o mesmo autor já retratou em outras  letras como no trecho.Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.


(Essa palavra presa na garganta)




É a dificuldade para encontrar a liberdade, a livre expressão. É o desejo de falar, contar e descrever a todos a repressão que está sendo imposta.
 Nos versos calada a boca e voz presa na garganta. Ao ser associado ao contexto bíblico, o cálice também faz alusão ao sacrifício de ter que agüentar as atrocidades da repressão militar, marcadas por dor, humilhação,abandono e crueldade, assim como, o sacrifício da paixão de Cristo.
 No sentido de a dificuldade  para encontrar a liberdade estar na prisão da palavra, no controle da livre expressão, espaço no qual, o Eu deve acreditar ser possível se livrar de tanto “mal”. A frase é expressiva no sentido de representar o desejo de falar, contar e descrever à todos a repressão que está sendo imposta. A sensação física de ter algo preso na garganta nos remete a desespero, sufoco e angústia, que é o que passaram os “comunistas” do período. Diante de tanta dor e sofrimento, um dos elementos recorrentes nas expressões artísticas da época foi a bebida. Nesta música percebemos em Esse pileque homérico no mundo,

(Esse pileque homérico no mundo)




        Refere-se ao desejo de liberdade contido no peito de cada cidadão dos países vivendo sob os vários regimes autoritários existentes no mundo.

(Dos bêbados do centro da cidade e Me embriagar até que alguém me esqueça)Ainda na obra de Chico Buarque, encontramos em letra da mesma época E a gente vai tomando, que também, sem a cachaça / Ninguém segura esse rojão. A embriagues e o torpor são formas encontradas para aliviar a tensão do momento,como também aparece em Quero cheirar fumaça de óleo diesel. Esta última com a ressalva de que adquire duplo sentido, pois também era uma das técnicas de tortura adotada pelo governo para extrair informações e confissões.


(De que adianta ter boa vontade)




É um autoquestionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade, uma vez que o mundo estava ao avesso. Refere-se a uma frase bíblica: “paz na terra aos homens de boa vontade”.

O Eu volta ao divino ao se questionar da validade dos esforços que faz em De que adianta ter boa vontade . Faz um auto-questionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade se o mundo está “do avesso”. Percebe-se referência à frase bíblica “Paz na Terra aos homens de boa vontade”, ou seja, aos
homens que tem paz e bondade no coração. Na música, o Eu se pergunta se vale a pena ter o coração puro, voltando ao ponto de que talvez seja melhor “ser filho da outra”, que não a santa


(Mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade)
Mesmo sem liberdade o homem não perde a mente e pode continuar pensando.



(Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado)
A partir deste verso o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente, renovando suas esperanças.
    Talvez o mundo não seja pequeno / Nem seja a vida um
fato consumado, ou seja, aponta que existe a possibilidade de a realidade vir a ser diferente, melhorar,renovando suas esperanças.


(Quero inventar o meu próprio pecado)




Expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros para recriar suas próprias regras e definir por si só, quais são seus erros, sem que outros o apontem. Tem o significado de estar fora da lei.
. A palavra “pecado” remete ao religioso, mas absorve mais intensamente o significado de estar fora da lei, do que o de pecar, em si. O verbo aproxima-se do desejo pungente, urgente e real de liberdade.


(Quero morrer do meu próprio veneno)




Neste verso está implícito que ele deseja ser punido pelos erros que ele vier a praticar seguindo o seu livre-arbítrio, e não, tendo seu desejo cerceado, punido por erros que o sistema acha que ele poderá vir a cometer.

(Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo)




Traz a idéia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor. Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela, para ser dono de suas próprias idéias.

(Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça)




Para encerrar, Chico e Gil usaram uma imagem forte das táticas de tortura. Para fazer com que os subjugados perdessem a noção da realidade, dentro da sala os repressores queimavam óleo diesel, cuja fumaça deixava-os embriagados. Entretanto, os subjugados também possuíam táticas antitortura, e uma das artimanhas era justamente fingir-se desmaiado, pois, enquanto nesta condição, não eram molestados pelos torturadores.








AGENOR DE OLVEIRA-O CARTOLA 

O mundo é um moinho

Ainda é cedo, amor mal começaste a conhecer a vida já anuncias a hora de partida sem saber mesmo o rumo que irás tomar Preste atenção, querida embora eu saiba que estás resolvida em cada esquina cai um pouco a tua vida e em pouco tempo não serás mais o que és preste atenção, o mundo é um moinho vai triturar teus sonhos tão mesquinhos vai reduzir as ilusões a pó... Ouça-me bem, amor Preste atenção, querida de cada amor tu herdarás só o cinismo quando notares estás à beira do abismo abismo que cavaste com teus pés Cartola Álbum: Cartola (1976) Sobre o autor "O mundo é um moinho" talvez seja uma das canções mais bonitas já feitas no Brasil. É de autoria de Cartola, que, morando na favela, fez poesia da melhor qualidade e compôs músicas em que melancolia e força lírica formam um par indissociável. Na primeira estrofe da letra, a forma "ainda é cedo" tem o sabor de uma réplica, não é mesmo? É como se pressupusesse que algo foi dito antes. Afinal, trata-se quase de uma frase padronizada, usada em quase cem por cento das vezes em que uma visita diz que vai embora. Nós, educadamente, replicamos: Ainda é cedo. Diríamos então que já de início a letra pressupõe um interlocutor, indicado ao longo do texto com vocativos: "Ainda é cedo, amor"; "preste atenção, querida"; "Ouça-me bem, amor". A julgar pelo "querida", pelo "resolvida", trata-se de uma mulher. Não ouviremos em nenhum momento a voz dessa mulher, pois, se isso acontecesse, teríamos um diálogo, e a forma da canção lírica poderia resvalar para uma forma dramatizada, quase teatral. A repetição enfática dos vocativos acaba por indicar o empenho com que se busca prender a atenção da interlocutora, prestes a cair no mundo. Esse empenho é de tal ordem que chega a ter cara de conselho, ou mais do que isso, de sentença, a começar pelo título. O mundo é um moinho é uma espécie de frase sentenciosa, dita por alguém que certamente deve ter perdido um pouco de si mesmo nas pás desse moinho. A experiência acumulada legitima o conselho, daí este ter sabor de profecia, digamos assim, o que é marcado pelo futuro do presente: "não serás mais o que és", "o mundo (...) vai triturar seus sonhos", "vai reduzir as ilusões a pó", "tu herdarás só o cinismo". Parece mãe rogando praga, não é? Além do futuro, o presente do indicativo de valor atemporal, comum em provérbios, também é usado: "Em cada esquina cai um pouco a tua vida". Não é que isso já esteja acontecendo, já que a moça está ainda para partir. No entanto é uma fórmula lapidar, que sintetiza uma verdade. Ninguém passa ileso pelas esquinas da vida. Mas você acha que a letra é no fundo, no fundo, uma praga de mãe (ou de pai, ou de amante?). Pois é, tudo depende do contexto. Formas tão carinhosas como "amor", "querida" de certa maneira embalam, acarinham o interlocutor, do qual, no entanto, não se escondem as verdades desse mundo. Os verbos e expressões ligados à corrosão que a realidade opera sobre os sonhos são bastante violentos: triturar, reduzir a pó, estar à beira do abismo. Mas, como dissemos, a verdade é revelada carinhosamente , se assim podemos dizer. Não só pela ternura dos vocativos, mas pela ternura da melodia mesmo. A música é doce e melancólica e como que mostra a inutilidade do conselho. Ninguém escapa ao moinho, por mais que queiramos proteger aqueles que amamos. O saldo da aventura pelo mundo é triste: cinismo, desilusão, perda de identidade: "Não serás mais o que és". O mundo nos aparta de nós mesmos.






 
                                                                                       




Apesar De Você
Chico Buarque

Composição : Chico Buarque 
(Crescendo) Amanhã vai ser outro dia x 3


Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não. A minha gente hoje anda Falando de lado e olhando pro chão Viu? Você que inventou esse Estado Inventou de inventar Toda escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar o perdão


(Coro) Apesar de você
amanhã há de ser outro dia
Eu pergunto a você onde vai se esconder Da enorme euforia? Como vai proibir Quando o galo insistir em cantar? Água nova brotando E a gente se amando sem parar


Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro! Todo esse amor reprimido, Esse grito contido, Esse samba no escuro


Você que inventou a tristeza
Ora tenha a fineza
de "desinventar" Você vai pagar, e é dobrado, Cada lágrima rolada Nesse meu penar


(Coro2) Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Ainda pago pra ver O jardim florescer Qual você não queria


Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença


E eu vou morrer de rir
E esse dia há de vir
antes do que você pensa Apesar de você


(Coro3) Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia
Você vai ter que ver A manhã renascer E esbanjar poesia


Como vai se explicar
Vendo o céu clarear, de repente,
Impunemente? Como vai abafar Nosso coro a cantar, Na sua frente. Apesar de você


(Coro4) Apesar de você
Amanhã há de ser outro dia.
Você vai se dar mal, etc e tal, La, laiá, la laiá, la laiá??



Apesar de Você : A realidade em versos.


Apesar de você foi composta em 1970, Chico Buarque passou os anos de 1969 e 1970 em auto-exílio na Itália, no entanto quando Chico volta, encontra o cenário violento, sendo os primeiros anos da década de 70 ,os mais marcantes na história da ditadura militar brasileira, então compõem essa canção.  É a primeira e a mais conhecida das canções sobre repressão, chegando a ser usada como canção de protesto tornou-se um “hino da época”, a época do AI-5. Foi proibida pela censura e liberada somente em 1978. O motivo de sua proibição foi devido à palavra “você” ter sido identificada como referência ao Presidente Médici. Análise :    Há na canção uma esperança que o “Amanhã há de ser outro dia”. O Hoje é caracterizado pela submissão do povo perante o governo e a ditadura, e o amanhã seria a esperança de um futuro libertador. Assim como outras canções de protesto, Apesar de você, se utiliza de metáforas de situações cotidianas para abordar o seu real significado (Quando o galo insistir em cantar? /Água nova brotando/ E a gente se amando sem parar).  Para despistar a censura Chico Buarque, alegou que sua música tratava de um amor vingativo, e a palavra “você” remetia a uma mulher ciumenta e mandona. Mas a censura não acreditou, nos versos tão amargurados do compositor (Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão, não. A minha gente hoje anda/Falando de lado e olhando pro chão).



     Apesar de Você, se trata não só de uma canção de repressão, mas um desabafo do compositor. Reforça sua esperança numa nova era, o início de uma vida de liberdade e felicidade.






Roda-viva



Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mais eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
No volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar, não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
O samba, a viola, a roseira
Um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a saudade pra lá
Roda mundo, roda-gigante
Roda-moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
    

 Chico Buarque
de Hollanda
Álbum:
 Chico Buarque
de Hollanda
(1968)
Sobre o autor



                                                                                     
                                                                                 



                                                                         


Quem não conhece a canção Roda-viva, de Chico Buarque? Essa letra faz parte da famosíssima peça de mesmo nome, escrita em 1967 e que, um ano depois, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, recebeu montagem à altura, no teatro Oficina. Chico Buarque, que até então era "a única unanimidade brasileira", nas palavras de Millôr Fernandes, chocou parte de seu público com a radicalidade crítica e o tom francamente agressivo da peça.

Mas vamos à letra Roda-viva: ela tem um chão histórico específico, ou seja, os obscuros anos da ditadura. É desse tempo que ela data e é o que esse tempo representou para a experiência brasileira que ela aborda e cifra. Eu falei em "cifra"? Sim, a palavra cifra tem, além da acepção comercial que conhecemos, o sentido de explicação de escrita hermética, enigmática, e, por extensão, passa a significar essa própria escrita. Decifrar é justamente tirar a cifra, tornar o texto claro, interpretá-lo. Como dissemos, a composição de Chico se originou em meio ao turbilhão da instauração da ditadura militar no Brasil. Ditadura que representava, para a cultura, simplesmente o fim da liberdade de expressão. Um meio muito utilizado na época (e, de um modo geral, em períodos não democráticos, no Brasil e em outros países) para driblar a censura foi a metáfora, o despistamento, a linguagem figurada, a cifra. Alguns escritores e jornalistas falavam aparentemente de flores e rouxinóis, quando estavam se referindo à situação político-social brasileira.

O que é roda-viva? Roda-viva é, conforme os dicionários, movimento incessante, corrupio, cortado; é ainda confusão, barulho. O texto menciona ações frustradas pela roda-viva.

Na letra a roda-viva está associada à morte, ao contrário do que indica a palavra. A roda ceifa, arranca aquilo que ainda está em desenvolvimento: a gente estancou de repente. A gente parou (de crescer) de repente. Note-se como é expressivo o uso de estancar, que nos faz lembrar imediatamente de sangue. Somos abortados na capacidade de decidir o próprio destino, de adquirir autonomia como um rio é barrado, como um fluxo de sangue é estagnado.

Essa espécie de vendaval arrebata a voz, o destino das pessoas e a capacidade de exprimir artisticamente seu sofrimento:arrebata-lhes ainda a viola . A roda-viva arrebata da gente a roseira há tanto cultivada e que não teve tempo de exibir tudo o que prometia.

A composição é cortada por dois movimentos: um expressa a ação empenhada, o trabalho sistemático, o desejo de ser o sujeito da própria história. A esse movimento pertence o querer ter voz ativa, o ir contra a corrente (da roda-viva), o cultivo ininterrupto da rosa, o tocar viola na rua e a saudade de tudo isso (na medida em que a saudade pode ajudar a reorganizar o pensamento e a luta). O outro movimento expressa a ação abortiva exercida pela roda-viva. Esse movimento vem expresso numa frase reiterada: "Mas eis que chega a roda-viva e carrega (o que quer que seja) pra lá". A conjunção "mas" sinaliza justamente essa mudança de direção, sinaliza ação adversa. A frase "eis que chega..." vem sempre ligada na letra a um tipo de estribilho, a uma fórmula aparentemente ingênua, que lembra as cantigas de roda: "roda mundo, roda gigante/ roda-moinho, roda pião/ o tempo rodou num instante nas voltas do meu coração". Essa fórmula, inocente na aparência, dado seu teor caótico e quase surrealista (típico de enigmas, cantigas de ninar etc.) e a referência a brinquedos infantis (roda-gigante, pião), tem o efeito de exprimir um desnorteio, uma situação absurda, fora do esquadro. De fato, não é possível conceber a ditadura como algo natural. Ela não pertence à ordem da razão.

Esses movimentos descritos na letra são, portanto, de trabalho em curso e de sucessiva frustração. Isso descreve muito a experiência brasileira, tanto do ponto de vista social e político como do ponto de vista cultural. Quando estávamos começando a engatinhar na democracia, é instalado o regime totalitário, para o qual não existem indivíduos. Sufoca-se até a saudade (já cativa) de outros tempos.

Mas esse ambiente de tanto mal-estar foi filtrado por Chico Buarque com muita cautela: era preciso despistar a censura, daí a profusão de rodas e de versos encantatórios; era preciso dizer a verdade, daí o tumulto e a sensação de frustração advinda da mesma profusão de rodas, que diríamos serem antes de trator.



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MÚSICA: ALEGRIA ,ALEGRIA

ALEGRIA,ALEGRIA DE CAETANO 


 VELOSO Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro, Eu vou. O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em Cardinales bonitas, Eu vou. Em caras de presidente, Em grandes beijos de amor, Em dentes, pernas, bandeiras, Bomba e Brigitte Bardot. O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça. Quem lê tanta notícia? Eu vou Por entre fotos e nomes Os olhos cheios de cores O peito cheio de amores vãos. Eu vou Por que não? E por que não? Ela pensa em casamento E eu nunca mais fui à escola Sem lenço e sem documento Eu vou. Eu tomo uma coca-cola Ela pensa em casamento Uma canção me consola Eu vou. Por entre fotos e nomes Sem livros e sem fuzil Sem fome, sem telefone, No coração do Brasil. Ela nem sabe até pensei Em cantar na televisão O sol é tão bonito Eu vou Sem lenço, sem documento Nada no bolso ou nas mãos Eu quero seguir vivendo amor. Eu vou Por que não? E por que não? 
 ANÁLISE: O SUCESSO DA DÉCADA DE 1960 A música Alegria, alegria, de Caetano Veloso Esta letra em questão funcionou como um dos pontos de partida e até síntese do movimento tropicalista ocorrido principalmente na nossa música durante as décadas de 60 e 70, do século passado. O Tropicalismo, movimento sócio-cultural iniciado a partir de 1967, surgiu principalmente na música, mas acabou influenciando toda a cultura nacional, pois retomava basicamente elementos da Antropofagia, do Modernismo Brasileiro, e outros elementos da contra-cultura, da ironia, rebeldia, anarquismo e humor ou terror anárquico. A paródia, a crítica à esquerda intelectualizada, a não-aceitação de qualquer forma de censura, a sedução dos meios de comunicação de massa, o retrato da realidade urbana e industrial, a exploração do ser humano, tudo isso, todos esses elementos montado com uma colagem de fragmentos do dia-a-dia nas grandes cidades do país, eram, de fato, os princípios norteadores da arte tropicalista.
 CONTEXTO HISTÓRICO O panorama sócio-histórico da época desta canção era de total arrogância direitista. Estávamos em plena Ditadura Militar, especificamente nos “anos de chumbo”, como era chamado o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici, conhecido como o mais duro e repressivo do período. Nestes anos, a repressão e a luta armada crescem e uma severa política de censura é colocada em execução. Jornais, revistas, livros, peças de teatro, filmes, músicas e outras formas de expressão artística são proibidas. Alguns partidos políticos passaram para a ilegalidade e a UNE (União Nacional dos Estudantes) teve seu prédio incendiado. Muitos professores, intelectuais, artistas, políticos, jornalistas e escritores são investigados, presos, torturados, exilados ou assassinados. O Regime Militar fora imposto com um grande golpe desde 1964 e, naquele final de década, já havia as revoltas contra esta ditadura. Os estudantes iam às ruas protestar contra um governo ditatorial, que destruía as universidades, deixando-as reféns do sistema de negação do conhecimento, e a população já participava de lutas e passeatas contra o regime militar, mesmo estas sendo proibidas pelos militares. A cultura importada era alienante, por isso, Caetano usa palavras como Brigitte Bardot, Cardinales (em referencia á atriz ítalo-americana Claudia Cardinale) e coca-cola (maior símbolo do império norte-americano, que financiava os exércitos em toda a América Latina). Mas, os anos 60 foram a grande década revolucionária: os anos da minissaia, dos hippies, dos homens de cabelos compridos, da pílula anticoncepcional e, consequentemente da revolução feminina e da liberação sexual. Assim como surgiram ídolos impostos e fabricados pela mídia principalmente nos EUA, também surgiram símbolos de uma época que marcaram tanto pela alienação, quanto pela imposição de um comportamento novo ou pela exposição da exploração sofrida pelo ser humano. Neste patamar, aparecem ídolos da cultura pop e líderes sociais e políticos, como os Beatles, Rolling Stones, Jonh Kennedy, Martin Luther King, Fidel Castro e Che Guevara. Também fazem parte deste contexto histórico, a Guerra do Vietnã, a viagem à Lua, feminismo, lutas pelo aborto e pelo divórcio e a prática do amor livre, tendo como expoente principal o festival de Woodstok, que marcou o planeta com o poder de transformação da sociedade pela juventude. No Brasil, era a época dos grandes festivais de música, do ufanismo dos militares e das obras faraônicas erguidas a partir de grandes empréstimos. Os ídolos da música cantavam versões de sucessos norte-americanos ou europeus. Surgia a Jovem Guarda e logo depois a Bossa Nova. A cultura de massa tupiniquim começava a virar produto de exportação. A MÚSICA E SUA INTENÇÃO Escrita, musicada e interpretada pelo cantor e compositor Caetano Veloso, em novembro de 1967, “Alegria, alegria” ajudou a criar o estilo hoje intitulado de MPB e deslocou a expressão artística musical brasileira para o cenário da crítica social, em um ativismo político sem precedentes na história de outro tipo de arte no mundo. Graças a isso, Caetano Veloso teve grande parte de sua obra censurada pelo regime militar. Chegou a ser preso, junto com seu parceiro musical e amigo, Gilberto Passos Moreira, o Gilberto Gil, também cantor e compositor baiano e atual ministro da cultura do Governo Lula. Os dois artistas ficaram exilados em Londres por quase dois anos. Caetano era classificado para o governo no Brasil como “persona nom gratta”, uma expressão latina que corresponderia a mal-agradecido e, por isso, mal-vindo de volta à pátria. Até 1972, quando ambos voltam do exílio. Na canção, é relatada a opressão sofrida pelo cidadão comum, nas ruas, nos meios de comunicação, em sua cultura nativa, no seu próprio país. A letra denuncia o abuso de poder de forma metafórica “caminhando contra o vento/sem lenço e sem documento”; a violência praticada pelo regime “sem livros e sem fuzil,/ sem fome, sem telefone, no coração do Brasil”; e a precariedade na educação brasileira proporcionada pela ditadura que queria pessoas alienadas: “O sol nas bancas de revista /me enche de alegria e preguiça/quem lê tanta notícia?”. Podemos pegar como exemplo também de formas alienantes, elementos externos à cultura nacional, como alguns símbolos impostos pelo cinema norte-americano que exportava/exporta seus ídolos como: Cardinale, Brigitte Bardot e a coca-cola, principal imposição comercial da mídia na época. Para dar exemplos dos desníveis sociais existentes no Brasil e as diferenças regionais, o autor se utiliza de um expediente inovador. Através de comparações aparentemente desconexas e fazendo uso de metáforas, faz a denúncia dos contrastes regionais, sociais ou econômicos, como nos versos: “Eu tomo uma coca-cola,/Ela pensa em casamento”, “Em caras de presidente/em grandes beijos de amor/em dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot.” 
 INTERTEXTUALIDADE
 Ao começar a audição da música ou simplesmente da leitura da letra, é impossível não lembrar dos versos de outra canção dessa época de censura. Trata-se de “Para não dizer que não falei das flores”, do cantor paraibano Geraldo Vandré, também perseguido pelo Governo Militar, que convocava o povo para ir às ruas e lutar contra a ditadura vigente. As duas músicas se iniciam com a palavra “Caminhando” e isso já é um grande motivo para suscitar na população à lembrança da outra. Só depois de Geraldo Vandré ter vencido um grande festival de música com esta canção e, também pelo fato dela ter sido proibida e os discos terem sido destruídos pelo governo, é que Caetano tem sua música Alegria, alegria também proibida. Era comum a destruição ou apreensão de discos ou fitas por parte do governo militar, alguns exemplos são da música Ovelha Negra, de Rita Lee e, mais recentemente, o disco de lançamento da banda de rock carioca Blitz foi censurado em duas faixas, que foram expressamente riscadas dos discos de vinil, em 1981. Outro compositor que sofreu muitas perseguições da ditadura foi Chico Buarque, que teve inúmeras músicas censuradas ao longo da carreira. No entanto, o cantor e compositor carioca, amigo e contemporâneo de Caetano Veloso, aprendeu a “driblar” a censura por meio do uso de palavras metafóricas, como na música “Apesar de Você”, gravada primeiramente por Clara Nunes, que criticava o governo ditatorial como se fosse uma relação afetiva entre um homem e uma mulher. “Alegria, alegria” já começa poética desde o título. O que é também característica da obra de Caetano, fazer um certo ritmo nos títulos de suas obras, seja repetindo palavras ou juntando palavras com sons parecidos, produzindo aí uma aliteração. Como nos exemplos: “London, London”, “Podres Poderes”, “Minha Voz, Minha Vida”, “Araçá Azul” ou “Pássaro Proibido”. CAETANO VELOSO , Caetano Emanuel Viana Teles Velloso é um caso à parte na complexa teia de sons e poesias que permeiam a música popular brasileira. Ele tem acesso livre a todas as tribos da música atual, pois viaja por todos os estilos e ritmos, passando facilmente do inovador pop ao incontestável brega, com um forte apelo popular. Ao tempo que dá sempre uma nova leitura às músicas que interpreta, compõe melodias nos mais diversos ritmos, inclusive rock leve ou pesado, samba de raiz, romântico comercial, bossa-nova, baião, axé e outros ritmos regionais. É músico, arranjador, produtor, escritor, cineasta, além de cantor e compositor. Por isso, é considerado um dos grandes intelectuais da contemporaneidade. Se “Alegria, alegria” não é sua obra mais famosa ou mais lembrada pelos seus fãs, é, pelo menos a mais emblemática de uma época que jamais será esquecida da História do Brasil. E Caetano Veloso foi o grande divulgador deste período de grande revolução popular e de tanta efervescência cultural.
 ANÁLISE ESTILÍSTICA:
 As figuras de som predominam na letra da música de Caetano Veloso, pois o ritmo é constante, quebrado por palavras e/ou expressões como “eu vou”, no final de cada estrofe. A aliteração está presente tanto na repetição de sons consonantais (consonância) quanto de sons vocálicos (assonâncias), como nos exemplos: “Entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil.”: repetição do som do fonema /f/. Nos versos “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”, percebe-se a presença do fonema /k/. Também nos versos “entre fotos e nomes, sem livros e sem fuzil, sem fone, sem telefone, no coração do Brasil”, percebe-se a presença dos sons vocálicos de /em/. O que se repete também nos versos “sem lenço sem documento, no sol de quase dezembro”. A presença de outras figuras de linguagem também é predominante no poema, principalmente a metáfora, como nos exemplos: “Em Cardinales bonitas” ou “Caminhando contra o vento”, que tem o valor semântico de “nadando contra a corrente”, uma expressão popular que significa “estar contra”, no caso, lutar contra a Ditadura Militar. No contexto do momento histórico vivido pelo autor na época do Regime Militar, a expressão “caminhando contra o vento” vem reforçar a idéia central do texto: ser do contra, lutar contra as forças armadas pelo regime ditatorial, promover a união da população contra o governo imposto de forma indireta e arbitrária. Idéia corroborada pelo descumprimento das regras gramaticais da língua padrão, como no exemplo: “Me enche de alegria...”, em que a frase é iniciada pelo pronome oblíquo ME. 

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DOMINGO NO PARQUE



DOMINGO NO PARQUE Se você considerar só o título "Domingo no parque", pode achar que se trata de uma canção festiva, ingênua... Mas não é bem assim, não. Você já viu um jogo de capoeira? Aliás: um jogo ou uma luta? É, em geral, usamos o verbo jogar nesse caso: "Fulano joga capoeira muito bem". Mas a capoeira pode ser também uma luta, com um sistema definido de ataque e defesa. Digamos que a letra de Gil de certa maneira se apóia nessa ambigüidade da capoeira. O ritmo da composição lembra em tudo o gingado desse jogo que se originou entre os escravos bantos (de Angola) no Brasil colônia. É, o que está literalmente em jogo aqui é uma luta de morte. "Domingo no parque", à maneira das canções de Chico Buarque, é fundamentalmente uma canção narrativa, fazendo uso de um tempo verbal típico do gênero narrativo (ou épico), que é o pretérito: "trabalhava", "resolveu", "foi", entre outros. Os personagens são dois amigos: José, o rei da brincadeira, e João, o rei da confusão. O acontecimento trágico de que a letra dá notícia ocorrerá justamente num dia em que esses personagens contrariam, digamos assim, seus atributos: porque João escolhe a brincadeira, José se encaminha para a confusão, para a briga: "A semana passada, no fim da semana, João resolveu não brigar, no domingo de tarde saiu apressado e não foi pra ribeira jogar capoeira não foi pra lá, pra ribeira, foi namorar". Nesse trecho, aliás, notamos um recurso que vai ser usado em toda a letra: a anáfora, a repetição de palavras. Note que em "não foi pra lá, pra ribeira, foi namorar", o verbo "ir" aparece ora numa frase negativa, ora numa frase afirmativa, a qual é uma adversativa, com omissão do mas: "não foi pra lá (...), mas foi namorar". O nó da ação, ou seja, o seu ponto crítico, que vai precipitar o acontecimento trágico, é favorecido por esse desvio da rotina: João não vai brigar,(mas) vai namorar. E José? Corte na ação, agora o foco se concentra nele: "O José como sempre no fim da semana Guardou a barraca e sumiu Foi fazer no domingo um passeio no parque Lá perto da Boca do Rio Foi no parque que ele avistou Juliana Foi que ele viu(...)'. A reprodução do incidente se dá aos arrancos, por descontinuidades sintáticas e repetições:"Foi que ele avistou/ Juliana/ foi que ele viu Juliana na roda com João". É como se a descoberta de José ocorresse por partes: ele avista Juliana, mas ainda não vê tudo. O verbo "ver" aqui ganha o sentido de abarcar o conjunto, a totalidade, por oposição ao "avistar", que indica olhar segmentado. É preciso lembrar que não estamos diante de um poema, mas de uma canção, em que letra e música se articulam e que está sujeita a variações de improviso. Conforme o arranjador ou o intérprete, algumas características podem ser enfatizadas. Assim, quando ouvimos Gilberto Gil cantar, primeiro temos "Ele viu", com o verbo "intransitivado"; depois temos "ele viu Juliana na roda com João", em que o verbo volta a ficar transitivo. Essa descontinuidade, essa interrupção da frase, expressa de alguma maneira a comoção de José diante do quadro funesto: o amigo com a sua amada. O choque dessa revelação se dá na linguagem também, que se torna impotente para dar conta de toda a carga dramática da situação. Os objetos, em si inocentes, que Juliana traz na mão, a rosa e o sorvete, vão crescer e adquirir estatuto de símbolo. Já não serão mais inocentes: "O espinho da rosa feriu Zé e o sorvete gelou seu coração". Esses objetos, típicos de um alegre domingo no parque, ganham contornos de pesadelo. São metonímias,ou seja, são partes que valem pelo todo, são índices de algo maior. Lembra-se daqueles sonhos em que um objeto aparentemente simples parece indicar "algo mais" dada sua presença muito marcada e a insistência com que ele fica em nossa memória? Algo disso acontece aqui. Essa atmosfera onírica é intensificada com a repetição, a anáfora: "O sorvete e a rosa - ê José, a rosa e o sorvete - ê José". Temos aqui uma subespécie de anáfora: o quiasmo, a repetição cruzada (formando X) de palavras: sorvete e rosa rosa e sorvete. Veja outra repetição: "Oi, girando na mente - ô, José Do José brincalhão - ô, José Juliana girando - oi, girando Oi, na roda gigante - oi, girando Oi, na roda gigante - oi, girando O amigo João - João". Tudo gira literalmente, inclusive a cabeça de José, que vai deixando de ser brincalhão. Há uma relação de proporção aqui: quanto mais brinca João, quanto mais gira a roda-gigante, mais José vai se tornando sério e mesmo beligerante. A seriedade de um aumenta conforme a disposição jovial e brincalhona do outro. A repetição do verbo girar mais o uso do gerúndio produzem um efeito hipnotizante. A roda-gigante, rodando, põe a girar também a cabeça e as idéias de José. A visão terrível desencadeia a luta, toda descrita por metonímias: a roda girando, a faca, o sangue, o sorvete de morango, vermelho, como a prenunciar o desastre que advirá. O ritmo da capoeira, mistura de jogo e luta, é glosado nessa canção. Visualize um capoeirista jogando: é esse movimento gingado, de avanço e recuo, que descreve o episódio de luta de morte entre João e José. A segunda-feira é de cinzas: amanhã não tem feira nem brincadeira. Nem João nem José. Gilberto Gil Gilberto Passos Gil Moreira nasce em Salvador, Bahia, a 29 de junho de 1942. Passa a infância em Ituaçu, interior baiano, onte tem contato com sanfoneiros e violeiros. Ouve também ídolos do rádio, como Luís Gonzaga. Em 1950 vai estudar em Salvador e, enquanto faz o ginásio, estuda também acordeom. Em 1960 ingressa na Universidade Federal da Bahia para cursar administração de empresas. Em 1963 lança seu primeiro disco, Gilberto Gil - sua música, sua interpretação. Participa de alguns festivais de MPB. Em 1968 lança o disco Gilberto Gil, ligado à tropicália, movimento que teve Gil e Caetano Veloso entre as figuras mais exponenciais. Em dezembro desse mesmo ano é preso em São Paulo, vítima do Ato Institucional nº5. Em Julho de 1969, exila-se em Londres, voltando ao Brasil somente em 1972. Lança vários discos, entre eles, Tropicália ou Panis et Circensis (1968), Um Banda Um (1981), Quanta (1997). Em 1990, é homenageado com o Prêmio Shell para a Música Brasileira, pelo conjunto de sua obra.








ANTONIO CARLOS JOBI


ANTONIO CARLOS JOBIM

Águas de março É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um caco de vidro, é a vida, é o sol é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol é peroba do campo, é o nó da madeira caingá, candeia, é o Matita Pereira É madeira de vento, tombo da ribanceira é o mistério profundo é o queira ou não queira é o vento ventando, é o fim da ladeira é a viga, é o vão, festa da cumeeira é a chuva chovendo, é conversa ribeira das águas de março, é o fim da canseira é o pé, é o chão, é a marcha estradeira passarinho na mão, pedra de atiradeira Uma ave no céu, uma ave no chão é um regato, é uma fonte é um pedaço de pão é o fundo do poço, é o fim do caminho no rosto o desgosto, é um pouco sozinho É um estrepe, é um prego é uma ponta, é um ponto é um pingo pingando é uma conta, é um conto é um peixe, é um gesto é uma prata brilhando é a luz da manhã, é o tijolo chegando é a lenha, é o dia, é o fim da picada é a garrafa de cana, o estilhaço na estrada é o projeto da casa, é o corpo na cama é o carro enguiçado, é a lama, é a lama é um passo, é uma ponte é um sapo, é uma rã é um resto de mato, na luz da manhã são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é uma cobra, é um pau, é João, é José é um espinho na mão, é um corte no pé são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um passo, é uma ponte é um sapo, é uma rã é um belo horizonte, é uma febre terçã são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho Pau, pedra, fim do caminho resto de toco, pouco sozinho Pau, pedra, fim do caminho, resto de toco, pouco sozinho Tom Jobim Coleção Disco de Bolso: O tom de Antonio Carlos Jobim e o tal de João Bosco (1972) Sobre o autor Chega dezembro e com ele vêm o natal, o reveillon, as férias, depois o carnaval... Na verdade, o ano seguinte só se inicia mesmo depois de encerradas as folias populares. Nada melhor que uma boa enxurrada para varrer as cinzas do ano anterior e então começar vida nova. Nada melhor que as refrescantes águas de março, que esfriam nossa cabeça para enfrentar mais um ano de luta... É verdade que, em cidades como São Paulo, com problemas tão graves como os de saneamento básico, essas águas são muitas vezes sinônimo de enchente, caos e até mesmo de morte. Mas isso não é culpa da natureza: cabe à cultura (no caso, aos administradores públicos, urbanistas e engenheiros) proteger os homens. Certamente não eram as chuvas paulistas que Tom Jobim tinha em mente quando compôs "Águas de março". "É pau, é pedra, é o fim do caminho é um resto de toco, é um pouco sozinho é um caco de vidro, é a vida, é o sol é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol é peroba do campo, é o nó da madeira caingá, candeia, é o Matita Pereira..." O que temos aqui? Eu diria que um conjunto de elementos que lembram uma paisagem não urbana propriamente: pau, pedra, toco, a solidão, peroba, nó de madeira etc. São elementos de um contexto mais natural, onde quase não se sente a ação do homem. O "quase" que eu disse vai por conta dos seguintes objetos: caco de vidro, elemento que implica fabrico, tecnologia; candeia, objeto rústico para iluminação, a indicar, no entanto, que esse lugar tomado pelas águas de março não tem luz elétrica; e anzol, que, apesar de artefato humano, tem a ver com uma forma primitiva de relação com a natureza, ou seja, a pesca, favorecida decerto em tempos mais chuvosos, em que os rios ficam cheios. Índices de uma cultura mais ligada à natureza são ainda a referência a caingás, bem como pela referência ao matita pereira. Como vocês podem percerber, estamos a léguas dos centros urbanos, num espaço onde ainda vigoram lendas, personagens folclóricas, populações pré-modernas, como os índios, e onde são enfatizados os ciclos naturais, vida e morte, sol e noite: "é um caco de vidro, é a vida, é o sol, é a noite, é a morte, é um laço, é o anzol." A letra de Tom Jobim é basicamente descritiva, repertoriando uma série de elementos que visam construir a atmosfera desencadeada pelas chuvas num ambiente mais rural. Sendo descritiva, não conta com uma progressão dramática, um desfecho. Essa estrutura descritiva é enfatizada pela reiteração intensa do verbo "ser", um verbo que serve, entre outras coisas, para dar atributo, qualidade a algo. Mas talvez esse verbo tenha um sentido algo ambíguo aqui. A letra já se inicia sem mencionar o sujeito a que se liga o verbo. "É pau, é pedra, é o fim do caminho", e assim até o fim, com variação dos predicativos. Imaginamos que o que é pau, o que é pedra "é" as águas de março. Ou seja, "águas de março" significa pau, pedra, peroba do campo e tudo mais. Como dissemos, trata-se de representar a atmosfera úmida de março. Chegamos quase a sentir o cheiro da madeira molhada, a imaginar o corpo se refrescando (é o fim da canseira, como diz a letra). Mas, se é assim, por que o verbo "ser" não está no plural, para concordar com "águas", no plural? Podemos cogitar alguns motivos: convenhamos que repetir "são" a todo o instante ficaria um pouco exaustivo. Seria são pra lá, são pra cá, são acolá. A forma "é" está muito mais na ponta da língua, o que dá bem mais agilidade à música; além disso, o sujeito, "águas de março", é mais lógico do que sintático. Ele figura no título da canção, mas não na letra, pelo menos até quase o fim. "Águas de março" é o pressuposto do texto, mas não está estruturado nele sintaticamente. O título serve aqui para indicar o objeto de que se está falando. Por tudo isso, a concordância no singular é mais do que legítima. Tanto é assim que Tom Jobim, que não era bobo, coloca bonitinho o verbo "ser" no plural quando a expressão "águas de março" vem, no finzinho da canção, literalmente reproduzida no corpo do texto, passando de idéia de fundo a elemento de estrutura sintática, ou seja, passando de sujeito lógico a sujeito sintático: "são as águas de março fechando o verão é a promessa de vida no teu coração. " A concordância no plural tem o efeito de um resumo: todos os elementos relacionados nesse texto são, formam as águas de março. Note-se, no entanto, que o verbo no singular retorna: "é a promessa de vida". É como se se quisesse dar mais peso agora à "promessa de vida" do que às águas de março. O que importa mais agora é a promessa de vida. Mas você pode perguntar: isso também não se aplica ao resto da letra? Não poderíamos dizer que a letra quis mais enfatizar os elementos, os aspectos vitais ligados às águas de março, daí ter usado o verbo no singular? É possível. Há em toda a composição de Tom Jobim um apego a elementos variados, há mesmo uma espécie de desejo de fazer o inventário de um mundo já meio fantástico para nós, homens urbanos, para quem saci e índio têm algo em comum: a inexistência, o serem coisas do passado. Esse estilo de inventário acaba como que dando relevo ao detalhe, mas sem prejuízo de dar conta do conjunto. Tudo isso é banhado pelas águas de março, que fecham o verão. Notemos ainda que os elementos ligados à ação do homem vão aumentando ao longo da canção: "É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto ... é o carro enguiçado, é a lama, é a lama." Ora, a palavra "projeto" é bastante ligada ao plano da cultura. A natureza é o lugar do espontâneo, do acaso, que são o oposto do projeto, do cálculo. Já estamos num território não tão primitivo, o que é marcado pelo "carro enguiçado" na lama. Trata-se de um mundo entre a natureza e a cultura. Natural o bastante para que não tenha calçamento e fazer veículos atolarem e culturalmente modificado com a presença de carros e casas. É um mundo intermediário, de lama e de projeto, e onde a chuva cai como uma bênção. O projeto, no entanto, respeita o ciclo natural: só é possível começar de fato a construção da casa ("é o tijolo chegando") quando cessarem as chuvas. Com a terra seca e o outono, então uma nova vida pode lançar as bases. Mas infelizmente nós, paulistas, temos de rezar para que as águas de março não sejam promessa de morte e de desapropriação.
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