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sábado, 9 de junho de 2012

Revista Cult » Coronelismo intelectual;Do Líbano à Síria e ao Bahrein, do Egito ao Irã e Yêmen, a geopolítica da região irá sofrer mudança radical ;A democracia moderna e a estetica da moeda

 

 

 

A democracia moderna e a estetica da moeda

Na sociedade em que tudo se pauta pela exibição midiática, desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do sentimento de vergonha ligado à moral social
 
Olgária Matos
Ilustração Adriano Paulino
Favorecimentos ilícitos, informações privilegiadas, tráfico de influências, gratificações particulares, desvio de verbas públicas, suborno, omissões por interesses próprios ou partidários, formação de cartéis e negligências várias são, nas democracias modernas, práticas de corrupção e, como tais, sujeitas às leis que regulam infrações.
Deixando-se, pois, à Justiça a função de julgar, absolver ou condenar o governador do Distrito Federal José Roberto Arruda, em 2010, sua detenção suscitou, como veiculado pela mídia, júbilo, como ocorreu também com a do ex-governador Paulo Maluf, a dos proprietários da Daslu e da Schincariol, respectivamente. Os dominantes não estão acima da lei.
Como, desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor até o presente momento, o fenômeno só se tem ampliado – não se tratando apenas de segredo de informação como antes, mas de algo com maior visibilidade agora –, compreende-se que as diversas figuras da corrupção não são fato isolado, mas atravessam a sociedade inteira.
Identificando nas democracias contemporâneas dispositivos que colocam as práticas autorizadas no limiar da ilegalidade, o filósofo Walter Benjamin anotou: “O valor venal de cada poder é calculável. Nesse contexto só se pode falar de corrupção onde esse fenômeno se torna excessivamente manipulado. Tem seu sistema de comando num sólido jogo entrelaçado de imprensa, órgãos públicos, trustes, dentro de cujos limites permanece inteiramente legal” (“Imagens de Pensamento”, Rua de Mão Única).
A violência da moeda
O dinheiro como valor hegemônico na sociedade contemporânea supostamente promove a ascensão social, baseada exclusivamente em critérios econômicos e no prestígio do dinheiro. Em seu livro O Processo Civilizatório, Norbert Elias analisa os primórdios da “revolução burguesa” na França, indicando a democratização dos costumes da corte. A burguesia, no esforço de alcançar uma legitimidade que não fosse a do dinheiro (que ainda não se impusera como valor), procurou “aristocratizar-se”, adotando a etiqueta e “as boas maneiras” como medidas da polidez e da convivialidade. Como lhe faltava o universo de tradições e méritos da nobreza, esforçou-se para ascender aos bens culturais.
Mas, com a institucionalização da sociedade de consumo, os bens culturais, que exigiam iniciação para serem compreendidos em suas linguagens próprias – como as artes e os saberes literários –, foram sendo abandonados e passaram a se reger pela obsolescência constante. De onde o advento de “modas intelectuais”. A ideologia do “novo-rico” prescinde até mesmo do “verniz da cultura”.
A ideologia dominante em uma sociedade, como Marx observou, é a da classe dominante, e, em nosso tempo, a dos “novos-ricos”. O “novo-rico” é aquele que conhece o preço de todas as coisas, mas desconhece seu valor. Sob seus auspícios, a educação produz uma cultura que atrofia a sensibilidade e o pensamento; a educação é entendida pela ideologia do “novo-rico” como “ serviço” e como mercadoria mais ou menos barata, dos quais o novo-rico é cliente e consumidor.
A perda da autoridade
A política institucional contemporânea participa da falência da escolaridade e da ética que a ela se vinculava quando a educação, ao menos em seus princípios fundadores, humanistas e republicanos, propunha, primordialmente, formar as crianças para fazer delas adultos mais felizes e melhores.
As detenções espetaculares de acusados de crimes do “colarinho branco” promovem uma pseudocatarse da sociedade, de onde não estão ausentes a agressividade e a “pulsão de morte”. Do outro lado, a estética “novo-rico” opera com dólares nos sapatos ou maços de reais nas roupas íntimas.
Na sociedade panóptica, em que tudo se pauta pela exibição midiática, desaparece o pudor, atestando-se o enfraquecimento do sentimento de vergonha ligado à moral social que, por sua vez, diz respeito à “flexibilização” do sentimento de culpa na consciência moral. O fim da autoridade paterna e o “pai humilhado” coincidem com a sociedade infantilizada em que não se reconhece mais a diferença entre as gerações, entre pais e filhos, masculino e feminino, bom gosto e mau gosto. Em tempos comandados pela ideologia “novo-rico”, tudo pode ser dito e mostrado; cada um de nós é chamado a apresentar em público atos e sentimentos como se fossem ideias.
Mídia e difamação: o comprometimento da democracia
A República moderna e a democracia, em suas origens e fundamentos, basearam-se, uma vez associadas, na confiança e no “franco dizer” de todos os cidadãos, isto é, na liberdade de expressão, diversa, esta, da delação. Porque hoje prospera a desconfiança como forma de sociabilidade, as delações programadas e premiadas – elaboração de dossiês sensacionalistas em época eleitoral ou denúncias por parte de funcionários e auxiliares de governo – estão se constituindo como práticas reconhecidas e aceitas pelos poderes instituídos e pela opinião pública, com recompensa cash e com a diminuição de penas criminais dos delatores quando estes são criminosos condenados pela Justiça.
O convite à delação tem uma história, cuja expressão mais próxima foi a Revolução Francesa, que reabilitou as medidas do Ancien Régime em jornais publicados entre 1789 e 1791, como La Dénonciation Patriote (A Denúncia Patriótica), L´Espion de Paris (O Espião de Paris) e L’Écouteur aux Portes (O Espreitador de Portas). Denúncias de vizinhos, cartas anônimas ou dossiês preparados para esses fins ocorreram também durante a ocupação alemã em Paris, na Segunda Guerra Mundial, bem como foi rotina nos regimes totalitários, na Alemanha durante o nazismo e na URSS, convertendo-se em política de Estado sob Stalin.
Da demagogia à difamação, do jogo com as engrenagens da Justiça ao direcionamento da opinião pública, da obsessão com a segurança nacional ao patriotismo perverso, da vigilância cidadã ao fim da tranquilidade individual, da defesa do bem público à transgressão do espaço privado, a delação está ligada aos momentos mais sombrios da história. O estudo da delação ao longo do tempo oferece-nos suas relações com o espaço público em que se mesclam verdades e seu contrário, informações e falsificações, intervindo diretamente na formação da opinião pública.
Na ausência de um ministério público, a Atenas democrática antiga – a mesma que inventou a política, o teatro e a filosofia – criou o “delator público”, que dizia respeito à proteção do espaço comum partilhado, o qual reinava soberano. E, para reparar seus abusos, julgava-se também o acusador, analisando suas intenções, a classe social de que provinha e outras circunstâncias de sua vida, podendo ele também ser condenado para o bem da cidade, caso suas intenções fossem de vingança, estritamente subjetivas ou particulares.
Resta saber se o recurso à delação voluntária mediante recompensa em dinheiro não induz à corrupção – dadas as oportunidades que se oferecem para quem procura desembaraçar-se de um adversário indesejado ou então para aquele que se deixa comprar por ele – e, ainda mais, quando vai se tornando um meio para o funcionamento da Justiça. 
Olgária Matos é professora titular de filosofia na Unifesp 

 

 

 

 

 

 

Coronelismo intelectual

Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos
Podemos chamar de “coronelismo intelectual” a prática autoritária no campo do conhecimento. Este campo é extenso, começa na pesquisa científica universitária e se estende pela sociedade como um todo, dos meios de comunicação ao básico botequim onde ideias entram em jogo.
Coronelismo intelectual é a postura da repetição à exaustão de ideias alheias. A reflexão só atrapalharia, por isso é evitada.
Encarnação de prepotente eloquência, o paradoxo do coronelismo é alimentar uma ordem coletiva de silêncio em que o debate inexiste, o culto da verdade pronta ou da ignorância é a regra, bem como a apologia ao gesto de falar sem ter nada a dizer, que culmina no discurso tão vazio quando maldoso da fofoca, versão popular do eruditismo.
Não há muita diferença entre a mesa de bar e a mesa-redonda dos acadêmicos parafraseando qualquer filósofo clássico apenas pelo amor ao fundamentalismo exegético.
Enquanto todos falam sem nada dizer, ajudados pelo jornalista que repete o que se entende pela sacrossantificada “informação”, mercadoria da contra-reflexão atual, os coronéis podem comentar que os outros é que não sabem nada e praticar o “discurso verdadeiro” em seus artigos estilo “mais do mesmo”, moedinha cadavérica com que se enche o cofrinho das plataformas de medição de produtividade acadêmica em nossos dias.
O coronelismo intelectual infelizmente segue forte na filosofia e nas ciências humanas, na verdade dos especialistas, tanto quanto na dos ignorantes que se separam apenas por titulação ou falta dela. Professores e estudantes, sábios e leigos, todos se servem metodologicamente dos frutos dessa árvore apodrecida. A prática do pensamento livre que se autocritica e busca, consciente de sua inconsciência, seu próprio processo de autocriação talvez seja a contraverdade capaz de cortá-la pela raiz.
Intelectual serviçal
Eis a cultura do lacaio intelectual, do bom serviçal sempre pronto à reprodução do mesmo. Nela, a boa ovelha especialista em assinar embaixo as verdades do senhor feudal que um dia as emitiu num ritual de sacralização já não é fácil de distinguir do lobo. A semelhança entre o puxa-saco, o crente e o líder paranóico que o conduz revela a verdade do mimetismo. Os seguidores dos líderes, de rabinho entre as pernas, latem para mostrar que aprenderam bem o refrão.  Abanam as asas ao redor da lâmpada esperando que ela também fique onde está, do contrário não saberiam o que fazer.
As consequências do coronelismo em um país de antipolítica e anti-educação generalizadas como este é algo ainda mais grave do que o medo de pensar. É o fato de que já não se pensa mais. A ausência de debate não é medo de expor ideias, mas a falta delas. Inação é o corolário da impossibilidade de mudar, porque o campo das ideias onde surge a vida já foi minado. O coronel ri sozinho da impossibilidade de mudanças, pois ele ama a monocultura enquanto odeia o cultivo de ideias diferentes ou de ideias alheias. O autoritarismo intelectual não é feito apenas de ódio ao outro, mas da inveja de que haja exuberância criativa em outro território, em outra experiência de linguagem. Conservadorismo é seu nome do meio.
Coronelismo não é simplesmente a zona cinzenta onde não podemos mais distinguir o ignorante do culto, mas a política generalizada introjetada por todos – salvo exceções – pela letal dessubjetivação acadêmica da qual somos vítimas enquanto algozes e que, no campo do senso comum, surge como robotização e plastificação das pessoas entregues como zumbis aos mecanismos do nonsense geral, que, é preciso cuidar, deve ser aparentemente desejável pela liberdade de cada um.
Contra a escravidão intelectual somente um contradesejo pode gerar emancipação. A prática da invenção teórica, a liberdade da interpretação e de expressão nos obrigam a ir contra os ordenamentos da ditadura micrológica do cotidiano, em que a lei magna reza o “proibido pensar”. A direção, como se pode ver, parece que só se encontra, atualmente, no desvio dos caminhos dados.






Incerto amanhã

Do Líbano à Síria e ao Bahrein, do Egito ao Irã e Yêmen, a geopolítica da região irá sofrer mudança radical

Rebelde líbio em Sidra
Olivier Roy
As revoltas espalham-se pelo Oriente Médio, e os jovens que lançaram o movimento de protesto ganham a adesão de um número crescente de manifestantes. Isso nos leva a perguntar onde tudo isso vai terminar e quais serão as consequências geoestratégicas. Seria presunção afirmar que já temos respostas perfeitas neste momento, mas, mesmo assim, podemos começar a refletir sobre essas perguntas.
Se em alguns países a situação é de tudo ou nada (na Líbia, Muammar Gaddafi ou vai afogar a revolta em sangue ou vai desaparecer), em outros estamos assistindo a um exercício de contenção de danos, algo em que o regime atual cria a aparência de estar mudando e, ao mesmo tempo, se esforça para manter as mudanças no menor nível possível.
E, se as potências ocidentais estão aplaudindo o processo de democratização, por enquanto elas não deixam de estar obcecadas pela necessidade de conservar a estabilidade – ou seja, o status quo estratégico: uma paz fria entre Israel e o mundo árabe e a tentativa de montar uma frente unida para isolar o Irã.
Conservadores de várias linhas em diversas sociedades árabes também se preocupam com o rumo provável do movimento democrático e buscam algum tipo de solução de meio-termo.
Um conflito de gerações percorre a oposição às diversas autocracias. Isso se evidencia especialmente no caso daIrmandade Muçulmana, no Egito. A geração mais velha que controla o aparatopartidário ainda está seduzida pelo culto ao líder carismático. Ela é socialmente conservadora e teme que a revolta se espalhe. Embora aceite o pluralismo político, sua cultura não é democrática, e ela desconfia da liberdade de expressão e do debate.
Poderia uma Irmandade Muçulmana tradicionalista tornar-se parceira de um Exército que procura
interlocutores que compartilhem seu desejo de ordem e sua rejeição aos novos movimentos sociais?
Em toda a região, na ausência de elementos do próprio movimento, as figuras que estão administrando a transição vêm do velho regime. Elas não aderiram à cultura política dos manifestantes. Continuam trancadas em uma mentalidade autoritária, pedindo o retorno à normalidade. Não compreendem que anunciar eleições e um punhado de reformas já não é o bastante para tirar as pessoas das ruas.
Cada vez mais é o desemprego ou subemprego entre os jovens que move protestos que reivindicam o fim da monopolização de grandes setores da economia por uma elite. Em todos os países afetados, com exceção da Tunísia, o Exército faz parte dessa elite.
Está claro que, na maioria dos casos, a oposição à moda antiga vai sentir-se tentada a buscar um entendimento com as elites entrincheiradas. Estas, por enquanto, estão prometendo restabelecer um governo que certamente se mostrará mais aberto, mas que nem por isso deixará de ser autoritário.
A divisão crítica aqui é de ordem geracional, mais que ideológica. Uma nova geração de Irmãos Muçulmanos, que já era visível na esfera pública e na internet, está sujeitando os princípios da Irmandade à prova da democracia e da liberdade de expressão.Essa nova geração uniu-se às manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, contrariando os conselhos da liderança da organização.
O mesmo se aplica à geração mais jovem de cristãos coptas, que não quer mais ser representada pelo patriarca, o papa Shenouda 3º.
O problema é que as elites no poder, assim como uma parte da oposição convencional, ainda não
compreenderam quão inovador é o movimento de protesto. Não compreenderam que ele é não violento, que fala em nome da democracia e do pluralismo e que não usa a ideologia para disfarçar divisões sociais.
Em lugar disso, abraça todos os setores da sociedade exceto a família governante e inutiliza todos os velhos instrumentos da repressão, que empregava um misto de violência e suborno.
O que está sendo rejeitado é uma cultura política que sobrevive há 60 anos no Oriente Médio: a aparência de unidade em torno de uma causa (o povo árabe, o islã ou a Palestina) e um líder (o zaim), um Estado erguido sobre os serviços secretos (os mukhabarat) e a vilipendiação de todos os adversários, tachados de traidores a serviço de potências estrangeiras (geralmente os Estados Unidos ou Israel).
O movimento de protesto é democrático e nacionalista, e é provável que fortaleça a posição regional e internacional dos países em que tiver êxito, porque vai instalar governos com legitimidade maior e, consequentemente, dotados de maior liberdade de manobra.
A difusão rápida do movimento por todo o Oriente Médio suscita outra pergunta: até que ponto a democratização (quer ela acabe por ser bem-sucedida, quer não) mudará o equilíbrio estratégico de poder?
O que está acontecendo no Bahrein é um bom indicativo do impacto geoestratégico possível. A divisão religiosa nesse país, onde uma minoria sunita governa a maioria xiita, sugere que uma vitória da democracia empurrará o Bahrein para a órbita do Irã, modificando consideravelmente o equilíbrio de poder no Golfo Pérsico.
Isso porque, entre outras razões, o Bahrein passará a ser visto como exemplo pelos xiitas da Arábia Saudita. É essa, pelo menos, a análise preferencial feita em Riad, e é ela que justifica o apoio saudita, contínuo e inequívoco, à família governante do Bahrein.
Contudo, a oposição barenita (que, por uma vez pelo menos, está associada a um partido político)
apresenta-se não como grupo sectário, mas como movimento que atrai cidadãos de todas as denominações religiosas.
Seus partidários agitam a bandeira nacional – a bandeira da família Khalifa –, e não o estandarte xiita nem as cores do Irã. Ela tem poucos vínculos com a teocracia iraniana, que colocou sob prisão domiciliar um de seus líderes espirituais, o aiatolá Shirazi. E a escola dominante de pensamento religioso no Bahrein, o “akhbarismo”, não é a escola predominante no Irã.
Em suma, a oposição barenita assumiu uma compleição nacional, como fizeram as oposições na Tunísia e no Egito.
Logo, a monarquia barenita encontra-se em um momento de virada. Ou ela continua a identificar-se com a minoria tribal Bani Utbah, que tomou o poder no século 18, ou aceita um conceito mais amplo de cidadania que abarque os dois lados da divisão religiosa – isso, aliás, é justamente o que os manifestantes vêm pedindo.
Nacionalizar-se dessa maneira é o que a monarquia marroquina vem conseguindo fazer no decorrer de sua longa história. No Marrocos, a maior parte da nação identificou-se com a monarquia, de tal modo que esse foi o único Estado árabe verdadeiramente independente durante a era otomana e que conservou sua identidade nacional sob o protetorado francês.
Hoje o movimento de protesto no Marrocos, em contraste com os de outros países da região, não procura solapar o sistema como tal. O que deseja é uma reforma, mais que uma revolução, e uma transição gradual para uma monarquia constitucional. Apesar disso, o círculo extenso que cerca o rei Mohammed 6º teme mudanças que tornem o poder mais transparente e o forcem a abandonar os privilégios de que desfruta.
No Iêmen, o governo está jogando com as velhas divisões entre os povos tribais e os moradores das cidades, além das divisões que separam as tribos do norte do país, historicamente hostis à elite urbana, dos democratas.
No pano de fundo há o movimento secessionista do sul, que se vê como o principal prejudicado pela
reunificação. O presidente Ali Abdullah Saleh terá pouca dificuldade em mobilizar as tribos, cuja intervenção, se acontecer, será sangrenta. Também na Líbia a oposição precisa enfrentar lealdades tribais, embora pareça ter dinamismo suficiente para superá-las.
Na Síria, onde as memórias do massacre de membros da Irmandade Muçulmana em Hama, em 1982, ainda são recentes, a minoria alauita, que detém o poder, sem dúvida sente-se ameaçada e, como Gaddafi, se disporia a resistir.
Na Argélia, enquanto isso, a sombra de dez anos de guerra civil está impedindo os protestos de se espalhar. O regime argelino implantou uma forma inovadora de autorrepressão entre a população, em que ninguém nunca sabe quem está massacrando quem. Isso permite que os militares exerçam o poder de modo mais ou menos sereno e discreto.
Em suma, ao jogarem com divisões culturais, os regimes autoritários no Oriente Médio enfraquecem seus próprios Estados, enquanto forças democráticas estão empurrando esses Estados na direção da homogeneização nacional maior.
Um dos resultados dessa onda de democratização pode ser o fortalecimento do nacionalismo, mas de um nacionalismo regido pela realpolitik, mais que por ideologias supranacionais de qualquer espécie.
Seja qual for o alcance de seu sucesso, é pouco provável que o movimento democrático crie novas formações geoestratégicas (como um choque entre xiitas e sunitas, por exemplo). Pelo contrário,é mais provável que leve ao fortalecimento dos nacionalismos sobre a base de uma administração mais satisfatória das divisões sociais e religiosas.
Contudo, se o nacionalismo sair triunfante, será um nacionalismo muito menos ideológico.
Uma consequência provável de tudo isso, embora inesperada, é a diminuição do papel exercido pelo conflito israelo-palestino na política regional. Ao mesmo tempo, isso terá o efeito de isolar Israel, que perderá seu status muito alardeado de única democracia do Oriente Médio.
É interessante observar quão pouco os integrantes dos novos movimentos vêm aludindo a Israel ou à Palestina, especialmente quando se considera que, até agora, essa situação (Israel-Palestina) vem servindo para frustrar a evolução política em outros países. Isso se deve a como essa situação vem sendo manipulada pelos regimes no poder, mas também por certa esquerda terceiro-mundista ocidental para a qual nada poderia mudar no Oriente Médio enquanto a questão da Palestina não for resolvida.
A cegueira em relação às sociedades árabes não vem sendo exclusiva dos governos ocidentais.
Se a relativa indiferença dos manifestantes em relação a Israel-Palestina tiver o efeito de relegar o governo de Tel Aviv ao segundo plano, ela também tem implicações para o Hezbollah, no Líbano.
Para o Hezbollah, o movimento em busca da democracia encerra dois problemas. Primeiro, ele ameaça
amesquinhar o papel regional do Hezbollah, reforçando a posição dos Estados-nação à custa das ideologias panárabes e pan-islâmicas.
O segundo problema é que ele substitui o pertencimento religioso pela noção da cidadania como fundamento desses Estados. Desse modo, o Hezbollah, que é ao mesmo tempo partido religioso e movimento ideológico vanguardista, vai perder parte da liderança moral que acumulou por opor-se aos regimes forçados e às negociações debaixo dos panos com Israel.
Resta ver como os novos regimes que vão emergir vão se comportar em relação a Israel. É provável que eles mantenham a paz fria, mas uma paz fria que force Israel a confrontar suas próprias contradições e obrigue as potências ocidentais a assumir suas responsabilidades.
Outra vítima colateral da democratização será a frente contra o Irã. Não porque o Irã vá ganhar popularidade, mas porque os novos governantes terão pouca disposição de empreender cruzadas no exterior e não vão mais precisar provar suas boas intenções para um Ocidente que, em lugar disso, terá de reconhecer a vontade do povo.


Olivier Roy foi consultor da ONU Oliver Roy, 62 anos, é professor de teoria social e política no Instituto Universidade Europeia, em Florença, na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais e no Instituto de Estudos Políticos, em Paris.
Um dos principais estudiosos europeus de religiões comparadas e das sociedades islâmicas, foi consultor das Nações Unidas para o Afeganistão. É também diretor de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica, em Paris, além de ter sido professor visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Publicou, entre outros livros, La Sainte Ignorance (A Santa Ignorância) e L´Échec de l´Islam Politique (O Fracasso do Islã Político), ambos pela editora francesa Seuil.



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