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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Os Miseráveis Obra-prima do francês Victor Hugo desnuda com maestria a miséria material e a pobreza de espírito na conturbada França pós-revolução


LÍNGUA PORTUGUESA

Os Miseráveis

 

 

Obra-prima do francês Victor Hugo desnuda com maestria a miséria material e a pobreza de espírito na conturbada França pós-revolução



por Luís Edmundo Araújo

O romance completo, a história contada nos mínimos detalhes que vai, volta, viaja longe no tempo e no espaço e retorna ao cerne, ao ponto -chave da questão, como se nunca tivesse saído, e que por isso, pela fluidez com que sai do campo de batalha para a estalagem nos confins da França, e daí para a detalhada descrição geográfica e histórica de um convento e das ordens que o habitam, consegue segurar o leitor por dias, semanas e até meses submersos em suas quase 2 mil páginas. Publicado em 1862, em sete cidades da Europa ao mesmo tempo, Os miseráveis, do francês Victor Hugo, nasceu nas livrarias de Paris, Milão, Bruxelas, Budapeste, Leipzig, Roterdã e Varsóvia, e se espalhou pelo mundo, graças à força de personagens como Fantine, Javert e Jean Valjean, que inspirou dezenas de filmes por todo o planeta, do Japão à Índia, da antiga União Soviética ao Egito, do México ao Brasil, e isso há mais de um século. Os dois primeiros filmes baseados no romance de Victor Hugo, On the barricade e Le chemineau, datam de 1907, nos primórdios do cinema. O mais recente deles, versão do musical que fez sua estreia em 1980, em Paris, e depois foi sucesso na Broadway, com Anne Hathaway e grande elenco, é forte candidato, neste mês de fevereiro, a levar um ou outro Oscar, a estatueta fetiche do cinema americano.

A trama de Os miseráveis se passa entre dois episódios específicos da história francesa: a Batalha de Waterloo, em 1815, que representou o fim do sonho imperialista de Napoleão Bonaparte, e os motins de junho de 1832, em Paris, quando estudantes republicanos tentaram, em vão, derrubar o regime do rei Luís Filipe I. Na época de sua publicação, Victor Hugo tinha 60 anos e já desfrutava de grande prestígio, na França e fora dela. Tinha escrito clássicos como O corcunda de Notre Dame, mas nada foi maior em sua obra do que a epopeia de seus personagens pobres, sujos e desvalidos, cuja novidade era exatamente essa abordagem clara, escandalosa por pura falta de hábito, do ponto de vista das classes mais baixas, dos representantes de toda a miséria acumulada pelo absolutismo de Luís XIV, e depois nos reinados de Luís XV e Luís XVI, que desembocaria na Revolução Francesa e, mais tarde, em Napoleão.

O que Charles Dickens já começara a fazer na Inglaterra, mostrando a sociedade à margem do Império Britânico que habitava os submundos de uma Londres caótica, Victor Hugo, que também vinha retratando a miséria desde Claude Gueux, publicado em 1834, escancara com Os miseráveis. Cavou fundo nas camadas da conturbada organização social pós-revolução e revelou não só a miséria material, mas também a pobreza de espírito, que nem sempre caminham juntas, como nos mostra nesta breve introdução a um casal de personagens de suma importância na história.

Victor Hugo iniciou a concepção de Os miseráveis quase 40 anos antes de publicar o romance. Tinha 22 de idade quando, em 1824, começou a colher informações sobre a colônia penal de Toulon, de onde sai o protagonista Jean Valjean, ainda que, no caso de um livro desse porte e desse tamanho, os protagonistas sejam também, pelo menos, Fantine, Cosette e Marius, os outros três personagens que dão nome a quatro dos cinco volumes da história completa. Em 1837, o escritor visita finalmente a colônia penal que fornecia os remadores para o trabalho forçado nas galés, para remarem com os pés atados em correntes. Mas viveria ainda oito anos intensos antes de começar, no dia 17 de novembro de 1845, a redigir aquele que seria seu livro mais importante.

Após diversas tentativas frustradas, Victor Hugo foi eleito para a Academia Francesa em 1841. Em 1843, perdeu a filha, Léopoldine. Recémcasada com Charles Vacquerie, Léopoldine morreu aos 19 anos, afogada junto com o marido depois que o barco em que os dois viajavam virou, em Villequier. Dois anos depois, o escritor tinha acabado de receber o título de par de França quando foi flagrado num caso extraconjugal com Léonie Biard. Ela foi enviada a uma prisão e depois a um convento; ele se fechou em casa e começou a escrever Os miseráveis.

O contrato de edição da obra, com os editores Renduel e Gosselin, já estava assinado quando eclodiu a revolução de 1848, que destronou Luís Filipe I e instauou uma república bonapartista na França, mais tarde transformada em novo império, com Napoleão III. Eleito durante a república para a Assembleia Legislativa, Victor Hugo passa a dedicar-se à atividade parlamentar e deixa o romance de lado. Tenta retomá-lo três anos depois, mas a ebulição política da França da época não deixa. Em 1851, participa de uma frustrada tentativa de resistência ao golpe que instaurou o império de Napoleão III e vai para o exílio. O imperador ainda iria lhe oferecer anistia, mas o escritor não foi muito amistoso na resposta. “Quando a liberdade voltar, eu voltarei”, disse Victor Hugo. Foi no exílio que ele terminou de escrever Os miseráveis, mais precisamente em Mont-Saint-Jean, na Bélgica, nas proximidades do campo da Batalha de Waterloo, descrita, aliás, com maestria em quase 80 páginas do início do segundo volume do romance.

O mesmo rigor descritivo que pinça momentos específicos de uma das maiores batalhas da história, sem deixar de mostrar o plano geral, como a vitória pendeu de um lado a outro na movimentação dos dois exércitos gigantescos, serve também para expor os mínimos detalhes da geografia dos becos mais sombrios de Paris, desde a angulação das ruas, qual faz esquina com qual, às ranhuras de um muro, enfim, todas as nuances do terreno de outra batalha, essa particular, de um caçador, Javert, com sua presa, Jean Valjean. Os miseráveis é drama, sim, comédia, um pouco, mas é também ação e suspense na perseguição implacável de um personagem a outro, no duelo de inteligências e estratégias pelas ruas de uma Paris que começava a adentrar na era moderna, com todas as maravilhas e os horrores dessa transformação.

Na disputa anunciada em Os miseráveis, o conflito de classes que começava a emergir e a ganhar cada vez mais força com o início do processo de industrialização na Inglaterra e na França, o autor do romance escolheu um lado e não se preocupou em esconder sua posição. Estruturou sua maior obra em volta de personagens até então invisíveis para o resto da sociedade, como o forçado das galés ou a prostituta sem dentes, esfarrapada e doente. Ao fazer isso, não só mostrou ao mundo o espetáculo da miséria, sem filtros ou véus, como ajudou a despertar a compaixão pelos mais pobres, o que não torna absurdo dizer que a história de Jean Valjean, Fantine e companhia, além de clássico universal da literatura, ajudou a impulsionar uma até então inexistente política de solidariedade com os miseráveis da vida real.

No vaivém das quase 2 mil páginas de sua história, Victor Hugo tem domínio completo da narrativa. Mostra só um pouco de uma cena que bem poderia habitar o mundo do fantástico, quando Jean Valjean e Cosette estão pertos de encontrar abrigo nos jardins de um convento. Depois muda de assunto, se perde e se encontra em situações diversas daquela para, sem aviso, voltar ao mistério anunciado anteriormente e explicá-lo com a maior naturalidade, alijando qualquer possibilidade de que fantasmas ou forças do mal venham a habitar o romantismo mais que real de sua história, e surpreendendo mais uma vez o leitor. Não é à toa que Os miseráveis continuam a inspirar filmes e mais filmes, da França aos Estados Unidos, da Inglaterra à Itália, da Coreia do Sul à Turquia.