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sábado, 16 de maio de 2015

A UM BRUXO, COM AMOR



Em 1959, Drummond publicou o poema "A um Bruxo com Amor"




A UM BRUXO, COM AMOR

Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trajestada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.

Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.

Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo
a geologia moral dos Lobo Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.

E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo
(das sensações do mundo a mais sutil):
volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?

O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurar alguma coisa
que não se estende logo
a parece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
É Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova…
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?

Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.

Um som remoto e brando
rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.










Em 1925, o jovem poeta Carlos Drummond de Andrade publicou n'A Revista, de Belo Horizonte, um artigo intitulado "Sobre a tradição em literatura", no qual afirma que, em relação a Machado de Assis, o melhor a fazer é repudiá-lo. 



Aos 22 anos, cheio de ímpeto juvenil, Drummond considerava Machado um romancista tão curioso quanto monótono, mestre de falsas lições, um "entrave à obra de renovação da cultura geral".

Três décadas mais tarde, em 1959, Drummond publicou o poema "A um Bruxo com Amor", uma das mais belas homenagens de escritor para escritor na literatura brasileira. O bruxo do título, obviamente, é Machado; e o poema compõe-se quase inteiramente de frases e expressões tiradas de crônicas, poemas, contos e romances do autor de Dom Casmurro.


Machado de Assis, 
o Bruxo do Cosme  Velho


O que teria se passado com Drummond?

Essa rendição a Machado tem muito a ver com a trajetória do poeta, que ao longo dos anos se distanciou do modernismo iconoclasta, aproximando-se mais e mais da tradição literária, compondo também poemas com metros, rimas e formas clássicas.

Mas essa assimilação lenta e tardia da obra de Machado de Assis mostra também como ele foi uma enorme pedra no caminho dos primeiros modernistas, investidos do propósito combativo de romper com tudo o que soasse a convenção e academicismo. Machado, fundador e presidente vitalício da Academia Brasileira de Letras, foi também um emblema do espírito convencional e acadêmico, aspectos seus muito valorizados nos anos compreendidos entre sua morte, em 1908, e a renovação modernista.

Talvez por isso o silêncio quase sepulcral em torno de Machado durante a década de 1920. Para se ter uma ideia da dimensão desse silêncio, ao longo de toda a década foram publicados cerca de cem textos sobre Machado nos jornais, revistas e editoras de todo o país; nos anos 30, foram mais de 700.

A obra mais significativa de toda a década de 20 foi a reunião da correspondência de Machado de Assis com Joaquim Nabuco, publicada em 1923 por Graça Aranha, com um longo prefácio do autor de Canaã. De resto, o que dominou foi uma espécie das velhas questões associadas à obra - o humor, as figuras femininas, a timidez do escritor... Além disso, certa ênfase no lusitanismo da dicção e a insistência no academicismo do escritor calaram fundo nos círculos modernistas, afastando-os da figura e da obra machadianas, muitas vezes lembrada pela colocação de pronomes correta demais, portuguesa demais.

Dedicados os modernistas à reavaliação e à releitura do nacionalismo oitocentista e da relação da cultura brasileira com as matrizes europeias, a referência mais óbvia e mais positiva para eles era José de Alencar, muito mais forte e presente do que a figura algo incômoda e inclassificável de Machado de Assis.

Por isso, a visão do jovem poeta, que em 1925 ainda assinava Carlos Drummond, não poderia oferecer síntese melhor do entrave que Machado de Assis representava para as novas gerações. Ao contrário de Mário de Andrade, que diria ser impossível amar Machado, Drummond declara seu amor, mas também dá a medida do peso que Machado significava para a sua geração:

"Que cada um de nós faça o íntimo e ignorado sacrifício de suas predileções, e queime silenciosamente os seus ídolos, quando perceber que estes ídolos e essas predileções são um entrave à obra de renovação da cultura geral. Amo tal escritor patrício do século 19, pela magia irreprimível de seu estilo e pela genuína aristocracia de seu pensamento. Mas se considerar que este escritor é um desvio na orientação que deve seguir a mentalidade de meu país, para a qual um bom estilo é o mais vicioso dos dons, e a aristocracia um refinamento ainda impossível e indesejável, que devo fazer? A resposta é clara e reta: repudiá-lo. Chamemos este escritor pelo nome: é o grande Machado de Assis".

Foram pouquíssimos os jovens da década de 20 que tiveram a coragem de dizer aos quatro ventos o que Drummond escreveu, tentando digerir em praça pública a presença ao mesmo tempo incontornável e indigesta de Joaquim Maria.

"O escritor mais fino do Brasil será o menos representativo de todos", escreve Drummond no mesmo artigo e certamente não diz isso por insensibilidade, falta de inteligência ou afinidade com a dicção machadiana - muito pelo contrário, difícil pensar num poeta mais machadiano que Drummond. Dizia isso porque essa era a possibilidade de leitura que ele e sua geração tinham àquela altura. "A razão está sempre com a mocidade", sentencia Drummond. É preciso que a mocidade tenha razão a qualquer custo e possa sacrificar seus ídolos, para não cair no imobilismo. Foi um pouco isso que Drummond e seus colegas de geração fizeram ao virar as costas para Machado durante a década de 20.

O longo silêncio de todos eles na década anterior pode ser atribuído também ao fato de estarem absorvidos pelos próprios projetos literários. Também é razoável supor, até pelo que escreveram mais tarde, que o silêncio se devia ao desconforto causado pela figura de Machado de Assis, tão associada ao academicismo e transformado numa espécie de medalhão.

Por isso, talvez não seja acaso que tanto Mário de Andrade como Manuel Bandeira, quando escreveram sobre Machado, tenham dado tanta atenção à sua poesia, ressaltando seu aspecto técnico e convencional, deixando um pouco à sombra a prosa, certamente mais fora do esquadro e das expectativas e, portanto, mais difícil de ser compreendida.