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domingo, 12 de junho de 2016

"Vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos)”.

Khlébnikov




CRÍTICA LITERÁRIA

A linguagem labiríntica de Khlébnikov

19 DEZEMBRO, 2014 | POR ISABELA GAGLIANONE
(Editora Perspectiva, 1977, tradução de Aurora Bernardini)
Eu tinha Ka; nos dias da Branca China, Eva, descendo da neve do balão de André, ou vindo a voz “vai!”, deixados nas neves esquimós os rastros dos pés nus, – esperança – estranharia, ao ouvir essa palavra.
Amenofis IV
Em Ka, o sábio do ano 2222 põe o magro crânio reluzente sobre o dedo ensombreado. A movimentação da cena estática é estonteante. O texto é um acontecimento literário e filosófico profundo. E, “naquela época”, em que se passa a narrativa, pretérito imperfeito amalgamado ao futuro do presente – concretizado pela enigmática inscrição numa pedra, “se a morte tivesse os teus cachos e os teus olhos, eu quisera morrer” –, os homens “ainda acreditavam no espaço e pouco pensavam no tempo”: a criação de cenas intelectuais e fantásticas – ideias personificadas ou coisificadas – na prosa de Khlébnikovsobrepõe-se de maneira vertiginosa. Ka parece querer ser encenado como um filme surrealista – um filme-teatro, que não se decidisse enquanto palco ou coxias, cenário absoluto de si mesmo.
O seu primeiro parágrafo é uma apresentação magnífica, da poesia de sua prosa, da personagem título e da questão, central no conto, do tempo – “Ka vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos)”. Há, ali, tanto o tempo como os tempos. E a localização temporal do narrador, conquanto “tinha Ka”, é: “nos dias da Branca China”, expressão que refere-se, como esclarece a nota da tradutora, à Europa, ao entrar na época da aeronáutica; seu tempo é um espaço, marcado pelo tempo (época) de domínio do espaço aéreo. Tautologia onírica, que resume a ambigüidade de Ka, companheiro da morte – vida na morte –, é fusão do tempo e do espaço.
Uma novela rapsódica, um poema épico em prosa, conto-canto ou viagem transespacial e transtemporal. Khlébnikov criou, através da prosa deste seu Ka, uma charada – fenomenológica e poética, histórica e linguística. 

As eruditas notas da estudiosa Aurora Bernardini, responsável pela excelente tradução, nesta edição oferecem contextualizações valiosas. Em uma das primeiras notas, ela nos indica o significado de “Ka”, sombra da alma:
A consoante K, de acordo com Khlébnikov (Cf. “Zanguési”) significa a ausência de movimento, o repouso de uma rede de n pontos, a conservação, por parte destes últimos, de sua posição recíproca – o fim do movimento.
A consoante K rege o resto da palavra, constituída de uma única outra letra, a vogal a, começo do alfabeto, e começo, talvez, em geral. K é o ponto básico que rege a rede dos pontos móveis do conto. Historicamente, trata-se de uma das noções espirituais dos egípcios, de mais difícil compreensão. De fato, de acordo com os primeiros egiptólogos, o Ka expressa “o ser, a pessoa, a individualidade”.
Outros estudiosos designam-no como sendo “uma projeção viva e colorida da figura humana, um duplo que reproduzia em seus mínimos detalhes a imagem inteira do objeto ou do indivíduo ao qual ele pertencia”.

É esta, sem dúvida, a concepção que mais se aproxima do Ka de Khlébnikov” (pp 39, 40).
O próprio título é um dos marcos significativos ao longo dos quais a narrativa se desenrola e, nas palavras de Bernardini, “cujos campos de força se entrecruzam no conto inteiro”. Em Ka, as primeiras palavras do narrador são: “Eu tinha Ka”; logo em seguida, explica:

“[…] Ka é a sombra da alma, seu sósia, enviado para junto daquelas pessoas, com que sonha o senhor roncador. Para ele não há barreiras no tempo; Ka vai de sonho em sonho, atravessa o tempo e alcança os bronzes (os bronzes dos tempos).
Aconchega-se comodamente nos séculos, como numa cadeira de balanço. Não é acaso verdade que também a consciência reúne os tempos juntos, como a poltrona e as cadeiras na sala de visitas?” (p. 13).

Uma função – “a sombra da alma” –, mas também singular e subjetivo – “[…] eu o amei por seu gênio de pássaro, despreocupação, espírito” –, Ka é uma complexa metáfora que abarca opostos, une a morte e a vida, o espaço e o tempo. Resguarda a verdade da linguagem como tenebroso labirinto. A ambivalência de Ka amalgama em si toda a potencialidade da consciência que sai de si e vai ao mundo, retorna a si e traduz-se em eu. Hylé – matéria sensível e subjetiva da consciência – concretizada.
O narrador em primeira pessoa tem seu Ka, no qual seu próprio ‘eu’ reflete-se; encontra-se, graças a seu Ka, com o faraó Amenófis IV – personagem que é tônica temática do conto e que conduz a temporalidade histórica da narrativa, cuja história, porém, aparece sob acontecimentos protagonizados por Ka – que, por sua vez, tem seu próprio Ka. Trata-se da consciência poética refletida em seu próprio reflexo. Como analisou Lidia Neghme Echeverría, o livro, assim,
articula uma ‘viagem imaginária’ do ‘eu’ e do Ka. Esse motivo é recorrente, especialmente, na poesia épica. […] Mas ao morrer, Amenófis IV pede ao seu Ka que lhe transmita o espírito ao mais digno dos homens. Este destino será assumido pelo ‘eu’.
O autor engasta sua ideologia nas reflexões do “eu”. Cria um efeito de espelho: o ‘eu’ apresenta-se, no início, como um escritor da ‘humanicultura’ (p. 13). […] O Ka perfaz a essência/aparência do homem no mundo. Perderemos a identidade assumindo a máscara dum outro ser? No capítulo III, apresenta-se a ironia do ‘eu’: joga com a vontade do mundo” (p. 81).

O eu, reflexo da consciência, resguarda o espelhamento com o mundo como outro, alheio. Khlébnikov, matemático e físico, com seu característico pontilhismo poético articula o problema, de maneira cênica e lúdica. A questão do espelhamento do eu desenvolve-se da ambivalência mútua do tempo e do espaço no conto, no duplo que forma-se entre o onírico e a vigília, a vida e a morte, a essência e a aparência.
Os tempos se misturam, eventos ecoam numa dialética contínua, desafiando o efêmero. Conforme conclui Todorov,
o importante não é, entretanto, o tempo ou o espaço, mas, como escreve Khlébnikov, ‘a medida, a ordem e a harmonia’. Sua finalidade primeira é denunciar o assim chamado acaso, mostrar que não há nada de fortuito, que o arbitrário nada mais é que uma relação ainda ignorada. A harmonia universal reina; o homem deve honrá-la com um cálculo generalizado que revelará suas regras. ‘As leis do mundo coincidem com as leis do cálculo’”.
A própria língua revela-se uma espécie de álgebra. E o problema deste conto em forma de charada, matemático e musical, novamente reflete-se na vida dupla que as próprias palavras tem, para Khlébnikov, enquanto expressão máxima de som e de sentido. Reflete-se também nas palavras como signos – amalgamados –, naquilo que embasam uma lógica de relações de analogia ou contiguidade aplicadas como relações mágicas – assim como o próprio Ka, réplica da alma, “força vital misteriosa” que, na alma, segundo explica nota da tradutora,
continua a viver como um reflexo mágico da vida terrestre, no túmulo do falecido, ou mesmo nas reproduções desses túmulos. […] Operações mágicas lhes conferem eficácia e todas essas réplicas em miniatura tem a capacidade de atrair Ka, pois ele é incapaz de perceber a diferença entre estas e a realidade”.
A própria língua, como forma de pensamento, é o tema central do conto. Metaforizada, aparece mesmo na figura do selvagem, que aparece no conto de maneira explícita e também sugestionada, como a sociedade de macacos na qual Ka cai – cenário enigmático para a morte do faraó Amenófis IV –, e que, enquanto figura metonímica da linguagem pejorativa estereotipada, resguarda em si a imagem do outro por excelência; outrossim, enquanto pensamento, caracteriza-se pela doação de extrema significância aos signos e a tudo a se referem pelas leis de similitude. Assim como Ka. Conforme analisa A. M. Ripelino: “Como nas crenças dos primitivos, no espaço verbal de Khlébnikov, a árvore é um ser humano e ao mesmo tempo um deus panteísta”. Diz o narrador do conto:
Eu moro na cidade, onde escrevem “banhos gratuitos”, onde os selvagens espertos olham com olhos cautelosos. Onde sobem pelas árvores graças à criação de coelhos.[…] nas ruas pastam velofinos rebanhos de pessoas. Eu possuo meu próprio rebanho de pessoas, e em nenhum lugar sonha-se tanto com a coudelaria de Khrenov da estirpe humana como aqui. […] E eu escrevi um livro sobre a humanicultura, mas em volta vagueavam velofinos rebanhos de pessoas. Eu possuo meu próprio pequeno zoológico de amigos, que me são caros pela alta linhagem” (pp. 13, 14).
Velofinos rebanhos de pessoas. A poética de Khlébnikov resguarda a exata hibridez das imagens e das palavras justapostas – velocinos e finos coexistem indubitavelmente –, método conhecido como “verbocriação”. Remete a um só tempo a um animal e a um humano: ironia cáustica. Desdobramento poético da noção de duplicidade harmônica que atravessa Ka de maneira icônica. Na imagem do pensamento em estado selvagem, mágico, no movimento reflexivo da consciência da qual decorre um eu que sai de si ao mundo para voltar a si e formar-se, nas palavras justapostas que resguardam o outro amalgamado em si. Na viagem transtemporal que cala os tempos em um só uníssono, alhures. Khlébnikov cria uma epopéia universal.
As palavras, para ele, vivem uma vida dupla, divididas entre a primazia do som ou da razão. Há palavras-sons, que ultrapassam a razão e atingem a alma. E Ka ensinava que há palavras, com as quais é possível ver, palavras-olhos e palavras-mãos, com as quais é possível fazer. Segundo Boris Schnaiderman, Khlébnikov “deslocou em poesia a ênfase, do som (como faziam os simbolistas) para o sentido. Toda a sua obra é carregada de sentido. Os sons, mesmo quando não pertencem a palavras existentes, estão completamente semantizados”; a contribuição do poeta russo na prosa foi justamente conseguir unir a ela suas preocupações poéticas. Nas palavras de Schnaiderman:
É uma prosa diferente da usual, a prosa de um grande poeta, que tem plena consciência do valor dos elementos sonoros. Isto não significa sempre apagar a fronteira entre o mundo da prosa e o mundo da poesia, porém muitas vezes, pelo contrário, trabalhar no limiar, na crista, utilizando os recursos de uma e de outra e tornando este limiar mais aparente”.
O entroncamento da poesia e da prosa espelha-se na relação do tempo com os tempos, que revela um tempo pessoal de Khlébnikov. Um tempo de ressonância de si mesmo, figura mitopoético que embala um mundo “onomatomorfo”. Mundo em que as palavras carregam verdades ocultas.
Ka talvez seja a própria expressão da literatura como outro da teoria.


Autor: Velimir Khlébnikov









. Os sons, mesmo quando não pertencem a palavras existentes, estão completamente semantizados”; a contribuição do poeta russo na prosa foi justamente conseguir unir a ela suas preocupações poéticas. Nas palavras de Schnaiderman:

sábado, 11 de junho de 2016

Sem perder de vista a mobilização da sociedade de ocupar todas as frentes de ação – no Parlamento, na Justiça e nas ruas – para que a ordem democrática se restabeleça



 Sem perder de vista a mobilização da sociedade de ocupar todas as frentes de ação – no Parlamento, na Justiça e nas ruas – para que a ordem democrática se restabeleça .




Derrotados sucessivamente nas urnas e envolvidos em escândalos negligenciados pela mídia e pelo Judiciário, eles deram o golpe. E representam uma ameaça aos direitos trabalhistas e às políticas sociais
Editorial da Rede Brasil Atual, originalmente publicado no dia 20/05/2016
Para o semanário alemão Die Zeit, o afastamento de Dilma Rousseff foi “declaração de falência do Brasil”. No mesmo país, o site do jornal Der Spiegel, sob a manchete “Um país perde”, observou que o drama em torno da presidenta “é um vexame”, e que os políticos brasileiros apresentaram um “espetáculo indigno a prejudicar de forma duradoura as instituições e a imagem do país”.
No The Guardian, os ingleses leram, sobre Dilma: “Traída por seu companheiro de chapa, condenada por um Congresso contaminado por corrupção e insultada pelo abuso que sofreu como prisioneira da ditadura militar, sofreu um grande golpe”.
O afastamento de um governo por meio de impeachment sem crime é apenas uma face do golpe que humilhou o Brasil. A outra será o pesadelo representado pelo “novo” governo. A temporada de terror com objetivo de inviabilizar o projeto eleito em 2014 começou ainda na eleição, acirrou-se durante os 131 dias de segundo mandato e culminou com a imposição de um governo ilegítimo.
Montada pelos partidos conservadores – sem voto para eleger presidente, mas com farto patrocínio para dominar o Legislativo – com a cumplicidade de setores do Judiciário, a aventura golpista impõe um programa derrotado. Com a tradicional parcialidade da imprensa comercial, o tema da corrupção em breve será esquecido tão logo se esgote a caça aos petistas.
Antes de o golpe se consumar, pesquisas de opinião já apontavam grande rejeição a um comando de Temer. Não é para menos. Em outra investida da imprensa estrangeira, a britânica BBC levantou sua ficha.
Foi citado por delatores da Lava Jato, que apontaram relações do ex-vice com pessoas e empresas que participaram do esquema de corrupção na Petrobras, como as empreiteiras OAS e Camargo­ Corrêa. Nesta, aliás, segundo a BBC, a Polícia Federal encontrou em outra operação, Castelo de Areia, documentos que citam 21 vezes o nome de Temer ao lado de quantias que somam US$ 345 mil. Nem esta operação valeu para o Superior Tribunal de Justiça, nem a Procuradoria-Geral da República pediu investigação ao Supremo Tribunal Federal.
O Tribunal Superior Eleitoral também não admitiu incluí-lo nas quatro ações que o PSDB moveu para tentar cassar Dilma. Tampouco o ex-presidente da Câmara aceitou a cumplicidade do ex-vice nas “pedaladas” que assinou quando substituiu a titular. E nem mesmo a decisão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que o julgou ficha-suja por irregularidades que praticou em campanhas eleitorais de correligionários atrapalhou sua posse.
A aliança formada para dar sustentação ao golpe também não é lá modelo de confiabilidade. Quase todos os partidos que infernizaram os governos Lula e Dilma por dentro, como integrantes da “base aliada”, indicaram nomes ao “novo” ministério e permanecem governistas. Com o agravante reforço da dupla PSDB-DEM, responsável pela cartilha neoliberal nos anos 1990.
Assim, o que esperar de nomes como Alexandre de Moraes no Ministério da Justiça – e portanto no comando da Polícia Federal? Aos inimigos, perseguição; aos amigos, como Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Beto Richa – que têm em comum a plumagem tucana e gestões envoltas em denúncias não investigadas de roubalheira –, blindagem.
Na dúvida, falam por si sua atuação como secretário da Segurança Pública de Alckmin em São Paulo, estado onde o genocídio de jovens negros e pobres espanta o mundo e a repressão a movimentos sociais e da juventude lembra os piores momentos da ditadura. Ou como advogado de clientes que vão de membros do PCC a Eduardo Cunha.
Além do fato de que 350 deputados, 60 senadores e seis integrantes da equipe ministerial de Temer têm o nome envolvido em alguma investigação, as figuras de ­José Serra no Ministério das Relações Exteriores, Henrique Meirelles na Fazenda e Romero Jucá no Planejamento não trazem bons presságios.
O primeiro é um dos mentores das privatizações durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, e está presente em denúncias de negócios impuros jamais investigadas, reunidas a fundo no livro-reportagem A Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Júnior. Defensor da entrega do pré-sal a companhias estrangeiras, sua história o levou a perder duas eleições presidenciais, em 2002 e em 2010. Sua indicação significa distanciamento dos Brics, da América Latina e da África. E a volta à subordinação aos Estados Unidos.
Meirelles comandou o Banco Central durante quase toda a era Lula. É adorado no mercado financeiro, recusou cargo no segundo governo Dilma (agora se sabe por quê) e deve começar a colher nos próximos meses os frutos do ajuste fiscal que minou a popularidade da presidenta afastada. Os primeiros deles, a queda da inflação e da taxa de juros. O banqueiro é quer reforma previdenciária que eleve o limite de idade, reforma trabalhista e não aprecia a política de valorização do salário mínimo.
Jucá é referência da bancada ruralista. Foi líder do governo que traiu no Senado, tentou o quanto pôde alterar a conceituação de trabalho escravo e transferir do Executivo para o Legislativo a prerrogativa sobre demarcação de terras indígenas. Foi cúmplice das “pedaladas” que derrubaram Dilma e terá como colega na Esplanada o sojicultor e bilionário Blairo Maggi, ávido “ativista” pelo fim do licenciamento ambiental.
Estão, enfim, recompostas as forças políticas que durante a era FHC fizeram do desemprego, do arrocho salarial e dos ataques aos direitos dos trabalhadores as âncoras da estabilidade econômica sem distribuição de renda e da política fiscal sem desenvolvimento. De volta ao poder, sem voto, e prontas para voltar à carga. O cenário exigirá dos movimentos sindical e sociais, e partidos ligados a causas populares, ampla unidade para organizar a resistência aos retrocessos.
Estão aí os renovados movimentos da juventude por educação e cidadania a servir de exemplo. Sem perder de vista a mobilização da sociedade de ocupar todas as frentes de ação – no Parlamento, na Justiça e nas ruas – para que a ordem democrática se restabeleça nesses 180 dias derradeiros para que a presidenta eleita retome seu devido lugar.