http://precisoaprenderlinguasestrangeiras.blogspot.com.br/

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

“Precisa-se”- Clarice Lispector

“Precisa-se”
Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la. Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria. É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais. Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere. Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama. Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo. Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos. Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar. P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilacerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.
Clarice Lispector )

Tive um sonho (Hugo Santos)

Tive um sonho
(Hugo Santos)

Tive um sonho: uma escola aberta, voltada para a luz dos astros, com uma vozinha a inquirir-me do fundo da sala: «Eh, professor, tu sabes isto?». E eu a dizer que não e a esperar que me ensinem.
Tive um sonho: uma escola sem horários, aberta de manhã à noite, com as paredes forradas de pássaros e de sonhos, e com bolas de sabão voando por dentro do coração das palavras e dos números.
Tive um sonho: uma escola sem planos, sem fichas, sem esboços, com a vida sentada a nosso lado, a ensinar-nos as canções de todas as infâncias e a mostrar-nos por onde passam os rios de todas as memórias.
Tive um sonho: uma escola com o chão atapetado de música, para que nos passos ressoem os acordes dos assombramentos.
Tive um sonho: uma escola dentro dum oceano, para que todos pudéssemos ser pescadores de pérolas e utopias.
Tive um sonho: uma escola debruçada para o país que somos e para o país que temos, para que professores e alunos aprendam todos os dias onde descansam os vales, vigiam as serras e o coração das coisas adormece no justo lugar em que as palavras e as emoções se confundem.
Tive um sonho: uma escola com uma floresta crescendo por dentro das salas, alcatifada de nenúfares, com a luz a bater nas folhas das palavras e os frutos crescendo nas pequenas mãos entreabertas.
Tive um sonho: uma escola que diga: «Aqui é a tua casa. Entra». E, ao entrar nos apercebamos de que aquela é a nossa casa e que, para lá dela, todas as outras casas nos pertencem.
Tive um sonho: uma escola onde o olhar saiba adormecer serenamente como os silêncios e não seja precisa a voz para proclamarmos a festa de estarmos.
Tive um sonho: uma escola onde ensinar e aprender sejam sinónimos e não se saiba nunca o suficiente para nos congratularmos com o êxtase da sabedoria.
Tive um sonho: uma escola, um álamo, um rouxinol anunciando as albas e os crepúsculos. E nós a garatujarmos em papel transparente o coral duma lágrima de emoção inesperadamente sobrevinda.
Tive um sonho: e por dentro do sonho uma casa, uma escola, um regato de peixes prateados. E o Sol, grande, de mil cores, dos desenhos das crianças a pousar-nos nas mãos enternecidas.

José António Moreira – Adeus geométrico (por Arsélio Martins)

domingo, 4 de dezembro de 2016

Eu não sou eu nem o outro de Mário de Sá-Carneiro -QUASE

Eu não sou eu nem o outro
Mário de Sá-Carneiro



QUASE


Um pouco mais de sol — eu era brasa.
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

...........................................
...........................................

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

sábado, 3 de dezembro de 2016

Herberto Helder — O amor em Visita (por José-António Moreira)

Poema XX Neruda Legendado na voz de Alex Ubago

Na Idade dos Porquês




                                                             Na Idade dos Porquês




Professor diz-me porquê?
Por que voa o papagaio
que solto no ar
que vejo voar
tão alto no vento
que o meu pensamento
não pode alcançar?
Professor diz-me porquê?
Por que roda o meu pião?
Ele não tem nenhuma roda
e roda gira rodopia
e cai morto no chão...
Tenho nove anos professor
e há tanto mistério à minha roda
que eu queria desvendar!
Por que é que o céu é azul?
Por que é que marulha o mar?
Porquê?
Tanto porquê que eu queria saber!
E tu que não me queres responder!
Tu falas falas professor
daquilo que te interessa
e que a mim não interessa.
Tu obrigas-me a ouvir
quando eu quero falar.
Obrigas-me a dizer
quando eu quero escutar.
Se eu vou a descobrir
fazes-me decorar.
É a luta professor
a luta em vez de amor.
Eu sou uma criança.
Tu és mais alto
mais forte
mais poderoso.
E a minha lança
quebra-se de encontro à tua muralha.
Mas
enquanto a tua voz zangada ralha
tu sabes professor
eu fecho-me por dentro
faço uma cara resignada
e finjo
finjo que não penso em nada.
Mas penso.
Penso em como era engraçada
aquela rã
que esta manhã ouvi coaxar.
Que graça que tinha
aquela andorinha
que ontem à tarde vi passar!...
E quando tu depois vens definir
o que são as conjunções
e preposições...
quando me fazes repetir
que os corações
têm duas aurículas e dois ventrículos
e tantas
tantas mais definições
o meu coração que não sei como é feito
o meu coração
nem quero saber
cresce
cresce dentro do peito
a querer saltar cá para fora
professor
a ver se tu assim compreenderias
e me farias
mais belos os dias.
- Cecília Meireles