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terça-feira, 28 de setembro de 2010

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A NOVA ORTOGRAFIA --- A Nova Ortografia é um Bicho-Papão?

 A NOVA ORTOGRAFIA.




 A Nova Ortografia é um Bicho-Papão? 

É. E por isso mesmo não é preciso ter medo dela. Bicho-Papão não existe na realidade, só na nossa imaginação ou no nosso medo. Primeira prova de que na realidade o tal Bicho-Papão ortográfico não existe: não há Nova Ortografia. O que aconteceu foi um “acordo”, entre os países que usam a Língua Portuguesa, para eliminar diferenças entre seus sistemas ortográficos. Esse acordo gerou em nossa ortografia umas poucas mudanças. Mas nosso Sistema Ortográfico continua valendo na grande maioria dos casos. Que maravilha! Ainda sabemos escrever, mesmo sem conhecer o Acordo Ortográfico! Muitos jornais e revistas estão usando o termo errado, portanto. Deveriam dizer “as pequenas alterações” da Ortografia, e não a “NOVA” ortografia. Há pessoas que parecem gostar de enfeitar o Papão só para assustar os estudantes! Seria muito mais didático e útil dizer “Olha, gente, houve um acordo entre os países de Língua Portuguesa, e vamos ter de mudar algumas coisinhas na nossa ortografia, tá?” Mas não, fizeram o contrário. Estão escrevendo até livros a respeito. Parece que a mania em nosso país é dizer que tudo é grandioso, até as pequenas modificações na ortografia, que atingirão apenas 0,47% das palavras. Segunda prova de que o tal Bicho-Papão ortográfico não existe: seis regrinhas novas são para deixar de fazer e não para passar a fazer. Que bom! É mais fácil deixar de fazer o que se sabe do que aprender a fazer o que ainda não se sabe. Não é? Assim, não se preocupe com essa questão da “nova” ortografia no seu exame vestibular, por três razões:

 Primeira – Ainda há tempo para começar a obedecer a essas regras: até dezembro de 2012. Até lá, ninguém poderá penalizá-lo por escrever sem as alterações do Acordo. Se você for do tipo “sossegadão”, deixe para pensar no assunto somente a partir dessa data.
  Segunda – Não poderá haver, portanto, exigência dessas regras em nenhuma situação: concursos, vestibulares, etc. etc. 
Terceira – Como você agora sabe, apenas 0,47% das palavras do português do Brasil serão modificadas na escrita. Isso não alterará em quase nada a ortografia de qualquer texto. Quer uma boa prova? Observe todo este texto do Blog, do título até este ponto. Nenhuma das palavras escritas até aqui é alcançada pela “nova” ortografia. Se o autor deste artigo não conhecesse as novas regrinhas, o texto seria exatamente o mesmo. Isso provavelmente acontecerá com as trinta linhas de sua redação no exame vestibular. Captou? Então, não se preocupe. Esse Bicho-Papão não assusta nem criança. Mas se você é do tipo “ligadão” e não quer deixar para amanhã o que pode aprender hoje, vamos estudar o trema e a acentuação no Acordo Ortográfico de um jeito muito descontraído. São regrinhas do tipo “Deixe disso!”, isto é, deixe de botar o sinal. Assim, 1) DEIXE de usar o trema. O trema morreu, que os Anjos digam amém! Era um mal antiquíssimo criado por algum linguista louco e eloquente, uma coisa de equino que ninguém mais aguentava. Vamos ficar cinquenta vezes mais tranquilos e será ótimo depois de uma sequência de cinco anos comemorar um quinquênio sem tremar coisa nenhuma. 

 2- DEIXE de colocar o acento agudo sobre a vogal aberta tônica dos ditongos -EI- e -OI- em palavras paroxítonas terminadas em -EIA, -EIAS, -EICO, -EICOS, -OIA, -OIAS, -OIAM, -OICO, -OICOS, -OIDE, -OIDES, -OIE, -OIES, -OIEM, -OIO, -OITO, -OITOS. Que joia! Não me sinto mais um androide moloide que não sabia se devia acentuar ou não colmeia. Apoio e espero que você apoie e todos apoiem inteiramente essa ideia. Foi um esforço estoico e heroico acabar com essa paranoia. Mas, cuidado! Só as paroxítonas com esses ditongos ficam sem acento; as oxítonas continuam sendo acentuadas: Você vai continuar pagando aluguéis, usando anéis, pescando com anzóis, comendo caracóis, enrolando fios nos carretéis, ligando os faróis, tirando o chapéu, andando ao léu, lavando os lençóis, defendendo o réu e sendo um fiel entre os fiéis. 


 3- DEIXE de acentuar o -U- tônico que surge após ditongo em palavras paroxítonas como baiuca, bocaiuva, boiuno, reiuna, reiuno, feiura. Para falar a verdade, a gente já tinha deixado de fazer isso havia muito tempo, não é? E ninguém notava! Mas, cuidado também aqui! Só as paroxítonas. As oxítonas continuam com o acento: teiú, teiús, sucuruiú, sucuruiús, tuiuiú, tuiuiús, Piauí. 

  4- DEIXE de usar o acento circunflexo sobre o -E- e o -O- tônicos de palavras paroxítonas terminadas em -EEM, -OO, -OOS: creem, deem, descreem, leem, preveem, releem, reveem (verbo rever), veem (verbo ver), abençoo, abotoo, acoroçoo, acorçoo, assoo, caçoo, coo, doo, enjoo, magoo, perdoo, reboo, ressoo, revoo, soo, voo. 

 Não confunda: continua valendo a distinção gráfica entre a terceira pessoa do singular e a do plural no caso dos verbos “ter” (ele tem, eles têm) e “vir” (ele vem, eles vêm). E assim também correspondentemente em: mantém, mantêm; retém, retêm; entretém, entretêm; sustém, sustêm; contém, contêm; advém, advêm; convém, convêm; provém, provêm. Mas, como você já fazia isso, é só um lembrete. 


 5) DEIXE de usar o acento diferencial em pólo, pôlo, péla, pêlo, pára, pêra. Agora é tudo polo, polo, pela, pelo, para, pera, não importando a pronúncia nem a classe de palavra.  

Veja como ficou fácil: 

Ele come uma pera e para para jogar polo. Sobraram apenas duas palavras em que é obrigatório: pôr (verbo) para diferençar de por (preposição) e pôde (pretérito perfeito) para diferençar de pode (presente do indicativo, com “o” aberto); e uma palavra que você poderá usar com acento diferencial, se achar que tornará mais clara a frase em que aparecer: fôrma, para diferençar de forma. Ontem o padeiro não pôde pôr a massa na fôrma, porque estava amassada e perdeu a forma, mas hoje ele pode, por ter comprado duas fôrmas novas. 


 6) DEIXE de usar o acento agudo no -U- tônico dos grupos -GUE, -GUI, -QUE, -QUI: apazigue, apazigues, arguem, argui, arguis, arguem, averigue, averigues, averiguem, oblique, obliques, obliquem, redargui, redarguis, redarguem. 

  Muito fácil, não?

 Não é muita coisa. Sim, mas a regra do hífen?

 Vixe! Essa é fera! É Papão mesmo. Como assustava até os gramáticos, tentaram deixar menor o bicho, mas ele aumentou, e agora até os criadores do monstro têm dúvidas. Vamos tocar no assunto noutra oportunidade, depois que sair a segunda edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP. A primeira ainda não resolveu tudo.

Cruzadas; "IDADE MÉDIA" ; Auto da Barca do Inferno ; Análise da obra de Gil Vicente







Auto da Barca do Inferno 
         Análise da obra de Gil Vicente







PERSONAGENS

Fidalgo: representa a nobreza, que chega com um pajem, uma roupagem exagerada e uma cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados. Ao Fidalgo, nada lhe valem as ―compras‖ de indulgências, ou orações encomendadas. A crítica à nobreza é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e a prática da tirania.Onzeneiro: o segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro, usuário que ao chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra. Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar, mas acaba cedendo às exigências do julgamento.
Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.
Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o aventar e as formas. Engana na vida e procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios.Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Acompanhado de sua amante, o Frade acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos, mas contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se observar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e afé.

 Brísida Vaz: misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. Personagem interessante que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.Judeu: entra acompanhado de seu bode. Deplorado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros, converteram-se ao cristianismo, sendo tachados cristãos novos.Corregedor e o Procurador: ambos representantes do judiciário. Juiz e advogado deviam ser exemplos de bom comportamento e acabam sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas.
Enforcado: chega ao batel, acredita ter o perdão garantido: seu julgamento terreno e posterior condenação à morte o teriam redimido de seus pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno.
Cavaleiros: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo

Auto da Barca do Inferno Análise da obra de Gil Vicente , detalhe de quadro português anônimo de 1520 Antes de mais nada, "auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois tornou-se popular, para distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que introduziu esse tipo de teatro em Portugal. O "Auto da Barca do Inferno" (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno. Resumo do enredo Os mortos começam a chegar. Um fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Mas ele, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo a rever sua amada, pois esta "sente muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando. Um agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno. O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo. Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu. Mais personagens A alma seguinte é a de um sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o diabo.  Como não consegue, recorre ao anjo, que o condena como alguém que roubou do povo. O frade é o quinto a chegar... com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso. Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são "seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria. Judeus e "cristãos novos" A seguir, é a vez do judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo, pedindo para embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo, porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O judeu fala então com o anjo, porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim, rebocados. Tal trecho faz-nos pensar em preconceito anti-semita. É necessário entender, porém, que durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época. Representantes do judiciário O corregedor e o procurador, representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos. Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa familiaridade com a cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela... O próximo a chegar é o enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção. Por fim, chegam à barca quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente. O bem e o mal Como você percebeu, todos os personagens que têm como destino o inferno possuem algumas características comuns, chegam trazendo consigo objetos terrenos, representando seu apego à vida; por isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são cristãos e puros. Você pode perceber que o mundo aqui ironizado pelo autor é maniqueísta: o bem e o mal; o bom e o ruim são metades de um mundo moral simplificado. 




 ATIVIDADES COMENTADAS


1) Na seguinte cena do Auto da Barca do Inferno, o Corregedor e o Procurador dirigem-se à Barca da Glória, depois de se recusarem a entrar na Barca do Inferno:

Corregedor Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
Anjo Ó pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Corregedor Ó! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
Joane (Parvo) Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et perniz perdiguitorum
e mijais nos campanairos!
Corregedor Ó! Não nos sejais contrairos,
Pois nom temos outra ponte!
Joane (Parvo) Beleguinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
pera: para
habeatis: tende
homens dos breviairos: homens de leis
Rapinastis coelhorum/Et perniz perdiguitorum:
Recebem coelhos e pernas de perdiz
como suborno
Beleguinis ubi sunt?: Onde estão os oficiais de justiça?
Ego latinus macairos: Eu falo latim macarrônico

(Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 107-109.)


a) De que pecado o Parvo acusa o homem de leis (Corregedor)? Este é o único pecado de que ele é acusado napeça?
    O Corregedor é acusado de corrupção na passagem em que o Parvo se refere ao fato de ele receber subornos, “presentes”, “propinas”, “agrados”, “pequenos mimos” tais como coelhos e pernas de perdizes. Além disso, o Corregedor é acusado, na peça, de ser desrespeitoso (mijar nos campanários), injusto com relação aos desfavorecidos, preguiçoso e adúltero, pecados pelos quais é condenado a seguir com o Diabo na Barca do Inferno.

ANALISANDO.

  Além de identificar o pecado de suborno praticado pelo Corregedor, apontar
também o outro pecado do qual a personagem citada foi acusada durante a peça.
o primeiro pecado: suborno. No que diz respeito ao outro pecado,: desrespeito aos mandamentos da igreja, heresia, adultério (por usufruir dos serviços de BrísidaVaz), injustiça, desonestidade, falta de ética, falta de profissionalismo, ou sinônimos. O principal é que se perceba que o Corregedor foi acusado na peça de Gil Vicente de vários deslizes cometidos no exercício de sua função e em sua conduta moral como um todo., no entanto, entender que a resposta para a segunda parte do item a deverá ser positiva (sim, suborno é o único pecado do qual o Corregedor foi acusado na peça .



b) Com que propósito o latim é empregado pelo Corregedor? E pelo Parvo?

   Por se tratar de língua da tradição dos bacharéis, o latim é empregado pelo Corregedor como símbolo de distinção e prestígio, tal como a vara e os processos que ele carrega nas mãos. Na verdade, no contexto em que os termos latinos são empregados indistintamente pelo Corregedor como sinal de afetação, arrogância,superioridade e status social, pode-se observar uma certa ironia por parte de Gil Vicente, a qual se explicitará na fala do Parvo. O Parvo se expressa em latim para ridicularizar e ironizar a postura dos magistrados. Chega a admitir essa intenção, ao afirmar que seu latim é macarrônico.

ANALISANDO

      No item b, deverá ficar claro na resposta  que a intenção do Corregedor é demonstrar sua
condição de homem de leis – o latim visto como língua do direito – e que, por isso, ele deveria ser tratado de maneira diferenciada pelo Anjo e ser conduzido à barca que se dirigia ao Paraíso. O Parvo, por sua vez, usa o latim a fim de satirizar o Corregedor e sua tentativa de mostrar-se superior através da linguagem. Foi um equívoco bastante comum é identificar o latim como língua oficial da igreja, afirmando que o Corregedor estaria usando tal idioma de modo a convencer o Anjo – através daquela que seria sua linguagem própria – a levá-lo para a Barca da Glória. Esse tipo de resposta, embora muito recorrente, não se mostra adequado, uma vez que em nenhum momento o latim é usado pelo Anjo na peça como língua de autoridade da igreja. E, no momento em que o Parvo aparece deturpando a língua latina – chamado por ele mesmo de “latim macarrônico” –, fica claro que a razão para o uso dessa linguagem nada tem a ver com uma crítica ou exaltação específica à religião, mas sim com uma clara ironia contra aqueles que tentam usar essa língua como forma de distinção e poder.

  Características 

    O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia (Autos da Barca "da Glória", "do Inferno" e "do Purgatório"). Escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem entre os personagens é coloquial - e é através das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens. Valores de duas épocas Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os seus valores morais de duas épocas: ao mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra também está  religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval. A sátira social é implacável e coloca em prática um lema, que é "rindo, corrigem-se os defeitos da sociedade". A obra tem, portanto, valor educativo muito forte. A sátira vicentina serve para nos mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que havia um mundo melhor, em que todos eram melhores. Mas é um mundo perdido, infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um tanto pessimista. Idade Média "Idade das trevas", período medieval durou dez séculos Brasão mostra cavaleiro andante, símbolo medieval no imaginário popular A Idade Média e os temas medievais são usados até hoje em histórias reais ou fantásticas que chegaram até nós. Assim, os contos de fada, com suas princesas, castelos, dragões e reis, são geralmente ambientadas na Idade Média. Ainda ouvimos falar também da bravura dos cavaleiros das Cruzadas, que atravessaram o Oriente Médio e a Europa para lutar contra os infiéis. Muitos rituais católicos têm origem medieval. Enfim, a Idade Média é uma fonte de histórias infantis, de lendas, filmes, jogos e videogames.   Mas ela se compôs fundamentalmente de fatos reais. Por isso, devemos separar a realidade da imaginação. As pessoas, hoje em dia, têm uma visão idealizada desse passado, que foi recriado no imaginário da humanidade durante os últimos séculos. Por exemplo, muitos contos de fada foram escritos por autores românticos do século 19, tendo como base histórias do folclore que eram contadas por diversos povos ao longo dos séculos. Desse modo, os autores românticos inventaram um passado medieval cercado de ricos castelos e belas princesas. Isso estava dentro de um ideal artístico, que, no entanto, estava longe de espelhar a realidade da maioria da população que vivia naquele período. Idade "média" por quê? Mas o que devemos entender, afinal de contas, quando dizemos "Idade Média"? 



"IDADE MÉDIA" 


          Esse termo refere-se a uma divisão do tempo que engloba praticamente 1.000 anos de história do continente europeu. Essa classificação para o período - "Média" - foi uma forma de os homens dos séculos 14 e 15, dos reinos italianos, mostrarem que eram inovadores, modernos, transformadores. Esses homens - pintores, artistas e pensadores do chamado Renascimento - achavam que estavam rompendo com um período culturalmente atrasado do mundo ocidental, dominado pelo pensamento da Igreja católica.  Assim, os renascentistas classificavam-se como "modernos" e acreditavam que estavam fazendo renascer o esplendor das culturas grega e romana da Antigüidade. Entre a Idade Moderna e a Idade Antiga havia, portanto uma idade intermediária, que ficava no meio, sendo a média entre esses dois períodos. Assim nasceu o conceito de Idade Média. Essa classificação, na verdade, é uma simplificação preconceituosa, pois classifica uma cultura como inferior a outra e resume a história de diversos povos que viviam na Europa como uma só história. De qualquer forma, o estudo desse período é extremamente importante, para podermos entender diversos aspectos da história do mundo ocidental. Roma, Ocidente e Oriente A Idade Média tem como marcos de seu começo e seu fim duas datas que se referem ao Império Romano. Seu início é marcado pela tomada de Roma pelos germanos: a derrubada do Império Romano do Ocidente ocorreu no ano de 476. O fim da era medieval é dado pelo ataque de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, tomada pelos turcos em 1453. Alta e Baixa Idade Média Para compreender melhor esse vasto período, costuma usar-se uma subdivisão temporal entre Alta e Baixa Idade Média. A Alta Idade Média é o primeiro momento, quando ocorreu formação de diversas sociedades na Europa e se passou entre os séculos 5 e 10. Foi nesse período que se formaram os feudos, estabeleceram-se as relações de suserania e vassalagem, e o poder da Igreja Católica constituiu-se e fortaleceu-se. Já o período da Baixa Idade Média, sua segunda e última fase, foi aproximadamente do século 10 ao século 15. A partir dessa época, novas idéias e novas práticas foram surgindo e houve um processo de decadência das instituições feudais, que se formaram ao longo dos cinco séculos anteriores. Idéias equivocadas sobre a Idade Média No entanto, mais do que pensar em auge e decadência, nascimento e morte de uma época, é importante entender que todos os aspectos que formaram o pensamento e as práticas medievais estão longe de representar um cenário único, um panorama unitário. A idéia de Idade Média desde de muito tempo esteve associada a atraso, a uma época de "trevas" no conhecimento, de pouca liberdade e de restrita circulação de idéias.   
            Embora essa concepção não esteja totalmente errada, de maneira nenhuma podemos imaginar que foi somente isso que ocorreu no continente europeu durante os 1.000 anos de duração do período medieval. Por que não podemos dizer que a Idade Média foi uma época só de atraso para os povos europeus? Porque, embora impregnada pela mentalidade religiosa, a cultura floresceu, como comprova a arquitetura da época, com suas grandes catedrais. Da mesma maneira, no interior da Igreja, diversos pensadores se esforçaram para conciliar a religião cristã com a filosofia grega, em especial a de Aristóteles. Ao mesmo tempo, assentando-se sobre a organização social e jurídica do antigo Império Romano, a Igreja contribuiu para civilizar as tribos e reinos bárbaros. Ao mesmo tempo, se é fato que durante a Alta Idade Média a economia esteve praticamente centrada na agricultura, isso ocorria porque os feudos produziam grande parte dos produtos que necessitavam consumir e a circulação de pessoas era restrita numa Europa povoada por fortificações isoladas uma da outra. No entanto, nem sempre esse cenário correspondeu à Europa inteira.  Além dos feudos Assim, nem todas as relações sociais e de produção estavam concentradas nos feudos, com os senhores e servos. A partir do século 10, os povos que não se encaixavam nesse esquema, que viviam de outras atividades, como comércio e negócios, começaram a morar no entorno dos feudos, nas áreas de passagem e de feiras. Enfim, não podemos mais continuar repetindo que a Idade Média (séculos 5 a 15) seja um período "de trevas", de falta de conhecimento e de opressão contra os povos. Repetir isso é complicado porque estaremos concordando com os artistas renascentistas, os "modernos", que tinham uma visão preconceituosa sobre o período medieval. Na verdade, a própria Idade Moderna (a partir do século xv) foi conseqüência de muitas conquistas medievais, como o renascimento comercial da Europa (século xI), obtido principalmente devido a ação das Cruzadas (séculos XI e XIII). 


 
                                 Cruzadas 


                Igreja promove expedições militares para conquistar Jerusalém Gravura medieval mostra cerco aos muçulmanos na cidade de Antioquia Entender o que foram as Cruzadas não é difícil se partirmos inicialmente do entendimento de seu próprio nome. Seu nome deriva da palavra "cruz", que indica o martírio de Jesus Cristo, carregando-a e sendo nela pregado, até morrer de maneira lenta e dolorosa. Durante a Idade Média, a Igreja transformou a cruz no símbolo do cristianismo. Assim, as Cruzadas foram expedições organizadas pela Igreja para levar o cristianismo para outros povos, que não seguiam essa religião. No entanto, para impor essa cruz, ou a fé em Cristo, para ou praticantes de outras religiões, não adiantava usar somente a palavra. Para povos que oferecessem resistência, a palavra seria de pouca serventia. Assim, a força armada era o principal elemento dessas expedições, que se denominavam também de "Guerra Santa". A principal justificativa das Cruzadas foi reconquistar territórios perdidos para os inimigos da fé católica, ao mesmo tempo trazendo novos povos e regiões ao domínio da Igreja. Assim, a primeira Cruzada partiu em 1096 para Jerusalém, no Oriente Médio, região do nascimento de Jesus, considerado lugar sagrado pelos cristãos. "Infiéis" na Terra Santa Jerusalém havia sido dominada pelos turcos, que eram praticantes do Islamismo e proibiram a presença cristã na chamada "Terra Santa". Essa primeira Cruzada durou três anos: percorreu grande parte do continente europeu e, atravessando parte do mar Mediterrâneo, chegou a Jerusalém por terra. Ao longo de mais de 200 anos, entre os séculos XI e XIII, foram realizadas oito Cruzadas. A mais longa durou seis anos e a mais curta, apenas um.   
No decorrer desse período, as Cruzadas foram desfazendo o isolamento em que a Europa se metera na Alta Idade Média, e reativando cada vez mais o trânsito por mar, chegando, inclusive, a retomar o contato com o continente africano. Essas expedições em busca de novas terras atraíam milhares de pessoas. Havia um forte elemento religioso que motivava essas pessoas a virarem os "soldados de Deus". Ao atribuir às Cruzadas o caráter de "Guerra Santa" e considerá-las sagradas, a Igreja católica prometia aos seus soldados um lugar no Paraíso, depois de sua morte. Mas, além da justificativa religiosa, o interesse econômico de atacar outros povos, invadir suas cidades e saquear suas riquezas, era certamente algo interessante para os cavaleiros que marchavam nas Cruzadas. Uma Cruzada paralela Assim, mais do que empreendimentos exclusivamente espirituais, as Cruzadas foram financiadas tanto pela Igreja, como pelos nobres e por ricos comerciantes, como um negócio ou investimento. Por outro lado, uma legião de miseráveis acabou se juntando à primeira delas, e compôs uma Cruzada paralela, não oficial, que chegou a ser condenada pelo Papa. Isso ocorreu entre 1096 e 1099. Assim, essa primeira expedição oficial que rumava para Jerusalém, a fim de reconquistar a terra ocupada pelos turcos, foi copiada por uma expedição de pobres e miseráveis, que também queria seu lugar no céu, bem como riquezas na Terra. No entanto, essa "Cruzada paralela", organizada por Pedro, o Eremita, que conseguiu juntar 50 mil fiéis, foi aniquilada ao chegar em Constantinopla. Já a Cruzada oficial, financiada pela nobreza e comandada por Godofredo de Bouillon, contou com 100 mil homens soldados e terminou com um final feliz para os cruzados: eles conseguiram não só reconquistar Jerusalém, como também a tomar a terra dos turcos. Saladino e Ricardo Coração de Leão Quase 50 anos depois, Jerusalém foi reconquistada pelos turcos e a Igreja teve nova justificativa para empreender uma outra Cruzada. Assim, entre 1147 e 1149, ocorreu a Segunda Cruzada, financiada por nobres franceses e germânicos. No entanto, essa campanha resultou num grande fracasso para os europeus. Quatro décadas se passaram, quando se resolveu empreender mais uma expedição militar à Terra Santa, que, dessa vez, estava sob o domínio de um sultão árabe, Saladino. Essa Terceira Cruzada, ocorrida entre 1189 e 1192, mais do que ter financiamento dos nobres, teve a presença dos reis de três dos principais reinos daquele período: da França, com Felipe Augusto; da Inglaterra, com Ricardo Coração de Leão, e do reino germânico, com Frederico Barba Ruiva. Apesar disso, a expedição também foi derrotada militarmente. O Barba Ruiva morreu antes de chegar ao campo de combate, ainda que Ricardo Coração de Leão tenha conseguido um acordo com Saladino, o que permitiu aos cristãos pelo menos o direito de rezarem desarmados em Jerusalém. Venezianos e crianças As demais Cruzadas não foram expressivas pelo sucesso de sua missão religiosa, mas por outros motivos. Assim, a Quarta Cruzada, realizada entre 1201 e 1204, que foi financiada pelos comerciantes de Veneza, trouxe grandes benefícios a seus organizadores, pois submeteu povos da Grécia e os bizantinos aos tratados comerciais venezianos. Em 1212, houve uma Cruzada bastante curiosa, não reconhecida pela Igreja católica, organizada por um menino de 12 anos, chamado Estevão de Cloyes. Este garoto conseguiu juntar com ele mais 30 mil jovens, que acreditavam que o Mar Mediterrâneo se abriria para eles chegarem até o Oriente Médio. Muitos comerciantes e proprietários de navios se interessaram por essa Cruzada, prometendo transportar as crianças para a Terra Santa. Na verdade, o que fizeram foi vendê-los como escravos nas cidades pelas quais passavam. As últimas Cruzadas Todas as outras Cruzadas foram fracassos militares: tanto a Quinta, organizada entre 1217 e 1221, quanto a Sexta, realizada entre 1228 e 1229. Esta última foi condenada pelo Papa, pois seu líder, Frederico 2º, Imperador do Sacro Império Germânico passou por cima da autoridade papal, fazendo acordos diplomáticos com os egípcios. Finalmente, com quase 30 anos de distância uma da outra, a Sétima e a Oitava Cruzadas foram realizadas pelo rei francês Luiz 9º. Este rei, tratado com um santo pela Igreja católica, foi feito prisioneiro pelos seus inimigos durante a Sétima Cruzada (que durou 6 anos, entre 1248 a 1254). Na Oitava e última Cruzada, que durou apenas um ano, em 1270, o final da expedição foi ainda pior. A maior parte dos cruzados, inclusive Luiz 9º, acabou morrendo de peste antes de chegar à Terra Santa. Como pudemos ver, as Cruzadas envolveram interesses e crenças de diversos grupos sociais da Idade Média. Pobres, vagabundos, crianças sem perspectiva; nobres poderosos, influentes reis em busca de expansão de seus poderes; ricos comerciantes dispostos a estabelecerem novas rotas de comércio. Todos essas pessoas, com seus projetos e intenções fizeram parte das expedições religiosas e armadas, idealizadas pela Igreja católica para ampliar o domínio do cristianismo no mundo.




         Gil Vicente teve diversas farsas e comédias proibidas pela Inquisição portuguesa Pouco se sabe sobre a vida de Gil Vicente, autor de Auto da Barca do Inferno. Ele teria nascido por volta de 1465, em Guimarães ou em outro lugar na região da Beira. Casado duas vezes, teve cinco filhos, incluindo Paula e Luís Vicente, que organizou a primeira compilação das suas obras. No início do século 16, há referência a um Gil Vicente na corte, participando dos torneios poéticos. Em documentos da época, aparece outro Gil Vicente, ourives, a quem é atribuída a Custódia de Belém (1506), recipiente para exposição de hóstias feita com mais de 500 peças de ouro puro. Há ainda mais um Gil Vicente que foi "mestre da balança" da Casa da Moeda. Alguns autores defendem, sem provas, que os três seriam a mesma pessoa, embora a identificação do dramaturgo com o ourives seja mais viável, dada a abundância de termos técnicos de ourivesaria nos seus autos. Ao longo de mais de três décadas, Gil Vicente foi um dos principais animadores dos serões da corte, escrevendo, encenando e até representando mais de quarenta autos. O primeiro deles, o "Monólogo do Vaqueiro" (ou "Auto da Visitação"), data de 1502 e foi escrito e representado pelo próprio Gil Vicente na câmara da rainha, para comemorar o nascimento do príncipe dom João, futuro rei dom João 3o. O último, "Floresta de Enganos", foi escrito em 1536, ano que se presume seja o da sua morte. 


         O "Auto da Sibila Cassandra", escrito em 1513, introduz os deuses pagãos na trama e por isso é considerado por alguns como o marco inicial do Renascimento em Portugal. Alguns dos autos foram impressos sob a forma de folhetos e a primeira edição do conjunto das obras foi feita em 1562, organizada por Luís Vicente. Dessa primeira compilação não constam três dos autos escritos por Gil Vicente, provavelmente por terem sido proibidos pela Inquisição. Aliás, o índice dos livros proibidos, de 1551, incluía sete obras do autor. Gil Vicente foi considerado um autor de transição entre a Idade Média e o Renascimento. A estrutura das suas peças e muitos dos temas tratados foram desenvolvidos a partir do teatro medieval, defendendo, por exemplo, valores religiosos. No entanto, alguns apontam já para uma concepção humanista, assumindo posições críticas. Em 1531, em carta ao rei, Gil Vicente defendeu os cristãos-novos, a quem tinha sido atribuída a responsabilidade pelo terremoto de Santarém. Também no "Auto da Índia" apresentou uma visão antiépica da expansão ultramarina. Gil Vicente classificou suas peças dividindo-as em três grupos: obras de devoção, farsas e comédias. Seu filho, Luís Vicente acrescentou um quarto gênero, a tragicomédia. 

 
        Estudiosos recentes preferem considerar os seguintes tipos: autos de moralidade, autos cavaleirescos e pastoris, farsas, e alegorias de temas profanos. No entanto, é preciso lembrar que, por vezes, na mesma peça encontramos elementos característicos de vários desses gêneros. Gil Vicente vai muito além daquilo que, antes dele, se fazia em Portugal. Revela um gênio dramático capaz de encontrar soluções técnicas à medida das necessidades. Nesse sentido, ele pode ser encarado como o verdadeiro criador do teatro nacional. Por outro lado, a dimensão e a riqueza da sua obra constituem um retrato vivo da sociedade portuguesa, nas primeiras décadas do século 16, onde estão presentes todas as classes sociais, com os seus traços específicos, seus vícios e suas preocupações. Também no aspecto lingüístico o valor documental da sua obra é inestimável e constitui uma grande fonte de informação sobre o início do século 16 em Portugal. Feudalismo Servidão, impostos, taxas, suserania e vassalagem Camponeses trabalham na terra do senhor feudal Estudar o feudalismo é conhecer a fundo o modo como viviam as pessoas no período medieval. O feudalismo pode ser definido como um modo de produção, ou seja, a forma pela qual as pessoas faziam produtos necessários à sua sobrevivência.     Também é entendido como um sistema de organização social, estabelecendo como as pessoas se relacionavam entre si e o lugar que cada uma delas deveria ocupar na comunidade. O feudalismo consolidou-se a partir do século 8 e teve seu período de maior desenvolvimento até o século 10. Depois disso, esse modelo de sociedade ainda sobreviveu em alguns reinos europeus até o século 15, no final da Idade Média. Mas, para entendermos como ele surgiu, é necessário voltarmos ao próprio início da época medieval.  O fim do Império Romano O marco do início da Idade Média foi a desagregação do Império romano do Ocidente, sediado em Roma, no século 5. Esse Império estava passando por sucessivas crises econômicas, devido à falta de escravos, e seu prestígio político declinava, devido a seu enfraquecimento militar e às invasões de povos bárbaros aos seus domínios. Isolamento e proteção dos feudos Assim, povos como os germanos (do Norte da Europa), os hunos (da Ásia), os vândalos (da África), além de húngaros e vikings (da Europa oriental) estavam atacando diversos pontos dos domínios romanos. Em 476, Odoacro, rei de um desses povos invasores, derrubou o imperador de Roma. A partir de então, os diversos povos, antes conquistados por Roma, passaram a se organizar em reinos, condados e povoados isolados, para se protegerem dos ataques dos estrangeiros. Esse isolamento também se estendia à área econômica, levando-os a manter basicamente uma produção para consumo próprio. A população mais pobre, que vivia de trabalhos no campo, passou a submeter-se aos interesses dos poderosos de uma região, em troca de proteção contra esses ataques externos. Poder, no caso, significava a posse de armas e o comando de soldados. O estabelecimento dessa proteção dos mais poderosos aos pobres, em troca da lealdade, foi adotada pelos povos germanos, que foram dominando grande parte do extinto Império romano do ocidente. Com o passar dos séculos, os camponeses foram se tornando cada vez mais dependentes desses senhores. Assim, os trabalhadores do campo, além de entregarem os produtos que cultivavam aos seus protetores, passaram a dar-lhes suas terras e oferecerem seus serviços para outras atividades. Com isso, grande parte dos camponeses tornaram-se servos. Servidão: uma escravidão mais branda A servidão era uma espécie de escravidão mais branda, pois, ainda que os servos não fossem vendidos, estavam obrigados por toda a vida a entregarem produtos e prestarem serviços a seus senhores. Além disso, não eram proprietários das terras em que trabalhavam, pois estas lhes eram "emprestadas" pelos senhores. A servidão era transmitida dos pais para os filhos, assim como os títulos de nobreza também eram hereditários. Por sua vez, os nobres poderosos eram os chamados senhores feudais. Tinham esse nome em função do tipo de propriedade que possuíam, os feudos. Estes eram extensas propriedades de terras, mantidas isoladas para garantir a proteção das pessoas que ali viviam dos ataques de inimigos externos. Essas unidades eram supridas com uma produção de alimentos quase auto-suficiente, ou seja, produzida pelos próprios moradores, na medida de suas necessidades de consumo. No plano dessas relações servis, havia diversos tipos de impostos que os servos tinham que pagar aos seus senhores, incluindo também os serviços que prestavam a eles. Desse modo, no manso senhorial - que eram as terras do feudo de uso do senhor e representavam um terço da área total - os servos tinham que trabalhar vários dias por semana, numa prática chamada de corvéia. Impostos e taxas do feudo No manso servil - que eram as terras pertencentes ao feudo, de uso dos camponeses, mas não de sua propriedade - parte do que era produzido ia para o senhor feudal. Essa taxa ficou conhecida como talha. Como os senhores feudais não deixavam escapar nenhuma oportunidade de cobrança de taxas ou impostos, os servos também pagavam a banalidade, um imposto pelo uso dos fornos e moinhos que o senhor controlava. Havia também um pagamento relativo ao número de servos que moravam nos feudos, e era cobrado individualmente, "por cabeça" (ou em latim per capita): era a capitação. Por fim, o imposto da mão morta é uma demonstração cabal de até onde podia chegar a exploração dos senhores feudais sobre os servos, pois, além de herdar a servidão dos pais, quando estes morriam, os filhos ainda deveriam pagar mais essa taxa, para continuarem servindo ao mesmo senhor. Mas não eram somente servos e senhores feudais que viviam em função dos feudos. Havia também homens livres e vilões (moradores de vilas, ou pequenas povoações). Estes eram pessoas pobres, que, para terem direito de plantar e colher em suas terras, trabalhavam também no manso senhorial, pagando ao senhor a corvéia. Suserania e vassalagem Os vilões e homens livres contribuíam com um outro imposto, o censo, baseado no número de indivíduos que compunham essa população livre. A novidade do censo é que ele era o único pago em dinheiro, já que todos os outros tributos consistiam em serviços ou produtos agrários. Isso evidencia o quanto era pequena a circulação de moedas na Europa, durante esse período. Por fim, além do aspecto econômico dessas relações sociais, havia também práticas políticas e simbólicas dentro da sociedade medieval. Assim, os acordos entre os mais e os menos poderosos chamavam-se suserania e vassalagem. Dessa forma, os pobres tornavam-se vassalos dos senhores, que, por sua vez, eram chamados de suseranos. Essas relações de proteção e lealdade também ocorriam dentro da nobreza, quando um nobre mais pobre se tornava vassalo de um senhor mais rico e de maior prestígio. Havia vários ritos entre os nobres para celebrar esse pacto de fidelidade. No momento da assinatura do termo de doação de terras ou concessão de favores do suserano (senhor mais rico) ao vassalo (senhor mais pobre) um beijo entre os dois poderia selar o acordo, além de o vassalo ajoelhar-se perante o suserano. Podia-se receber também a investidura, que era um ramo de folhas ou outro objeto entregue pelo suserano ao vassalo. As investiduras funcionavam como símbolo das terras que a eles estavam sendo concedidas. Roma antiga - Introdução De Rômulo e Remo à República e ao Império Símbolo do poder: Senatus Populus Que Romanus (O Senado e o Povo Romano)


               Para entender como Roma conseguiu adquirir tanta importância e poder é necessário conhecer sua história em mais detalhes.



     A origem da sociedade romana não tem uma evidência concreta. Baseia-se numa lenda, que era uma maneira antiga de explicar fatos cuja memória se perdeu em tempos muito distantes. Assim, o poeta romano Virgílio alimentou a fantasia de seu povo ao contar que Roma teria sido fundada por dois irmãos: Rômulo e Remo. Os dois haviam sido abandonados pelo pai ao nascer e só sobreviveram por terem sido alimentados por uma loba. O fato é que os irmãos cresceram, vingaram-se do pai e receberam a missão de fundar uma cidade no local onde foram encontrados pelo animal. Essa lenda criou também a data exata do "nascimento" de Roma: os irmãos teriam fundado a cidade em 753 a.C. O próprio nome dessa localidade derivou do nome um deles (Rômulo), que acabou matando seu irmão Remo devido a disputas políticas. Como se pode ver, a origem de Roma foi inventada através de uma história que misturava o instinto animal (simbolizado pela loba que amamentou os irmãos), com o nascimento de algo novo (a cidade fundada num lugar deserto), retornando aos instintos agressivos no final (simbolizados na rivalidade entre os irmãos e no assassinato de um deles). Assim, essa origem imaginada serviu para os vários imperadores que a governaram justificarem o caráter agressivo e conquistador dessa sociedade romana. Patrícios e plebeus Se não temos dados concretos sobre sua fundação, podemos começar a contar a história de Roma, a partir da monarquia (753 a 509 a.C.). Nesse período, o meio de subsistência principal daquele povo era a agricultura. A sociedade romana dividia-se em quatro grupos, segundo a posição política, econômica e social de cada pessoa: havia patrícios, plebeus, clientes e escravos. A palavra "patrício" (do latim pater, pai) indicava o chefe da grande unidade familiar ou clã. Esses chefes, os patrícios, seriam descendentes dos fundadores lendários de Roma e possuíam as principais e maiores terras. Eles formavam a aristocracia, sendo que somente esse grupo tinha direitos políticos em Roma e formava, portanto, o governo. Já os plebeus eram descendentes de populações imigrantes, vindas principalmente de outras regiões da península Itálica, ou fruto dos contatos e conquistas romanas. Dedicavam-se ao comércio e ao artesanato. Eram livres, mas não tinham direitos políticos: não podiam participar do governo e estavam proibidos de casar com patrícios. Num outro patamar, vinham os clientes, também forasteiros, que trabalhavam diretamente para os patrícios, numa relação de proteção e submissão econômica. Assim, mantinham com os patrícios laços de clientela, que eram considerados sagrados, além de hereditários, ou seja, passados de pai para filho. Por fim, os escravos, que inicialmente eram aqueles que não podiam pagar suas dívidas e, portanto, tinham que se sujeitar ao trabalho forçado para sobreviver. Depois, com as guerras de conquista, a prisão dos vencidos gerou novos escravos, que acabaram se tornando a maioria da população. República e expansão As conquistas aos outros povos e regiões trouxeram o crescimento das atividades comerciais e das negociações em moeda. A riqueza se concentrou ainda mais nas mãos dos patrícios, que se apropriavam das novas terras. Isso tudo dividiu profundamente a sociedade romana entre ricos (aristocratas) e pobres (plebeus), além da grande massa de escravos que ia se formando. Também os membros do exército, enriquecidos pelas conquistas e saques, tornaram-se uma importante camada social. A expansão romana iniciou-se na República (509 a 27 a.C.), por meio das lutas contra os povos vizinhos para obterem escravos (séculos. 5 a 3 a.C.). Depois disso, expandiu-se para a Grécia (séc. 3 a.C.), Cartago (cidade africana que controlava o comércio marítimo no Mediterrâneo) e Macedônia (com a conquista da Grécia, havia formado um grande império), sendo estas duas cidades conquistadas no séc. 2 a.C. Na seqüência, o Egito, a Britânia (que corresponde aproximadamente à atual Grã-Bretanha) e algumas regiões da Europa e da Ásia foram conquistados no séc. 1 d.C. Desde sua origem, Roma fora governada por reis. Um deles foi expulso por tirania em 509 a.C. e o governo da República se estabeleceu, propondo uma nova divisão de poderes entre o Senado, os Magistrados e as Assembléias. Com as conquistas militares de novos territórios, os generais do Exército acumularam muitos poderes políticos e para deterem as revoltas dos povos dominados, resolveram concentrar o poder. Júlio César era um general que havia conquistado a Gália em 60 a.C. Depois disso, deu um golpe em Roma, atacando-a no ano de 49 a.C. e proclamando-se ditador perpétuo (ou seja, governaria com poderes ilimitados até a sua morte). Foi nesse mesmo ano que conseguiu dominar o Egito. No entanto, nem ele nem seu governo tiveram vida longa: foi assassinado pelos próprios romanos em 44 a.C. O Império Romano Com a morte de Júlio César, três líderes políticos governariam juntos. Um deles, Otávio, derrotou os outros e foi o primeiro imperador romano em 31 a.C., recebendo do Senado os títulos de Princeps (primeiro cidadão), Augustus (divino) e Imperator (supremo). Passou para a história com o nome de Augusto, embora essa denominação acompanhasse todos os imperadores que o sucederam. Roma teve 16 imperadores entre os séculos 1 e 3 d.C. A partir daí, começou a desagregação do Império e o descontrole por parte de Roma dos povos dominados. Entre os séculos 3 e 4 d.C., o imperador Dioclesiano dividiu o Império Romano numa parte ocidental e noutra oriental. Constantino, o imperador seguinte, tomou duas importantes medidas: reunificou seus domínios, tornando a capital do Império Romano Bizâncio (depois chamada de Constantinopla e, hoje, Istambul, na Turquia), localizada na parte oriental dos domínios romanos e legalizou a prática do cristianismo. Finalmente, Teodósio, um dos últimos imperadores, tornou o cristianismo religião oficial de todo o Império e dividiu-o novamente em duas partes, sendo as capitais Roma e Constantinopla. A primeira foi dominada pelos povos germanos em 476 e marcou o fim do Império Romano do Ocidente. A segunda foi dominada em 1453 pelos turcos e marcou o fim do Império Romano do Oriente. Quadro sintético História de Roma Períodos Datas Monarquia de 753 a.C. (data tradicional da fundação de Roma) a 509 a.C. (derrota dos Tarqüínios). República de 509 a.C. (proclamação da República) a 27 a.C. (Otaviano recebe o Senado o título de Augusto) Império de 27 a.C. a 476 d.C. (queda do Império romano do Ocidente)


10 dicas para uma boa redação

10 dicas para uma boa redação Como fazer uma boa redação? Como evitar certos cochilos e distrações? Preste atenção em 10 dicas bastante úteis:

 1 – A prova de redação do vestibular da Unesp, na verdade, começa já nas questões de Linguagens, pois sempre são tomados como base para a redação textos que serviram para a formulação de questões. Então, quando responder as questões, tenha já em mente que está se preparando para a prova de redação.

 2 – Leia com muita atenção a INSTRUÇÃO para a redação, bem como os textos de apoio, caso sejam apresentados outros textos além dos que serviram às questões.

 3 – A leitura atenta e repetida da PROPOSIÇÃO é fundamental. Ali você já recebe uma espécie de roteiro para organizar suas ideias em texto. Leia e releia, portanto.

 4 – Escreva em PROSA, não em verso.

 5 – Escreva segundo a NORMA CULTA DA LÍNGUA PORTUGUESA, nada de empregar fraseado coloquial e expressões vulgares.

 6 – Escreva um TEXTO DISSERTATIVO, ou seja, manifeste uma opinião, argumentando, demonstrando; nada de narrar, nada de escrever em forma de diálogo, nada de fazer poesia, para não zerar. 

7 – Aborde o TEMA solicitado – as propostas de redação dos vestibulares da Unesp sempre focalizam tema atual, de abordagem fácil; não invente a este respeito, siga o tema e pronto. 

 8 – Se tiver tempo, faça primeiro um RASCUNHO. Ao passar a limpo, por certo você melhorará seu texto.

 9 – Cuidado com citações: sempre entre aspas e sempre mencionando o autor; se não tiver certeza do autor, não faça a citação.

 10 – Procure ser simples, objetivo e original, expressando seu ponto de vista e tentando demonstrá-lo com base em seus conhecimentos e experiência. Seguindo estes dez conselhos, pode ter certeza de que terá meio caminho andado. 
                                        Boa sorte!

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terça-feira, 21 de setembro de 2010

ANÁLISE DE FILMES;

Tempos modernos [filme] Enviado sab, 27/03/2010 - 19:38 por Thiago Henrique... Tempos modernos (Abaixo, uma breve análise do filme “Tempos modernos”, exibido dia 27 de março. Lembro que outras interpretações são válidas — e bem-vindas —: avaliar criticamente é um direito de todos.) Tempos modernos (1936), dirigido por Charlie Chaplin, foi escolhido como segundo filme a ser exibido, e não por acaso: depois de A guerra do fogo, seria interessante outro filme que trabalhasse com algumas das mesmas questões (o avanço técnico e tecnológico, as relações sociais, a comunicação, a instrumentalidade), mas vistas de uma perspectiva histórico-social diferente. Ainda que trate de um tema sério, o filme de Chaplin apresenta cenas engraçadas; mas mais do que nos fazer rir por diversão, o riso pode funcionar como uma arma poderosa quando se mostra uma expressão do drama que assistimos — e que vivemos atualmente. Podemos rir de situações engraçadas vivenciadas por Carlitos, mas não podemos nos esquecer de que a época atual é a continuação da época representada no filme, continuação esta que de certo modo é ainda mais grave do que a retratada na fábrica e nas ruas da cidade em Tempos modernos. Vale lembrar que o filme foi lançado em 1936, o que nos remete a um acontecimento importante ocorrido nos Estados Unidos e que devemos ter em mente para compreender melhor a história: a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque; focaliza-se, portanto, a vida urbana dos EUA na década de 30. Vejamos, agora, alguns pontos interessantes do filme, mas sem entrar em muitas especulações (é mais útil apontarmos caminhos para que cada um siga do que apontar apenas um, que acaba por ser compreendido erroneamente como “o único possível”; fica, pois, o convite para que interpretem as situações listadas abaixo, aceitando ou negando o que sobre elas se dirá). A respeito das primeiras cenas, que se passam dentro da fábrica, é bem nítida a crítica satírica feita sobre o sistema capitalista e a industrialização (ou, em duas palavras, sobre o “capitalismo industrial”). É mostrada a vida na sociedade industrial, caracterizada pela produção em massa, pela linha de montagem e pela especialização do trabalho. Tais pontos, vale lembrar, referem-se ao Fordismo, modo de produção capitalista baseado em inovações organizacionais e técnicas que se articulam a fim de se garantir uma maior racionalização e objetividade da produção; o trabalho é simplificado, fragmentando, e cada operário é responsável apenas por uma pequena parte do todo (algo bem diferente de tempos mais remotos, em que os artesãos, por exemplo, responsabilizavam-se pela produção total de um produto, do início ao fim, realizando todas as etapas do processo). Isso é bem nítido nas cenas iniciais do filme, quando Carlitos, na linha de montagem, é responsável por uma única coisa: apertar parafusos. Algo interessante de se notar é que o sistema fordista de produção requer menos tempo para a formação e o treinamento do trabalhador, algo útil na produção capitalista por não exigir pessoas com maior qualificação para fazer o trabalho. Assim, operários também são, de certa maneira, produzidos “em massa”: uma simples pessoa do povo, sem grande formação educacional, pode rapidamente ser transformada em um trabalhador para a linha de montagem. A charge acima é significativa se levarmos em conta o filme. Nele, não sabemos o que a fábrica produz. Ainda que possamos vê-la de dentro, seu maquinário, seus operários, não sabemos o que ali se produz; não são apenas os trabalhadores (tanto os da charge acima quanto os do filme) que desconhecem o que estão ajudando a fazer, pois nós também não temos esse conhecimento. Outro ponto importante é a produção acelerada (ainda mais quando o diretor ordena que a produção seja acelerada). É válido, sobre isso, notarmos os efeitos que essa rapidez causa nos trabalhadores, que mal dão conta de seguir o ritmo imposto. Note-se o uso da expressão “ritmo imposto”, pois os operários não têm o direito de ditar o ritmo do processo; na verdade, é a máquina (sob as ordens do capitalista) que impõe o ritmo, não os operários que as manuseiam. Nesse ponto podemos nos lembrar de um conceito importante, que é o de “fetichização”, ou seja, uma espécie de “culto à máquina”, admirada pelo capitalista por ser o aparelho tecnológico que lhe permite a criação de novos produtos e, consequentemente, o lucro. E se por um lado o maquinário tem extrema importância nesse processo, por outro lado o operário não tem grande valor, torna-se um artigo descartável — afinal, se não estiver fazendo bem sua parte, com facilidade pode ser substituído por outro (vale lembrar: mão de obra sem qualificação para esse tipo de trabalho não é algo difícil de se encontrar). Nesse sentido, nota-se tanto a mecanização da fábrica quanto a mecanização do trabalhador: este é alienado, está robotizado, agindo maquinalmente, fazendo incessantemente os mesmos movimentos. E essa situação, claro, acaba por ter resultados negativos, o que é ilustrado no filme pela crise nervosa de Carlitos, que “surta” depois do desgaste que sofreu. Ele, e os outros trabalhadores, são vítimas de uma situação na qual acabam por se tornar impessoais (são números, não pessoas), tendo sua vida prejudicada, tornada fria, dura, automatizada, irrefletida, acelerada, instantânea, pois a rapidez é essencial para a existência desse “homem moderno” — que não foi feito para viver sob a pressão desse ritmo incessante. O operário torna-se, nesse meio, uma coisa; é negado, engolido pelo poder do capital, e até mesmo perseguido se tentar qualquer espécie de revolta. É o que nos mostram as cenas posteriores, nas quais vemos o início de um protesto por parte de Carlitos. Mas esse protesto não é calculado, organizado: ocorre por acaso, quando Carlitos levanta uma bandeira vermelha (simbologia que nos liga ao Socialismo) e a multidão passa a acompanhá-lo, talvez realizando aquilo que queria realizar (o protesto) mas que nunca o havia feito por não ter um líder que iniciasse uma revolta. O curioso é que esse protesto também acaba sendo feito de forma automática, e os operários, maquinalmente, seguem cegamente quem lhes levante a bandeira. Durante todo o filme, há cenas muito interessantes que nos instigam a pensar a respeito. Vejamos algumas delas. Já na primeira cena temos uma questão interessante; nela, enquanto aparecem os créditos do filme, vemos ao fundo um relógio. Ora, um relógio nos faz lembrar de tempo, e se tivermos em mente a célebre frase moderna “tempo é dinheiro”, poderemos compreender que essa cena inicial é o prenúncio daquilo que será mostrado depois: a fábrica em ritmo frenético; a aceleração da produção, ordenada pelo diretor; a falta de tempo dos trabalhadores para descansar por um instante (ponto que fica claro se nos lembrarmos de quando Carlitos para descansar e acaba interferindo no processo todo, chegando até a ser necessário parar a linha de montagem). Outra cena emblemática é a que se segue ao close up do relógio: nela, vemos um rebanho de ovelhas, uma série de animais que totalizam uma massa sem identidade. O que torna a cena interessante é a mescla feita para uma cena posterior, quando então podemos ver uma multidão de homens e ficamos com a forte sugestão de serem, também, uma massa sem identidade, tratada como um grupo de animais: os operários, como já dissemos, perdem sua humanidade, sua individualidade, a partir do momento em que são inseridos nessa massa sem face. Como resultado, eles se tornam alienados, isto é, passam a viver sem conhecer ou compreender a realidade social e política que os cerca, deixando, por isso, que sejam influenciados e condicionado a agirem como agem, mas sem pensarem sobre a maneira como atuam. O que também podemos notar durante o filme é a clara distinção entre ricos e pobres. Na fábrica, a imagem do burguês em seu terno choca-se com as cenas que nos apresentam os trabalhadores em seus trajes sujos. Essa desigualdade ficará visível em outros momentos do filme, e ficará clara a configuração de uma situação em que a exploração do operário, do trabalhador, do proletariado, é que permite todo conforto e todo divertimento da burguesia: o lucro gerado pelo trabalho das massas desfavorecidas move o mundo de riquezas da classe mais abastada. Mais um ponto interessante é o que diz respeito ao filme em si, que é mudo. Mas não é totalmente mudo: se, por um lado, os operários não têm voz, por outro lado o burguês é o único que a tem. Isso é significativo, pois nos aponta a situação da sociedade capitalista, na qual aqueles que detêm o poder, o capital, podem expressar o que pensam, podem se fazer ouvir, mas a massa de trabalhadores não; a ela resta a obediência silenciosa. Mas podemos também notar que o rádio tem “voz”: ouvimos as palavras do locutor e, se quisermos, podemos ouvir uma espécie de eco dessa situação, qual seja, o rádio, os meios de comunicação, como uma extensão do sistema capitalista, isto é, a parte midiática de seu poder. Isso é bastante visível atualmente, já que os meios de comunicação monopolizam a informação e acabamos por consumir apenas aquilo que julgam ser notícia válida; não somos nós que escolhemos saber o que aconteceu, pois essa escolha é feita por nós, que estamos no fim dessa cadeia (que, para sermos poéticos, nos prende). Afinal, as informações de que dispomos podem passar, sem que suspeitemos, por uma série de “lavagens”, de modo que recebemos notícias “impuras” e, geralmente, tendenciosas. Em outra cena célebre, Carlitos é engolido pela maquinaria. Ainda que engraçada, ela nos aponta uma situação preocupante: Carlitos, o operário, torna-se momentaneamente parte da máquina — seja literalmente, dentro das engrenagens, seja metaforicamente, dentro do sistema de produção em que ele, como mão de obra, é uma parte, uma peça do todo. Isso nos leva ao conceito de “reificação”, ou seja, um processo a partir do qual a atividade produtiva (e os trabalhadores que dela fazem parte), as relações sociais e a subjetividade humana se identificam com a condição do inanimado; o homem é transformado em coisa (e tratado como coisa), tendo seus sentimentos ignorados pelo sistema, tornando-se embrutecido, inumano; em suma, é aceito como um objeto. Outra cena pilhérica é a do “revolucionário” aparelho automático de alimentação. Podemos rir com a imagem de Carlitos sofrendo com a máquina a entupir-lhe com comida, mas isso traz à tona algo sério: a tecnologização das coisas banais do cotidiano. Os homens, sob a vontade de facilitarem suas vidas (talvez querendo facilitá-la demais), criam aparelhos que realizem atos comuns. Hoje em dia temos escovas de dente elétricas, facas elétricas, lâmpadas que são acesas sem a necessidade de tocarmos em um interruptor... Por mais que algumas invenções de fato facilitem nosso viver (o automóvel, a lâmpada, o computador), é importante não fazermos delas mestras de nossas vidas; isso ocorrendo, cada vez mais seremos servos das máquinas, estaremos sujeitados até chegar um ponto em que não saberemos mais viver sem elas (se ficarmos uma semana acampados em algum lugar afastado da cidade, viveremos na pele essa situação e sentiremos a falta que algumas invenções fazem). Nesse processo de desenvolvimento acelerado, poderemos compreender que tal situação transparece como um grande limitador das relações humanas: o tempo é cada vez mais gasto com máquinas, e nós, ainda que não sejamos Carlitos, ficamos a cada dia mais “maquinizados” e impessoais ao fazermos de nós mesmos pessoas dependentes dos instrumentos tecnológicos. Voltando à cena, o que a torna engraçada é o fato de que, nesse caso, a máquina não melhora a situação para a qual foi concebida; incontrolável, ele acaba por atrapalhar e fazer de uma ação simples (comer) uma situação maquinal, artificial e, de certo modo, perigosa. Mas esse aparelho automático de alimentação pode nos fazer pensar em algo mais: se tivermos em mente que ela foi concebida para que os trabalhadores se alimentassem mais rapidamente, assim sobrando mais tempo para o trabalho e para o lucro do capitalista, poderemos trazer tal situação para nossos dias e perceber que é exatamente esta a lógica das redes de fast-food, onde podemos comer (mal, mas sem perder tempo) e voltar ao trabalho. Em outra ocasião, o capitalista em sua sala é visto tomando um comprimido. Não podemos saber do que se trata, mas podemos fazer uma ligação com o mundo atual e lembrar de doenças como a úlcera gástrica, a dor de cabeça e o stress, problemas de saúde eminentemente “modernos”. Alguns estudos científicos já relacionaram o stress, por exemplo, como efeito de uma vida acelerada, em que somos abocanhados por prazos, tempo curto, pouco dinheiro, problemas e preocupações diárias que, aos poucos, nos levam ao célebre “estado de nervos”. A propósito, não é outra a situação a que chega Carlitos quando “surta”. Não é, pois, apenas o capitalista que sofre com esses problemas: é sobretudo o trabalhador a vítima dessas complicações da vida moderna. E Carlitos, em crise nervosa, comporta-se de modo instigante ao apresentar atitudes anti-hierárquicas. Lembremo-nos, por exemplo, que ele joga óleo no patrão. E, ainda para especular, não poderíamos dizer que essa atitude não é uma forma de deixar implícito que todos os personagens dessa situação (Carlitos, os outros operários, o capitalista...) não passam de engrenagens dessa gigantesca máquina capitalista, e que precisam ser “lubrificados” para “funcionarem” melhor? Outra interessante cena é aquela em que Carlitos acende um cigarro no banheiro. O que temos, quase que imediatamente, é a aparição do capitalista numa tela gigante, mostrando-se onipresente e colocando em dúvida a validade e a existência, nessa sociedade, de direitos como a liberdade e a privacidade. Se nos lembrarmos da atualidade, saberemos bem que ter privacidade não é algo tão fácil quando estamos em muitos momentos sendo filmados por câmeras em uma situação que, se por um lado, tem o intuito de nos garantir maior proteção, por outro lado nos faz suspeitos em potencial. Longe de ser uma situação agradável, é algo que nos rouba muito de nossa intimidade, além de ser uma condição um tanto irônica quando lemos as famigeradas placas de “sorria, você está sendo filmado!” — sorrir? Mas qual é a graça? No geral, o que temos em Tempos modernos é um constante movimento de máquinas, de homens e também do Estado (representado pela polícia, por exemplo), buscando a ordem em uma sociedade feita de contradições — o que resulta em uma situação de constantes e inevitáveis conflitos. O filme, ainda que retrate os altos e baixos de Carlitos, não nos deixa ilesos porque podemos reconhecer na sociedade apresentada pelo filme a nossa própria sociedade. Em outras palavras, e como disse Villegas Lôpez, “em Tempos modernos não temos mais o drama de Carlitos, mas Carlitos vivendo nosso drama”. E por ser nosso esse drama que se evidencia em cada cena do filme, não podemos deixar de trazer questões que as imagens nos incitam a fazer. Uma delas, e talvez a mais preocupante, é: se tomarmos por base o mundo atual, o que Tempos modernos nos evidencia seria uma sátira ou uma espécie de profecia? E ainda podemos questionar: todo esse avanço tecnológico de fato atinge o objetivo de melhorar a vida de todos, da sociedade em geral, ou apenas a de alguns? Há, obviamente, outras muitas perguntas que poderíamos fazer. Fica o convite para fazermos esse levantamento e tentarmos (por que não?) responder algumas das interrogações. Para finalizar, dois poemas. O primeiro, escrito por Carlos Drummond de Andrade, diz respeito a Carlitos, o célebre personagem criado e personificado por Charlie Chaplin e que nos conduziu nesse passeio chamado “Tempos modernos”. O segundo, de Fernando Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos), a cantar o novo mundo das máquinas que se estende, insaciável, desde o advento da Revolução Industrial. Canto ao homem do povo Carlos Drummond de Andrade I Era preciso que um poeta brasileiro, não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa, girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos, era preciso que esse pequeno cantor teimoso, de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia, era preciso que um antigo rapaz de vinte anos, preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo, viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema. Para dizer-te como os brasileiros te amam e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece com qualquer gente do mundo — inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos, vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia, e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua. Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece, e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua, e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas, só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram. Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins. Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens — e te descobriram e salvaram-se. Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos, os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos. E falam as flores que tanto amas quando pisadas, falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões, os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas, cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam. II A noite banha tua roupa. Mal a disfarças no colete mosqueado, no gelado peitilho de baile, de um impossível baile sem orquídeas. És condenado ao negro. Tuas calças confundem-se com a treva. Teus sapatos inchados, no escuro do beco, são cogumelos noturnos. A quase cartola, sol negro, cobre tudo isto, sem raios. Assim, noturno cidadão de uma república enlutada, surges a nossos olhos pessimistas, que te inspecionam e meditam: Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado, o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde a um mundo muito velho. E a lua pousa em teu rosto. Branco, de morte caiado, que sepulcros evoca mas que hastes submarinas e álgidas e espelhos e lírios que o tirano decepou, e faces amortalhadas em farinha. O bigode negro cresce em ti como um aviso e logo se interrompe. É negro, curto, espesso. O rosto branco, de lunar matéria, face cortada em lençol, risco na parede, caderno de infância, apenas imagem entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe, sozinha, experiente, calada vem a boca sorrir, aurora, para todos. E já não sentimos a noite, e a morte nos evita, e diminuímos como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos ao país secreto onde dormem os meninos. Já não é o escritório e mil fichas, nem a garagem, a universidade, o alarme, é realmente a rua abolida, lojas repletas, e vamos contigo arrebentar vidraças, e vamos jogar o guarda no chão, e na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar — cuidado! — que atrai os pontapés: sentenças de uma justiça não oficial. III Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome dos que não foram chamados à ceia celeste ou industrial. Há ossos, há pudins de gelatina e cereja e chocolate e nuvens nas dobras do teu casaco. Estão guardados para uma criança ou um cão. Pois bem conheces a importância da comida, o gosto da carne, o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata, e sabes a arte sutil de transformar em macarrão o humilde cordão de teus sapatos. Mais uma vez jantaste: a vida é boa. Cabe um cigarro: e o tiras da lata de sardinhas. Não há muitos jantares no mundo, já sabias, e os mais belos frangos são protegidos em pratos chineses por vidros espessos. Há sempre o vidro, e não se quebra, há o aço, o amianto, a lei, há milícias inteiras protegendo o frango, e há uma fome que vem do Canadá, um vento, uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida que mal decifras o cristal infrangível. Entre a mão e a fome, os valos da lei, as léguas. Então te transformas tu mesmo no grande frango assado que flutua sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro e chama, comida geral, que tarda. IV O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas. No festim solitário teus dons se aguçam. És espiritual e dançarino e fluido, mas ninguém virá aqui saber como amas com fervor de diamante e delicadeza de alva, como, por tua mão a cabana se faz lua. Mundo de neve e sal, de gramofones roucos urrando longe o gozo de que não participas. Mundo fechado, que aprisiona as amadas e todo o desejo, na noite, de comunicação. Teu palácio se esvai, lambe-te o sono, ninguém te quis, todos possuem, tudo buscaste dar, não te tomaram. Então encaminhas no gelo e rondas o grito. Mas não tens gula de festa, nem orgulho nem ferida nem raiva nem malícia. És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa correndo, os copos voam, os corpos saltam rápido, as amadas te procuram na noite... e não te veem, tu pequeno, tu simples, tu qualquer. Ser tão sozinho em meio a tantos ombros, andar aos mil num corpo só, franzino, e ter braços enormes sobre as casas, ter um pé em Guerrero e outro no Texas, falar assim a chinês a maranhense, a russo, a negro: ser um só, de todos, sem palavra, sem filtro, sem opala: há uma cidade em ti, que não sabemos. V Uma cega te ama. Os olhos abrem-se. Não, não te ama. Um rico, em álcool, é teu amigo e lúcido repele tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos o que há de água, de sopro e de inocência no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos que cultuamos, falsos: flores pardas, anjos desleais, cofres redondos, arquejos poéticos acadêmicos; convenções do branco, azul e roxo; maquinismos, telegramas em série, e fábricas e fábricas e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras. Ficaste apenas um operário comandado pela voz colérica do megafone. És parafuso, gesto, esgar. Recolho teus pedaços: ainda vibram, lagarto mutilado. Colo teus pedaços. Unidade estranha é a tua, em mundo assim pulverizado. E nós, que a cada passo nos cobrimos e nos despimos e nos mascaramos, mal retemos em ti o mesmo homem, aprendiz bombeiro caixeiro doceiro emigrante forçado maquinista noivo patinador soldado músico peregrino artista de circo marquês marinheiro carregador de piano apenas sempre entretanto tu mesmo, o que não está de acordo e é meigo, o incapaz de propriedade, o pé errante, a estrada fugindo, o amigo que desejaríamos reter na chuva, no espelho, na memória e todavia perdemos VI Já não penso em ti. Penso no ofício a que te entregas. Estranho relojoeiro cheiras a peça desmontada: as molas unem-se, o tempo anda. És vidraceiro. Varres a rua. Não importa que o desejo de partir te roa; e a esquina faça de ti outro homem; e a lógica te afaste de seus frios privilégios. Há o trabalho em ti, mas caprichoso, mas benigno, e dele surgem artes não burguesas, produtos de ar e lágrimas, indumentos que nos dão asa ou pétalas, e trens e navios sem aço, onde os amigos fazendo roda viajam pelo tempo, livros se animam, quadros se conversam, e tudo libertado se resolve numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol. O ofício é o ofício que assim te põe no meio de nós todos, vagabundo entre dois horários; mão sabida no bater, no cortar, no fiar, no rebocar, o pé insiste em levar-te pelo mundo, a mão pega a ferramenta: é uma navalha, e ao compasso de Brahms fazes a barba neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos. Foi bom que te calasses. Meditavas na sombra das chaves, das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame, juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas, anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta de mil, os braços cruzados de mil. E nada dizias. E um bolo, um engulho formando-se. E as palavras subindo. Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo. Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos. Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança. Ode triunfal Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical - Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força - Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! Fraternidade com todas as dinâmicas! Promíscua fúria de ser parte-agente Do rodar férreo e cosmopolita Dos comboios estrénuos, Da faina transportadora-de-cargas dos navios, Do giro lúbrico e lento dos guindastes, Do tumulto disciplinado das fábricas, E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão! Horas europeias, produtoras, entaladas Entre maquinismos e afazeres úteis! Grandes cidades paradas nos cafés, Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas Onde se cristalizam e se precipitam Os rumores e os gestos do Útil E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! Novos entusiasmos de estatura do Momento! Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas, Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific! Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis, Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram Pela minh'alma dentro! Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule! Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos; Membros evidentes de clubes aristocráticos; Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete De algibeira a algibeira! Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! Presença demasiadamente acentuada das cocotes Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) Das burguesinhas, mãe e filha geralmente, Que andam na rua com um fim qualquer; A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra E afinal tem alma lá dentro! (Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!) A maravilhosa beleza das corrupções políticas, Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos, Agressões políticas nas ruas, E de vez em quando o cometa dum regicídio Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana! Notícias desmentidas dos jornais, Artigos políticos insinceramente sinceros, Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes - Duas colunas deles passando para a segunda página! O cheiro fresco a tinta de tipografia! Os cartazes postos há pouco, molhados! Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca! Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, Como eu vos amo de todas as maneiras, Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!) E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar! Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós! Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura! Química agrícola, e o comércio quase uma ciência! Ó mostruários dos caixeiros-viajantes, Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria, Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios! Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! Olá grandes armazéns com várias secções! Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente. Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks, Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes - Na minha mente turbulenta e encandescida Possuo-vos como a uma mulher bela, Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama, Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima. Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios! Eh-lá-hô recomposições ministeriais! Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos, Orçamentos falsificados! (Um orçamento é tão natural como uma árvore E um parlamento tão belo como uma borboleta). Eh-lá o interesse por tudo na vida, Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras Até à noite ponte misteriosa entre os astros E o mar antigo e solene, lavando as costas E sendo misericordiosamente o mesmo Que era quando Platão era realmente Platão Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro, E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele. Eu podia morrer triturado por um motor Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. Atirem-me para dentro das fornalhas! Metam-me debaixo dos comboios! Espanquem-me a bordo de navios! Masoquismo através de maquinismos! Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho! Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby, Morder entre dentes o teu cap de duas cores! (Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta! Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!) Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais! Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas. E ser levado da rua cheio de sangue Sem ninguém saber quem eu sou! Ó tramways, funiculares, metropolitanos, Roçai-vos por mim até ao espasmo! Hilla! hilla! hilla-hô! Dai-me gargalhadas em plena cara, Ó automóveis apinhados de pândegos e de..., Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria! Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto! Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro, As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam, Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto E os gestos que faz quando ninguém pode ver! Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva, Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos Em crispações absurdas em pleno meio das turbas Nas ruas cheias de encontrões! Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, Que emprega palavrões como palavras usuais, Cujos filhos roubam às portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. Maravilhosamente gente humana que vive como os cães Que está abaixo de todos os sistemas morais, Para quem nenhuma religião foi feita, Nenhuma arte criada, Nenhuma política destinada para eles! Como eu vos amo a todos, porque sois assim, Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus, Inatingíveis por todos os progressos, Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! (Na nora do quintal da minha casa O burro anda à roda, anda à roda, E o mistério do mundo é do tamanho disto. Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. A luz do sol abafa o silêncio das esferas E havemos todos de morrer, Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, Pinheirais onde a minha infância era outra coisa Do que eu sou hoje...) Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus. E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios De todas as partes do mundo, De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! Eh-lá grandes desastres de comboios! Eh-lá desabamentos de galerias de minas! Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim, A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, E outro Sol no novo Horizonte! Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar, Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, Engenhos brocas, máquinas rotativas! Eia! eia! eia! Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a electricidade! Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!