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ANÁLISE DE POEMAS :CAMÕES; MORAES:; Poesia O incriado Carlos Drummond de Andrade;CASTRO ALVES;FERREIRA GULLAR;MURILO MENDES



  POESIA

         
A poesia, ou gênero lírico, ou lírica é uma das sete artes tradicionais, pela qual a linguagem humana é utilizada com fins estéticos, ou seja, ela retrata algo que tudo pode acontecer dependendo da imaginação do autor como a do leitor. 


"Poesia,
 segundo o modo de falar comum, quer dizer duas coisas. A arte, que a ensina, e a obra feita com a arte; a arte é a poesia, a obra poema, o poeta o artífice. O sentido da mensagem poética também pode ser importante, ainda que seja a forma estética a definir um texto como poético. A poesia compreende aspectos metafísicos (no sentido de sua imaterialidade) e da possibilidade de esses elementos transcenderem ao mundo fático. Esse é o terreno que compete verdadeiramente ao poeta.
        Num contexto mais alargado, a poesia aparece também identificada com a própria arte, o que tem razão de ser já que qualquer arte é, também, uma forma de linguagem (ainda que, não necessariamente, verbal).

     A leitura adequada de todo poema comporta alguns requisitos:

1.Leia-o várias vezes e atenciosamente. Procure ouvir suas particularidades. Não tenha receio de lê-lo em voz alta.

2.Procure ler o que está escrito, e não aquilo que você gostaria que estivesse escrito.

3.Cuidado com as associações e sugestões! Não ultrapasse os limites da obra. Você deve redimensioná-la e iluminá-la, mas mantendo-se dentro dela o tempo todo. É nela que estão todos os elementos para a sua interpretação.



Glossário de termos técnicos


Anáfora

Repetição da(s) mesma(s) palavra(s) no começo de cada um dos membros da frase. À anáfora corresponde a epístrofe, repetição da(s) mesma(s) palavra(s) no fim de cada um dos membros da frase.

Aliteração


É a repetição de um ou mais fonemas no começo, no meio ou no fim de palavras próximas ou simetricamente dispostas.

Cavalgamento


Conforme a definição de Said Ali, "dizemos que um verso cavalga por cima do outro, quando o sentido da frase se interrompe no primeiro e se completa no segundo" – Versificação Portuguesa, São Paulo, Edusp, 1999, p. 45. O termo cavalgamento equivale ao francês enjambement.

Crase na poesia 


- veja em Contagem Silábica

Contagem silábica na poesia

Tipos de verso


Os versos devem ser contados até a última sílaba tônica. Portanto há três espécies de verso:

a)agudos, terminados em palavra oxítona (em que a sílaba tônica é a última). 


Exemplo:
"onde canta o sabiá" (Gonçalves Dias)
b)graves, terminados em palavra paroxítona (em que a sílaba tônica é a penúltima). Exemplo:
"Quando junto de mim Teresa dorme" (Álvares de Azevedo)


O verso grave é o mais comum na língua portuguesa, uma vez que a maioria das palavras é paroxítona.


c)esdrúxulos, terminados em palavra proparoxítona (em que a sílaba tônica é a antepenúltima). Exemplo:
"Por entre anêmonas,
nadadeiras trêmulas" (Cecília Meireles)
     O verso esdrúxulo é mais raro na poesia de língua portuguesa, por razão inversa à da preponderância do verso grave.

Contagem de sílabas no verso

        Para a contagem das sílabas em um verso usam-se muitas vezes critérios que não os estritamente gramaticais. Em poesia, portanto, leva-se em conta mais o que se ouve do que o que se vê ou lê. Ou seja, importa mais como ouvimos as vogais do que sua expressão escrita. Basicamente, existem dois preceitos básicos:

1) Primeiro preceito:


     Como na fala, em poesia fundem-se ou juntam-se em uma única sílaba a terminação vocálica átona ( a última vogal átona de uma palavra) e o início vocálico (a primeira vogal) da palavra imediata. Assim, por exemplo, o verso 


"chorando como uma criança" 

deve ser lido da seguinte forma:

Chorando com'uma criança (Cecília Meireles)


Dizemos que houve "elisão" ou "absorção" da vogal o. Na verdade, mais do que um fenômeno poético, trata-se de um fenômeno típico da língua falada. Dificilmente falamos sem absorver ou suprimir vogais.
Sob esse critério (elisão ou junção de vogais), podemos agrupar dois tipos de fenômeno:

a)Crase


Observe:
   1   2   3    4    5     6     7        8
"Cho-ra-rei -to-da a-noi-te, en-quan-(to)
 per-pas-sa o -tu-mul-to -nos -a-(res)"
(Cecília Meireles)

    Neste versos ocorre o encontro de vogais átonas. Na quinta sílaba do primeiro verso, a sílaba da (de to-da) e o a do artigo fundiram-se numa só sílaba: da. O mesmo se deu na sétima: o e da sílaba te (noi-te) se confundiu com o e da sílaba seguinte en (enquanto), do que resultou apenas uma sílaba métrica: ten. Chamamos esse fenômeno de crase, pois ocorreu entre vogais idênticas.

b)Sinalefa



    Se esse encontro acontecesse entre vogais diferentes, então teríamos o fenômeno da sinalefa:
 1    2   3   4   5     6     7   8
"A- noi-te- to-da -se a-tor-do-(a)" (Cecília Meireles)
O encontro de e+a, na sexta sílaba, produz o ditongo "ia" (tal como é pronunciado), sendo ambos os elementos pronunciados com nitidez. Não ocorre aqui elisão ou crase, mas junção de vogais.

2) Segundo Preceito

     Os hiatos (encontro de vogais pronunciadas separadamente) podem ser lidos como ditongos (encontro de vogais pronunciadas como uma unidade sonora). E ditongos, por sua vez, podem ser lidos como hiatos.
Sob esse segundo critério, podemos identificar basicamente dois fenômenos:

a) Chamamos diérese a transformação de um ditongo em hiato.  


 Trata-se, no entanto, de recurso pouco usado. Os poetas, especialmente os de períodos em que a convenção poética tende a ser mais obedecida (como no Parnasianismo), costumam evitar o hiato.
    De todo modo, há autores, mesmo parnasianos, que fizeram uso desse recurso:
1 2 3 45 6 7 8 9 10
"A A-ve-Ma-ri-a, as-sim,- no a-zul- pa-re-(ce)
(...)"
      A palavra Maria, que, na contagem silábica gramatical, pode ter duas ou três sílabas, apresenta-se nos poemas muitas vezes como tendo apenas duas sílabas (Ma-ria). Raimundo Correia (o autor dos versos acima) preferiu, no entanto, considerar três sílabas (Ma-ri-a).

b) Sinérese é a transformação de um hiato em ditongo.



A palavra "juízo", por exemplo, é normalmente pronunciada com três sílabas (ju-í-zo). Em poesia, no entanto, pode aparecer com ditongo (juí-zo).

Hipérbato


Inversão da ordem natural das palavras ou orações.

Metáfora


Segundo a definição de um importante teórico da literatura, Wolfgang Kayser, a metáfora é "a transferência de significado de uma zona para outra que lhe é estranha desde o início".

     Quando dizemos, por exemplo, coração do país, estamos empregando a palavra coração numa zona de significado que não lhe é comum, familiar. Rigorosamente, coração significa o órgão oco e musculoso que, situado na cavidade torácica, recebe e bombeia o sangue. É, portanto, o órgão do qual dependem nossas funções vitais. Por extensão, a palavra coração passa a designar a parte mais essencial, mais importante de alguma coisa ou algum lugar.

     Em princípio, um país, que não é ser vivo, mas uma realidade geográfica e social, não tem nada que ver com coração. Mas, quando falamos em "coração do país", de certa maneira estamos tratando o país como um organismo. Estamos aproximando séries de sentidos que são estranhas entre si e fazemos isso com intenção expressiva. Queremos transmitir mais idéia do que seria possível se usássemos uma expressão como "centro do país".

Metonímia


Partes que valem pelo todo, são índices de algo maior.

Paralelismo


Diz-se que ocorre paralelismo quando, num texto, há palavras ou estruturas sintáticas que se repetem e se correspondem entre si.

Paranomásia


Palavras semelhantes no som, porém diversas no significado.

Prosódico


Relativo à prosódia, pronúncia regular das palavras.

Quiasmo


É a figura de estilo pela qual se repetem palavras com inversão da ordem. É o que vemos logo no início do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade "No meio do caminho": "No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho".

Silepse


É a concordância que se dá não com a forma gramatical das palavras, mas com o seu sentido, com a sua idéia. Existem silepses de número, de gênero e de pessoa.

Sinalefa 


- veja em Contagem Silábica

Sintaxe
Parte da gramática que estuda as relações entre as palavras na frase, ou entre as frases no discurso.

Soneto

       Esta é uma das mais importantes formas poéticas e, em certas épocas literárias, foi alçada ao primeiro lugar entre todas. É oriunda da Itália (seu criador teria sido Giacomo da Lentini) e entrou em Portugal pelas mãos de Sá de Miranda. Compõe-se de duas quadras (quadra= estrofe de quatro versos) e dois tercetos (terceto=estrofe de três versos).
    Conforme o téorico Wolfgang Kayser, "A forma mais severa só permite duas rimas para as quadras e outras duas para os tercetos:


abba, abba, cdc, dcd.

Na verdade, para os tercetos impuseram-se outras disposições de rima 

(cdc cdc; cdd cdc, etc.);

impuseram-se até três rimas 

(cdecde),

 enquanto o uso de quatro rimas nas quadras quase só se encontra em poetas franceses e alemães. A forma, tão apreciada na Inglaterra, do chamado soneto de Shakeaspeare representa uma alteração do tipo italiano. Nela o soneto é formado por três quadras, das quais cada uma tem rimas próprias, enquanto o final é formado por dois versos emparelhados 

(ababcdcdefefgg)".

 Ver, de Kayser, Análise e interpretação da obra literária (trad. Paulo Quintela), Coimbra, Armênio Amado, 1985, p.98."

Vocativo
Termo de chamamento com que nos dirigimos a alguem que está em nossa presença.

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VINICIUS DE MORAES
                 




   VINICIUS DE MORAES

VINICIUS DE MORAES


BIOGRAFIA

   
*Vinicius foi o único de nós que teve a vida de poeta. (Carlos Drummond de Andrade) Marcus Vinícius da Cruz e Mello Moraes nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de outubro de 1913. Aos 9 anos, foi a um cartório no centro da cidade, acompanhado de sua irmã, e alterou o seu nome para Vinicius de Moraes – ficava registrado, então, o nome do grande poeta que ele logo seria. Filho de Lydia Cruz de Moraes – pianista – e de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes – poeta –, Vinicius entrou em contato com a música e a poesia desde muito cedo. Com a família, morou em vários bairros do Rio ao mesmo tempo em que recebia grande formação cultural. Assim, foram também se fazendo suas referências tanto eruditas quanto populares. Vinicius, que era de criação católica, estudou no Colégio Santo Inácio, onde se bacharelou em Letras, e em cujo coro cantava nas missas de domingo. Em 1933, formou-se em Direito e, em 1938, recebeu a primeira bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesas na Universidade de Oxford.
   ida boêmia, casou-se nove vezes e, em 9 de julho de 1980, faleceu, em sua casa, de edema pulmonar.



 BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
   

                                                                                      

   Poesia e prosa:

 
O Caminho para a Distância, 1933 - Schmidt Ed., Rio (recolhida pelo autor)
 .Ariana, a Mulher, 1936 - Pongetti - Rio
 .Forma e Exegese, 1935 - Pongetti - Rio (pelo qual recebeu o Prêmio ‚Felippe d'Oliveira)


 .Novos Poemas, 1938 - José Olympio - Rio
 Cinco Elegias, 1943 - Pongetti - Rio (ed. feita a pedido de Manuel Bandeira, Aníbal Machado e Octávio de Farias)
.10 poemas em manuscrito - 1945, Condé (edição ilustrada de 150 exemplares)
 .Poemas, Sonetos e Baladas, 1946 - Ed. Gávea - São Paulo (ilustrações de Carlos Leão)


 .Pátria Minha, 1949 - O Livro Inconsútil - Barcelona (ed. feita por João Cabral de Melo Neto em sua prensa manual)


 .Orfeu da Conceição, 1956 - Editora do Autor - Rio (ilustrações de Carlos Scliar)
 .Livro de Sonetos, 1957 - Livros de Portugal - Rio


 .Novos Poemas (II), 1959 - Livraria São José - Rio.


 .Orfeu da Conceição, 1960 - Livraria São José - Rio (edição popular)


 .Para Viver um Grande Amor, 1962 - Ed. do Autor - Rio


 .Cordélia e o Peregrino, 1965 - Ed. do Serviço de Documentação do M. da Educação e Cultura - Brasília


 .Para uma Menina com uma Flor, 1966 - Ed. do Autor - Rio


 .Orfeu da Conceição, 1967 - Editora Dois Amigos - Rio (com ilustrações de Carlos Scliar)


 .O Mergulhador, 1968 - Atelier de Arte - Rio (fotos de Pedro de Moraes, filho do autor. Tiragem limitada a 2.000 exemplares, sendo 50 numerados em algarismos romanos de I a L e assinados pelos autores, comportando um manuscrito original e inédito de Vinicius de Moraes; 450 exemplares numerados em algarismos arábicos e 51 a 500 e assinados pelos autores; e, finalmente, 1.500 exemplares numerados de 501 a 2.000)


 .História natural de Pablo Neruda, 1974 - Ed. Macunaíma - Salvador.


 .O falso mendigo, poemas de Vinicius de Moraes - 1978, Ed. Fontana - Rio


 .Vinicius de Moraes - Poemas de muito amor, 1982 - José Olympio, Rio 

(ilustrações de Carlos Leão)

 .A arca de Noé - 1991, Cia. das Letras - São Paulo


 .Livro de Letras, 1991, Cia. das Letras - São Paulo

 .Roteiro lírico e sentimental da Cidade do Rio de Janeiro e outros lugares por onde passou e se encantou o poeta, 1992 - Cia. das Letras - São Paulo


 .As Coisas do Alto - Poemas de Formação, 1993 - Cia. das Letras - São Paulo


 .Jardim Noturno - Poemas Inéditos, 1993 - Cia. das Letras - São Paulo


 .Soneto de Fidelidade e outros Poemas, 1996 - Ediouro - Rio (ed. bolso)


 .Procura-se uma Rosa, Massao Ohno Ed. - São Paulo (peça de teatro em colaboração com Pedro Bloch e Gláucio Gil)


.A Arca de Noé, Cia. das Letras - São Paulo


 .O Cinema de Meus Olhos, Cia. das Letras - São Paulo


 .Nossa Senhora de Paris, Ediouro - Rio
 .Teatro em Versos - 1995, Cia. das Letras - São Paulo


 .Rio de Janeiro (com Ferreira Gullar), Ed. Record - Rio (edições em alemão, francês, inglês, italiano e português).


 .Querido Poeta


 - Correspondências de Vinicius de Moraes (organização de Ruy Castro), Cia. das Letras, São Paulo, 2003.
 .Samba falado, Azougue Editorial, 2008.

Em francês

 .Cinc Elégies, 1953 - Ed. Seghers - Paris (trad. de Jean-Georges Rueff)
 .Recette de Femme et autres poèmes, 1960 - Ed. Seghers - Paris (escolha e tradução de Jean-Georges Rueff)

Em italiano

 Orfeo Negro, 1961 - Nuova Academia Editrice - Milão (tradução de P. A. Jannini)

Antologias

 .Antologia Poética, 1954 - Editora A Noite - Rio de Janeiro
 .Obra poética - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguillar, 1968

Teatro

 .Procura-se uma rosa, 1962 (com Pedro Bloch e Gláucio Gil.)




 APRESENTAÇÃO DA 


Antologia Poética


 Segundo estudiosos da obra completa de Vinicius de Moraes, a Antologia Poética foi publicada pela primeira vez por uma editora carioca chamada A Noite, sem registro de data; havia local e data apenas ao final de um texto que antecedia os poemas, intitulado ‚Advertência: Los Angeles, junho de 1949. A maior parte das referências críticas, porém, fixou 1954 como o ano do surgimento de sua Antologia Poética. Em 1960 uma nova publicação contou com o acréscimo de 14 poemas. Em publicação de 1967, Vinicius desmembra um de seus poemas em dois e altera a data do seu texto ‚Advertência (de agosto de 1960 para agosto de 1967).      Posteriores publicações basearam-se nestas, de 60/67, e, em 2003, a pedido da família do poeta, o anterior volume deu lugar à Nova Antologia Poética, organizada por Antonio Cicero e Eucanaã Ferraz.
Cronologicamente inscrita no período Modernista, a Antologia foi dividida, pelo próprio Vinicius, em duas fases.

 .A primeira, diferentemente da segunda, não conta com o predomínio de características tipicamente modernistas; nas palavras do próprio autor, é ‚transcendental, frequentemente mística, resultante de sua fase cristã, termina com o poema ‘Ariana, a mulher’, editado em 1936.

 .Na segunda, que se abre com o poema ‚O falso mendigo, ‚estão nitidamente marcados os movimentos de aproximação do mundo material, com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos. O poeta declara, ainda, que as Cinco Elegias (obra anterior, publicada em 1943) estão inseridas na Antologia Poética e ‚são representativas de um período de transição entre aquelas duas tendências contraditórias. Ao fazer referência também à presença de um critério cronológico na organização de sua Antologia, Vinicius nos chama a atenção para a ‚impressão verídica do que foi a luta que manteve‚contra si mesmo no sentido de uma libertação, hoje alcançada, dos preconceitos e enjoamentos de sua classe e do seu meio, os quais tanto, e tão inutilmente, lhe angustiaram a formação. As declarações acima foram colocadas pelo autor no texto ‚Advertência, que precede todas as diferentes edições de sua Antologia Poética: obra composta por cerca de 140 poemas que se aglutinam em torno de abordagens religiosas ou espiritualistas, cotidianas, amorosas, sensualistas, sociais, metapoemáticas, existencialistas, entre outras.


   A OBRA de Vinicius de Moraes, não Vinício de Moral: a obra plural do poeta plural ‚(...) Oh, quem me dera não sonhar mais nunca Nada ter de tristezas nem saudades Ser apenas Moraes sem ser Vinicius! (...) Elegia quase uma ode Vinicius de Moraes é autor de obra bastante vasta e heterogênea: mais de 400 poemas - dentre eles os infantis -, crônicas, peças de teatro, críticas de cinema, melodias e letras de música fazem parte de seu grandioso repertório. Embora mais conhecido do grande público pelo seu trabalho na Música Popular Brasileira, Vinicius é reconhecido pela crítica literária como um dos maiores nomes da nossa poesia. Enquanto, na verdade, o próprio autor não separava uma de outra.      Em entrevista concedida à escritora Clarice Lispector, na década de 60, Vinicius, convidado a falar de sua música, declarou: ‚Não falo de mim como músico, mas como poeta. Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções. E na sua poesia, por sua vez, encontramos também a pluralidade: pluralidade de formas, de temas, de referências. Pluralidade, também, no trabalho com os mesmos temas – ao longo de sua extensa obra, diferentes são as abordagens, por exemplo, que Vinicius faz sobre o amor e a mulher, temáticas constantes de suas poesias. Quanto às formas e aos temas, Vinicius caminha entre o erudito e o popular, entre o sublime da poesia e o grotesco do mundo;é o poeta ‚metafísico popular brasileiro, cujo trânsito está entre as ‚contorções espirituais e as ‚banalidades do dia-a-dia. A sua sólida formação intelectual e o seu trabalho como diplomata também lhe trouxeram elementos que ricamente diversificaram o horizonte de sua poesia. Através das viagens e das leituras realizadas, Vinicius esteve ao lado de grandes nomes da literatura (da arte, de modo geral) do mundo. Muitos dos poemas que compõem a Antologia Poética trazem essas referências: ‚Soneto a Katherine Mansfield; ‚Soneto à Verlaine; ‚Bilhete a Baudelaire; ‚As mulheres ocas (evocação à poesia do inglês T. S. Eliot); ‚A morte de madrugada (celebração ao poeta espanhol Federico García Lorca); ‚Soneto no sessentenário de Rafael Alberti; ‚Soneto a Pablo Neruda; ‚O poeta Hart Crane suicida-se no mar; ‚Soneto a Sergei Mikhailovitch Eisenstein etc.
   E já na década de 30 (quando publica seu primeiro livro de poesias, O Caminho para a distância, 1933) era amigo de importantes poetas brasileiros, como Manuel Bandeira e Mário de Andrade – aos quais igualmente prestou suas homenagens em versos. Vinicius foi também amigo (e leitor) de Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, João Cabral de Melo Neto, Mário Quintana, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, entre outros. E alguns destes foram também temas de suas poesias. Embora assim cercado, afirmava: ‚o poeta que mais me influenciou foi, de fato, meu pai. Ele era um Pós-Parnasiano com um pé no Simbolismo. No poema ‚Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão, declara: ‚(...) Deste-nos pobreza e amor A mim me deste A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar Em silêncio (...) És para mim aquele de quem muitos diziam: ‘É um poeta...’ Poeta foste, e és, meu pai. A mim me deste o primeiro verso à namorada. Furteio-o De entre teus papéis: quem sabe onde andará...(...). Se algo de pós-parnasiano e simbolista herdou do pai, o poeta – multifacetado – tem também dos românticos e dos modernistas; nas palavras de Manuel Bandeira, Vinicius ‚tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e, finalmente, homem bem de seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos. Na Antologia Poética deparamo-nos, de fato, com poemas plurais, estas poesias tratam do espírito e da matéria, cantam mulheres sacralizadas, mulheres vistas nas ruas e mulheres prostitutas, cantam o amor, o desejo, a alegria e a dor dos amantes, aludem ao amor fraterno e incondicional – por todos os seres, por todas as coisas −, falam da vida e da morte, traduzem imagens oníricas, trazem imagens de um dia a dia, cantam a pátria, homenageiam amigos do poeta e grandes nomes da arte mundial. E contam, para isso, com grandes recursos formais, harmonizados tanto com a frase coloquial quanto com referência à vida do cotidiano. Na Antologia, encontramos sonetos bem ao estilo do poeta clássico Luiz Vaz de Camões, elegias, baladas e, ainda, estrofação irregular, versos curtos e livres. Dessa forma, o que vemos é um cruzamento muito interessante: versos em irregularidade, curtos e livres expressam não só o comum do dia a dia, mas também temas mais sublimes, elevados; por outro lado, formas clássicas expressam não apenas os temas clássicos, sublimes, como também os assuntos triviais, ou até os que formam inimaginável material poético, como a prostituição. Vinicius de Moraes teria, com esta riqueza de recursos formais, atingido o que os modernistas verdadeiramente queriam: aproximar-se, como nenhum outro, na naturalidade, do cotidiano. Também sobre sua relação com o Modernismo e com outras referências estéticas.

  Nos poemas da edição organizada pelo próprio autor, portanto, defrontamo-nos, como não podia deixar de ser, com os versos múltiplos de uma figura múltipla.

   *Soneto:


 -trata-se de uma forma poética clássica e fixa, com catorze versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Os versos têm dez ou doze sílabas métricas, com esquema de rimas 

ABBA / ABBA / CDC / DCD.

 Forma, por excelência, do Classicismo, o soneto foi também muito utilizado no Barroco e cultuado pelos parnasianos. Pelos modernos, foi utilizado com variações.

 *Elegia: tipo de poesia lírica (que teve origem na Grécia antiga) declamada pelo próprio poeta, acompanhada, geralmente, por um instrumento musical. Utilizada em diferentes épocas e literaturas, costuma expressar lamento, melancolia e dor. A elegia possui metrificação específica, no entanto, seu uso, com o passar do tempo, foi se atendo mais ao conteúdo do que à forma.

*Balada: inicialmente, a balada era gênero musical ligado à dança, surgida entre os povos da germânica. Por volta do século XIV, foi se tornando literária, sem vinculação com a música. Em Vinicius encontramos poemas-baladas que não seguem forma fixa, apenas têm algum conteúdo narrativo e musicalidade acentuada, com rimas e metrificação.



A volta da mulher morena
 
Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos,e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!

ANÁLISE

         O poema pertence à 1ª fase do poeta, em que a mulher representa o pecado por provocar o desejo no eu lírico.)  representando o pecado  precisa ser eliminada para que o eu lírico encontre a paz.

         O eu-lírico pede pelo retorno aos (ou pela permanência nos) braços da jovem camponesa (a sua salvação!): ‚Traze-me para o contato casto de tuas vestes / Salva-me dos braços da mulher morena‛. Valendo-se de muitos imperativos (‚cegai‛; ‚cortai‛; ‚traze-me‛; ‚salva-me‛; ‚livra-me‛; ‚reza‛; ‚compra‛; ‚dai‛), o eu-lírico inicia e fecha o poema mantendo interlocução com ‚amigos‛, ‚irmãos‛, aos quais pede ajuda para o esquecimento ou afastamento de quem, na verdade, já se enraizou nele, já o enlaçou: a mulher morena, cujos braços, lassos ‚São como raízes recendendo resina fresca / São como dois silêncios que me paralisam‛, e cujos olhos já o despertam de noite (3º verso). A sensualidade desta mulher e o sofrimento causado pela paixão (‚Os peitos da mulher morena sufocam o meu sono / E trazem cores tristes para os meus olhos‛) formam a temática deste poema muito embora a entrega (a aceitação do desejo) seja objeto de fuga do eu-lírico; muito embora ele peça pelo casto contato com a jovem camponesa. Note também, portanto, o conflito aí presente entre o amor ‚carnal‛ e o amor ‚puro‛, ‚casto.


Poesia
O incriado
Rio de Janeiro


Distantes estão os caminhos que vão para o Tempo - outro luar eu vi passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como as vozes dos campos moribundos.

Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Nada há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.

Nem plácidas visões restam aos olhos - só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só em busca de Deus.

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza

E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.
Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.

Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar eu repousei, quando minha boca ficou sedenta eu bebi
Quando meu ser pediu a carne eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.

Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada.

Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companheira errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.

Onde os cantos longínquos do oceano?... Sobre a espessura verde eu me debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores - são jovens que o eterno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o perfume da flor morta.

Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.

De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...

Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... Sobre o meu corpo as árvores passando...
Quem morreu se estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu sei que estou vivo porque sofro.

Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a bênção, mas sofro como um desesperado e nada posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos e das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.

Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!

Às vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro de suspensão a beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa,
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito.

Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.

Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memoria
Eu sou como velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam - nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passado, passando, passando...

Análise:

 Observe como nesse poema, por meio de versos livres e longos dentro do padrão dos famosos versículos bíblicos.
Vinícius se destaca por garantir ritmo,realçado pelas anáforas(repetição de expressões no início do verso). A

forma,portanto,adapta-se perfeitamente à preocupação do poeta de expressar a angústia de saber-se

prisioneiro da carne. Condena-a, mas enxerga nela o alívio de sua angústia. Com o espírito perturbado, entra

em processo de satanização, ao se intitular o “Incriado”, ou seja, a negação da criação de Deus, alguém que

não é semelhança e imagem do Divino.O eu-lírico se sente tão maldito que nega
em si o grão divino que, de acordo com o cristianismo, existe dentro de todos os homens. Para se esclarecer o

que está expondo, é importante a leitura de outro poema:

 O Poeta

O poeta

(...)
Foi muito antes dos pássaros – apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?
E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade ínperecível
Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.
(...)

 
Análisando 

- Mais uma vez se percebe que o uso que Vinicius de Moraes faz do verso livre bíblico, não o torna
enfadonho,monótono.Basta notar na 2ª estrofe do excerto como a repetição de expressões imprime ritmo ás

frases.É importante notar como esse poema mantém coerência com O Incriado, pois desenvolve o mesmo

tema da 1ª parte da Antologia.O eu lírico expressa a ideia de que ser poeta o torna um privilegiado, alguém

que participa dos grandes mistérios do funcionamento do universo, ou pelo menos assiste a eles.Expressa em

ambos os poemas, um narcisismo, um egocentrismo que o vinculam tardiamente ao Romantismo.- um

adolescente mergulhado nos conflitos mal resolvidos da religião



 
Soneto de Londres

Londres

Que angústia estar sozinho na tristeza
E na prece! que angústia estar sozinho
Imensamente, na inocência! acesa
A noite, em brancas trevas o caminho

Da vida, e a solidão do burburinho
Unindo as almas frias à beleza
Da neve vã; oh, tristemente assim
O sonho, neve pela natureza!

Irremediável, muito irremediável
Tanto como essa torre medieval
Cruel, pura, insensível, inefável

Torre; que angústia estar sozinho! ó alma
Que ideal perfume, que fatal
Torpor te despetala a flor do céu?


  O soneto é uma composição poética constituída por 14 versos, distribuídos, segundo o modelo petrarquiano (também chamado "soneto italiano"), em 2 quadras e 2 tercetos, as primeiras apresentando duas ordens de rimas e estes últimos duas ou três ordens. O esquema rimático mais freqüente é:
a b b a / a b b a / c d c / c d c

   Esse belo soneto contém várias notas da poesia de Vinicius .O monólogo não diz propriamente um horror à solidão,mas seu sem sentido.Há,claro,solidão e angústia,mas como forma de saudade de uma outra vida,ensolarada,povoada,bonita.Simbólicamente ,a torre é a impossibilidade transitória do contato humano.O tom da voz emocionalmente se ergue no meio da noite...Mas ele não eleva a voz por estar sozinho,despercebido dos outros :esse tom é o mesmo em muitas poesias de variada circunstância.



TERNURA
Vinicius de Moraes

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

Texto extraído da antologia "Vinicius de Moraes - Poesia completa e   prosa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 259.

COMENTÁRIO:
Na lírica de Vinicius aparece frequentemente,entre confissão e êxtase,a propenção de formular juízos sobre o amor(‘Mas que seja infinito enquanto dure’).É um velho traço da lírica moderna associar o argumento convincente à confissão apaixonada.

ANÁLISE

 1)  Eu te peço perdão por te amar de repente
  Lírica de amor em primeira pessoa,em simulação de diálogo idílico.

2)Expressões como:

’velha canção nos teus ouvidos’

‘à sombra dos teus gestos’

‘teus passos eternamente fugindo’;

dão a medida da não correspondência do amor.

3)Enfim, não é amor que se expressa convencionalmente,

4) No poema Ternura o sentimento é bastante intenso;frente a idealizada mulher a quem se apresenta, o eu-lírico é quase um ‘vassalo’;pede perdão por amá-la,´já passou horas’à sombra de teus gestos’,viveu acalentado pela indivizível graça de ‘passos eternamente fugindo’.De igual maneira,não expressa desejo carnal:’declara que o grande afeto deixado’Não  traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas/Nem as misteriosas palavras dos véus da alma .../É um sussego,uma unção,um transbordamento de carícias.


O poeta Vinicius de Moraes, apesar de modernista, explorou formas clássicas como o soneto abaixo, em versos alexandrinos (12 sílabas) rimados:



Vinicius e as Mulheres



"São demais os perigos desta vida
Pra quem tem paixão principalmente
Quando uma lua chega de repente
E se deixa no céu, como esquecida
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher..."


Em todos os casamentos desfeitos, a mesma cena se repetia.Ele ia embora praticamente com a roupa do corpo, levando consigo, no entanto, a certeza de que seu coração sempre estaria aberto para paixões novas e avassaladoras.

As mulheres - de vedetes a intelectuais - sempre foram fonte de inspiração máxima da obra de Vinicius de Moraes.

Ele vivia alegre e com intensidade assustadora. Como grande artista que foi, Vinicius fez com que toda a emoção e delicadeza de cada um de seus encontros e desencontros fizessem parte de sua magnífica obra.

Em entrevista concedida à Clarice Lispector, Vinicius de Moraes fala sobre o amor e sobre as mulheres:

C.L:- Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou porque se cansa da primeira?

V.M. - Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico final do meu soneto "Fidelidade": "que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure".

E assim Vinícius falava sobre o amor:

Soneto do Amor Total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente


Vinícius e seus parceiros


Mais do que parceiros Vinicius colecionou amigos e admiradores de sua obra. Companheiros de boêmia, do cotidiano, de rimas e notas musicais, eles formaram a fina nata da Música Popular Brasileira, junto ao 'Poetinha'. Os principais deles foram:

TOM JOBIM

Em 1955, Vinicius montaria a peça Orfeu da Conceição, com música a cargo de um então jovem pianista: Tom Jobim. Surgia assim uma parceria que se estenderia por toda a vida profissional e pessoal. Uma série de intérpretes gravou composições inesquecíveis da dupla, como Canções do Amor Demais, Luciana, Estrada Branca, Chega de Saudade, Garota de Ipanema, dentre outras. Mais do que ninguém, Tom foi o grande amigo.

CARLOS LYRA

Os dois se conheceram em 1961, ano em que compuseram juntos Você e Eu e Coisa Mais Linda. Outras composições da dupla são Primeira Namorada, Nada como ter Amor e A Marcha da Quarta-feira de Cinzas.

BADEN POWELL

A parceria com o violonista começou em 1962, ano em que foram compostas as belas Samba da Bênção, Tem Dó, Samba em Prelúdio, Consolação, Canto de Ossanha e Samba de Oxóssi. Valsa do Amor que não vem, interpretada por Elizeth Cardoso, conseguiu o segundo lugar do I Festival de Música Popular Brasileira, da TV Excelsior de São Paulo, em 1965.

TOQUINHO

Da intensa parceria iniciada em 1969 surgiu a clássica Tarde em Itapoã.O primeiro disco da dupla foi lançado em 1971, quando os dois passaram a se apresentar em numerosos shows no Brasil e no exterior. Ao todo, foram quase 120 músicas compostas pelos amigos.

Além deles, Vinicius fez parceria com Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque

“Dizem, na minha família, que eu cantei antes de falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, minha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como me machucavam aquelas valsas antigas. Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo música. Depois a poesia fez o resto." (Vinicius de Moraes)

Vinicius e a poesia


A obra poética de Vinicius de Moraes é dividida habitualmente em duas fases: uma de sentido místico e lírico, e outra mais sensual e de linguagem mais simples, que ele mostra também nas composições populares. Seu domínio da linguagem culta foi decisivo para conferir qualidade literária à música popular brasileira, enriquecida com suas letras.

Em 1933 lançou seu primeiro livro de poemas. Nessa época já era amigo dos poetas Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade. A carreira literária de Vinícius de Morais começou com o livro de poemas O caminho para a distância (1933) que, como Forma e Exegese (1935) e Ariana, a mulher (1936), revela as preocupações místicas e transcendentais do autor, de estilo poético ainda indefinido.

O quarto livro, Novos poemas (1938), também se inclui nessa primeira fase. Dois livros - Cinco elegias (1943) e Poemas, sonetos e baladas (1946) - marcam a transição para uma nova fase, mais voltada para a participação política e social, além da sensualidade. São desse período a Antologia poética (1955), o Livro dos sonetos (1957) e Novos poemas II (1959), que traz o poema "Receita de mulher". Na década de 1960 publicou mais três livros: Procura-se uma rosa, Para viver um grande amor (ambos de 1962) e Para uma menina com uma flor (1966), de crônicas. A arca de Noé (1970) é um livro de poesia para crianças.

Sem dúvida alguma Vinicius de Moraes foi um grande representante do lirismo amoroso dos nossos tempos. Ele conseguiu exprimir de forma realista o amor existente entre um homem e uma mulher. Após a primeira fase assumiu inteiramente o papel de poeta do amor e do mundo em que vivemos. Os sonetos de Vinícius surpreendem pela capacidade de atualizar a lírica de Camões. O "Soneto da Fidelidade" figura entre os melhores momentos do autor nessa forma. A preocupação política e social se revelam em poemas como "Operário em Construção".

Dele disse Carlos Drummond de Andrade:

 "Vinicius é o único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão. Quer dizer, da poesia em estado natural". "Eu queria ter sido Vinicius de Moraes". 

 Otto Lara Resende assim o definiu: "Manuel Bandeira viveu e morreu com as raízes enterradas no Recife. João Cabral continua ligado à cana-de-açúcar. Drummond nunca deixou de ser mineiro. Vinicius é um poeta em paz com a sua cidade, o Rio. É o único poeta carioca". Mas ele dizia nada mais ser que "um labirinto em busca de uma saída".

O que torna Vinicius um grande poeta é a percepção do lado obscuro do homem e a coragem de enfrentá-lo. Parte dos temas fundamentais: mistério, paixão e a morte. Quando deixa a poesia em segundo plano para se tornar show-man da MPB, para viver nove casamentos, para atravessar a vida viajando, Vinicius está exercendo, mais que nunca, o poder que Drummond descreve, sem conseguir dissimular sua imensa inveja: "Foi o único de nós que teve a vida de poeta".


A poesia abaixo foi retirada do livro de Sonetos:

Soneto de véspera



Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?

Que beijo teu de lágrimas terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?

Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou fria de vida

Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida.


Fonte: Cifra Antiga
Sítio de Vinicius de Moraes

Ana Peixoto










Soneto da intimidade




Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio as vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.




Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.




Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve




Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.

    Neste poema, extremamente sensorial, Vinícius nos transporta à tranqüilidade da existência no campo. Lugar onde estamos mais intimamente ligados à natureza, da qual fazemos parte, por mais que a urbanização dela nos afaste.


Arcadismo

         O Arcadismo foi uma escola literária também conhecida como Neo-clássica, pois retomava os ideais do classicismo. As características do Arcadismo que podemos encontrar em Vinícius de Moraes são:
● Imitação: [...] retorno aos modelos clássicos renascentistas.
● Bucolismo: [...] a pureza, a beleza e a espiritualidade residem na natureza. (MAIA, 2003, p. 185). 



 Leia também:
Receita de Mulher – Vinicius de Moraes
========== Livros sobre o poeta:
- O Poeta da Paixão (José Castello)
- Vinícius de Moraes: Uma Geografia Poética (José Castello)
- Vinicius de Moraes – O múltiplo das paixões (coleção “Gente do Século”)
- Vinícius de Moraes (Pedro Lyra)
========== Para ouvir:
- A arca de Noé 2 (1981
-
Um pouco de ilusão – Toquinho e Vinicius (1980
-
A arca de Noé (1980
-
10 anos de Toquinho & Vinicius (1979
-
Amália/Vinícius Amália Rodrigues e Vinicius de Moraes (1978
-
Vinicius de Moraes – antologia poética (1977
-
Tom / Vinicius / Toquinho / Miúcha – gravado ao vivo no canecão (1977
-
La voglia, la pazzia, l’incoscienza, l’allegria – Ornella Vanoni, Toquinho e Vinicius (1976
-
Vinicius / Toquinho (1975
-
O poeta e o violão – Toquinho e Vinicius (1975
-
Vinicius & Toquinho – Toquinho & Vinicius (1974
-
Encontro e desencontro – Marília Medalha e Vinicius de Moraes (1972
-
Vinicius canta “nossa filha Gabriela” – trilha sonora da novela da tv tupi (1972
-
São demais os perigos desta vida – Toquinho e Vinicius (1971
-
Toquinho e Vinicius (1971
-
Como dizia o poeta… Música nova – Vinicius, Toquinho e Marília Medalha (1971
-
La vita, amico, é l’arte dell’incontro – Vinicius de Moraes, Sergio Endrigo e Giuseppe –   Ungaretti (1969
-
Vinicius e Caymmi no zum zum (1967
-
Os afro-sambas de Baden e Vinicius (1966
-
Vinicius: poesia e canção vol. I (1966
-
Vinicius: poesia e canção vol. Ii (1966
-
Vinicius & Odete Lara (1963
-
Brasília – sinfonia da alvorada – música: Antônio Carlos Jobim – poesia: Vinicius de Moraes (1961
-
Canção do amor demais (1958
-
Poesias – vol. Ii – Vinicius de Moraes / Paulo Mendes Campos (1957
-
Orfeu da conceição (1956
-
A história dos shows inesquecíveis – poeta, moça e violão – Vinicius de Moraes, Clara - Nunes e Toquinho (1991
-
Deus lhe pague – trilha sonora da peça – músicas de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (1976
-
Fogo sobre terra – trilha sonora da novela da tv globo (1974
-
Toquinho, Vinicius & amigos (1974
-
O bem amado – trilha sonora da novela da tv globo (1973
-
Eu sei que vou te amar (1972
- Vinicius + Bethânia + Toquinho – en la fusa (1971
-
Vinicius de Moraes en la fusa – Vinicius de Moraes, Maria Creuza e Toquinho (1970
-
Pobre menina rica – trilha sonora original – Carlos Lyra e Dulce Nunes (1964
-
Coletânea – Toquinho e Vinicius (1997
-
Coletânea - Vinicius de Moraes (1967
-
Coletânea – Convite para ouvir – Toquinho e Vinicius - Tributo – falando de amor pra Vinícius (2001
-
Chega de saudade – um tributo a Vinicius de Moraes (2000
-
Vinicius – a arte do encontro – mpb-4 e Quarteto em Cy (2000
-
Vivendo Vinicius ao vivo – Baden Powell, Carlos Lyra, Miúcha e Toquinho (1999
-
Afro-sambas – de Baden Powell e Vinicius de Moraes (1996
-
Songbook Vinicius de Moraes (1993
-
Vinicius em cy (1993
-
Se todos fossem iguais a você – Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes (1988
-
Vinicius de Moraes – negro demais no coração (1988
-
Vinicius de Moraes (1988
-
Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes (1980
-
A música de Jobim e Vinicius (1963
-
Elizete interpreta Vinicius (1963
-
Por toda minha vida – música: Antônio Carlos Jobim – poesia: Vinicius de Moraes (1959
==========
Algumas poesias:

 
Soneto de Maior Amor

Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.
E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.
Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer – e vive a esmo
Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.


==

Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
==


Soneto do Amor Total


Amo-te tanto, meu amor … não cante
O humano coração com mais verdade …
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.
Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.
Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.
E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.
==


Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor
seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentando
Pela graça indizível
dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura
dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer
que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas
nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras
dos véus da alma…
É um sossego, uma unção,
um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta,
muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade
o olhar estático da aurora.
==


Poema dos Olhos da Amada



Ó minha amada
Que olhos os teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe dos breus…
Ó minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus…
Ó minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas era
Nos olhos teus.
Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.




SONETO DE INTIMIDADE
 
Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás
.
Deço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais.


Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve


Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma.

       Assim como no Arcadismo havia a idealização do amor e da mulher e em Vinícius esta também é uma temática marcante, corre-se o risco de pensar que seria também esta uma característica Árcade presente na obra de Vinícius de Moraes, mas no Arcadismo esta idealização do amor e da mulher eram tidos como “fonte de prazer, tranqüilo e não-passional” (MAIA, 2003, p. 186), enquanto que em Vinícius o amor é passional, melancólico e ás vezes até levado ao extremo de morrer por amor ou morrer de amor.


ANÁLISE DO POEMA


        Assunto elevado, como se o eu lírico quisesse revelar seus sentimentos e pensamentos mais íntimos num nível de linguagem e estilo condizentes, solenes.Mesmo a cena de abertura do eu caminhando pelos campos lembra os tradicionais poemas meditativos, em que o poeta se ocupa da contemplação da paisagem, entregando-se a altas ou sublimes reflexões em sintonia com seus sentimentos mais íntimos. No entanto, a “intimidade” que ele, por fim, revela ao leitor é das mais banais: a cumplicidade da mijada (atente-se ao nível vulgar dos termos) em comum numa festa de espuma que iguala o poeta (e o homem em geral) aos demais animais. Esse rebaixamento produz o humor presente no soneto. Nesse humor ou ironia está o traço de modernidade do poema, que entra em dissonância com a solenidade da forma clássica. Ainda em termos de linguagem, pode-se destacar como o eu, buscando enfatizar a beleza do cenário natural, acaba recorrendo, também de forma irônica, a um vício de linguagem: a redundância ou o pleonasmo em muito azul demais e o peito nu de fora –que, embora empregado em uma situação de fala mais informal, seria inaceitável num texto escrito tão elaborado quanto um poema (ainda mais um soneto clássico!).
      Nos quartetos, essa identificação é preparada pelos gestos ou ações do eu lírico que lembram o comportamento típico dos bois: ele segue, de peito nu, pelo pasto, agora mastigando capim (1ª. estrofe) e desce no vau de um rio para beber a água na fonte (2ª. estrofe). Já nos tercetos, essa identificação se confirma pelo modo como vacas e bois olham sem ciúme para o eu perto deles nos currais, pela própria cumplicidade da mijada em comum e, sobretudo, pelo emprego da 1ª. pessoa do plural pelo eu lírico para se referir a ele e aos bois e vacas como sendo todos animais.



O Haver

Vinicius de Moraes

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
15/04/1962

A poesia acima foi extraída do livro "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993, pág. 17.
_______________________
Cláudia Cordeiro, professora de Literatura Brasileira no Recife (PE), escreveu ao Releituras para dizer que havia uma outra versão dessa poesia. Foi feita uma pesquisa e localizada, declamada pelo autor, no disco "Vinicius de Moraes - Antologia Poética". Consta no disco que foi publicada no jornal "O Pasquim", não sendo citado o número do exemplar nem a data. Abaixo a versão, que julgo ser a primeira, para que os leitores conheçam.

O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo que existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será e virá a ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante.

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do grande medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

__________________________________


Daniel Gil, considerado um dos grandes conhecedores da vida e da obra de Vinicius de Moraes, pesquisa o assunto a fim de concluir sua dissertação de mestrado para a UFRJ, em andamento, e, também, faz para a Companhia das Letras uma revisão dos livros do poeta para seu relançamento. Os livros "O caminho para a distância", "Poemas, sonetos e baladas" e "Nova Antologia Poética" já estão à venda.

Diz ele, a respeito de "O Haver":

"A versão do poema "O Haver", de Vinicius de Moraes, publicado em "O Jardim Noturno", foi colhida num original de 1962. Este original encontra-se hoje na Casa de Rui Barbosa. No mesmo arquivo do museu, há outro manuscrito, com modificações, visivelmente posterior. Ou seja, o poema ainda não estava em sua forma final. Por sua vez, a versão que Vinicius recita no disco "Vinicius de Moraes - Antologia Poética" está em "O Melhor do Pasquim 1969/70", pág. 42. O poema então, quase oito anos depois, está pronto e publicado."

Aqui, pois, está a última versão, considerada até o momento a definitiva:

O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.
 









Soneto de fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa lhe dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
Estoril - Portugal, 10.1939




ANÁLISE:



Nos dois primeiros quartetos do soneto de Vinicius de
Moraes, delineia-se a idéia de que o
 amor deve ser compartilhado tanto na
alegria como na tristeza depreende-se dos dois últimos
versos da segunda estrofe: “E rir meu riso e derramar
meu pranto / Ao seu pesar ou seu contentamento”.


No segundo verso do poema, no qual o poeta mostra
como tratará o seu amor, as expressões “com tal zelo”,
“sempre” e “tanto” dão, respectivamente, idéia
de:
Com tal zelo é equivalente a “de modo tão zeloso” ou
“tão zelosamente”, indicando, pois, modo.

Sempre é um advérbio de tempo e tanto um advérbio de intensidade.

 Leia com atenção os versos:
“E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.”
“Mudaram as estações
Nada mudou”

É notória a oposição de idéias nos versos, o que significa
que neles se encontra como principal figura de
linguagem que é Antítese , a figura correspondente à aproximação de
antônimos ou de idéias que se contrapõem.

Soneto de carnaval

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento.
Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrado uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.
E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim
De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.
Oxford, 02.1939


A morte

A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
Das brancas estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.
Rio de Janeiro




A partida

Quero ir-me embora pra estrela
Que vi luzindo no céu
Na várzea do setestrelo.
Sairei de casa à tarde
Na hora crepuscular
Em minha rua deserta
Nem uma janela aberta
Ninguém para me espiar
De vivo verei apenas
Duas mulheres serenas
Me acenando devagar.
Será meu corpo sozinho
Que há de me acompanhar
Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Ninguém ficará chorando
Que mãe já não terei mais
E a mulher que outrora tinha
Mais que ser minha mulher
É mãe de uma filha minha.
Irei embora sozinho
Sem angústia nem pesar
Antes contente da vida
Que não pedi, tão sofrida
Mas não perdi por ganhar.
Verei a cidade morta
Ir ficando para trás
E em frente se abrirem campos
Em flores e pirilampos
Como a miragem de tantos
Que tremeluzem no alto.
Num ponto qualquer da treva
Um vento me envolverá
Sentirei a voz molhada
Da noite que vem do mar
Chegar-me-ão falas tristes
Como a querer me entristar
Mas não serei mais lembrança
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Compreensivo e singular
Como um cadáver num rio
E quando, de algum lugar
Chegar-me o apelo vazio
De uma mulher a chorar
Só então me voltarei
Mas nem adeus lhe darei
No oco raio estelar
Libertado subirei.




Marinha


Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.
Aos mergulhares do bando
Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.
E as ondas de pontas roxas
Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas, como frouxas
Entre vivas!




Os acrobatas


Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.
Subamos!
Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.
Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite
Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.
Como no espasmo.



E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus
Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.
E morreremos
Morreremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.


Paisagem

Subi a alta colina
Para encontrar a tarde
Entre os rios cativos
A sombra sepultava o silêncio.
Assim entrei no pensamento
Da morte minha amiga
Ao pé da grande montanha
Do outro lado do poente.
Como tudo nesse momento
Me pareceu plácido e sem memória
Foi quando de repente uma menina
De vermelho surgiu no vale correndo, correndo…





Balada do cavalão

A tarde morre bem tarde
No morro do Cavalão...
Tem um poder de sossego.
Dentro do meu coração
Quanto sangue derramado!
Balança, rede, balança...
Susana deixou minha alma
Numa grande confusão
Seu berço ficou vazio
No morro do Cavalão:
Pequena estrela da tarde.
Ah, gosto da minha vida
Sangue da minha paixão!
Levou o anjo o outro anjo
Da saudade de seu pai
Susana foi de avião
Com quinze dias de idade
Batendo todos os recordes!
Que tarde que a tarde cai!
Poeta, diz teu anseio
Que o santo te satisfaz:
Queria fazer mais um filho
Queria tanto ser pai!
Voam cardumes de aves
No cristal rosa do ar.
Vontade de ser levado
Pelas correntes do mar
Para um grande mar de sangue!
E a vida passa depressa
No morro do Cavalão
Entre tantas flores, tantas
Flores tontas, parasitas
Parasitas da nação.
Quanta garrafa vazia
Quanto limão pelo chão!
Menina, me diz um verso
Bem cheio de ingratidão?
– Era uma vez um poeta
No morro do Cavalão
Tantas fez que a dor-de-corno
Bateu com ele no chão
Arrastou ele nas pedras
Espremeu seu coração
Que pensa usted que saiu?
Saiu cachaça e limão.
Susana nasceu morena
E é Mello Moraes também:
É minha filha pequena
Tão boa de querer bem!
Oh, Saco de São Francisco
Que eu avisto a cavaleiro
Do morro do Cavalão!
(O Saco de São Francisco
Xavier não chama não
Há de ser sempre de Assis:
São Francisco Xavier
É nome de uma estação)
Onde está minha alegria
Meus amores onde estão?
A casa das mil janelas
É a casa do meu irmão
Lá dentro me esperam elas
Que dormem cedo com medo
Da trinca do Cavalão.
Balança, rede, balança...




Canção

Não leves nunca de mim
A filha que tu me deste
A doce, úmida, tranqüila
Filhinha que tu me deste
Deixe-a, que bem me persiga
Seu balbucio celeste.
Não leves; deixa-a comigo
Que bem me persiga, a fim
De que eu não queira comigo
A primogênita em mim
A fria, seca, encruada
Filha que a morte me deu
Que vive dessedentada
Do leite que não é seu
E que de noite me chama
Com a voz mais triste que há
E pra dizer que me ama
E pra chamar-me de pai.
Não deixes nunca partir
A filha que tu me deste
A fim de que eu não prefira
A outra, que é mais agreste
Mas que não parte de mim.



Quatro sonetos de meditação



I
Mas o instante passou. A carne nova
Sente a primeira fibra enrijecer
E o seu sonho infinito de morrer
Passa a caber no berço de uma cova.
Outra carne vírá. A primavera
É carne, o amor é seiva eterna e forte
Quando o ser que viver unir-se à morte
No mundo uma criança nascerá.
Importará jamais por quê? Adiante
O poema é translúcido, e distante
A palavra que vem do pensamento
Sem saudade. Não ter contentamento.
Ser simples como o grão de poesia.
E íntimo como a melancolia.





II
Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce.
Na sua tarde em flor. Uma mulher
Me ama como a chama ama o silêncio
E o seu amor vitorioso vence
O desejo da morte que me quer.
Uma mulher me ama. Quando o escuro
Do crepúsculo mórbido e maduro
Me leva a face ao gênio dos espelhos
E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.




III
O efêmero. Ora, um pássaro no vale
Cantou por um momento, outrora, mas
O vale escuta ainda envolto em paz
Para que a voz do pássaro não cale.
E uma fonte futura, hoje primária
No seio da montanha, irromperá
Fatal, da pedra ardente, e levará
À voz a melodia necessária.
O efêmero. E mais tarde, quando antigas
Se fizerem as flores, e as cantigas
A uma nova emoção morrerem, cedo
Quem conhecer o vale e o seu segredo
Nem sequer pensará na fonte, a sós...
Porém o vale há de escutar a voz.


IV
Apavorado acordo, em treva. O luar
É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
Desço na noite, envolto em sono; e os braços
Como ímãs, atraio o firmamento
Enquanto os bruxos, velhos e devassos
Assoviam de mim na voz do vento.
Sou o mar! sou o mar! meu corpo informe
Sem dimensão e sem razão me leva
Para o silêncio onde o Silêncio dorme
Enorme. E como o mar dentro da treva
Num constante arremesso largo e aflito
Eu me espedaço em vão contra o infinito.
Oxford, 1938




O riso

Aquele riso foi o canto célebre
Da primeira estrela, em vão.
Milagre de primavera intacta
No sepulcro de neve
Rosa aberta ao vento, breve
Muito breve...
Não, aquele riso foi o canto célebre
Alta melodia imóvel
Gorjeio de fonte núbil
Apenas brotada, na treva...
Fonte de lábios (hora
Extremamente mágica do silêncio das aves).
Oh, música entre pétalas
Não afugentes meu amor!
Mistério maior é o sono
Se de súbito não se ouve o riso na noite.




Pescador

Pescador, onde vais pescar esta noitada:
Nas Pedras Brancas ou na ponte da praia do Barão?
Está tão perto que eu não te vejo pescador, apenas
Ouço a água ponteando no peito da tua canoa...
Vai em silêncio, pescador, para não chamar as almas
Se ouvires o grito da procelária, volta, pescador!
Se ouvires o sino do farol das Feiticeiras, volta, pescador!
Se ouvires o choro da suicida da usina, volta, pescador!
Traz uma tainha gorda para Maria Mulata
Vai com Deus! daqui a instante a sardinha sobe
Mas toma cuidado com o cação e com o boto nadador
E com o polvo que te enrola feito a palavra, pescador!
Por que vais sozinho, pescador, que fizeste do teu remorso
Não foste tu que navalhaste Juca Diabo na cal da caieira?
Me contaram, pescador, que ele tinha sangue tão grosso
Que foi preciso derramar cachaça na tua mão vermelha, pescador.
Pescador, tu és homem, hem, pescador? que é de Palmira?
Ficou dormindo? eu gosto de tua mulher Palmira, pescador!
Ela tem ruga mas é bonita, ela carrega lata d'água
E ninguém sabe por que ela não quer ser portuguesa, pescador...
Ouve, eu não peço nada do mundo, eu só queria a estrela-d'alva
Porque ela sorri mesmo antes de nascer, na madrugada
Oh, vai no horizonte, pescador, com tua vela tu vais depressa
E quando ela vier à tona, pesca ela para mim depressa, pescador?
Ah, que tua canoa é leve, pescador; na água
Ela até me lembra meu corpo no corpo de Cora Marina
Tão grande era Cora Marina que eu até dormi nela
E ela também dormindo nem me sentia o peso, pescador...
Ah, que tu és poderoso, pescador! caranguejo não te morde
Marisco não te corta o pé, ouriço-do-mar não te pica
Ficas minuto e meio mergulhado em grota de mar adentro
E quando sobes tens peixe na mão esganado, pescador!
É verdade que viste alma na ponta da Amendoeira
E que ela atravessou a praça e entrou nas obras da igreja velha?
Ah, que tua vida tem caso, pescador, tem caso
E tu nem dás caso da tua vida, pescador...
Tu vês no escuro, pescador, tu sabes o nome dos ventos?
Por que ficas tanto tempo olhando no céu sem lua?

Quando eu olho no céu fico tonto de tanta estrela
E vejo uma mulher nua que vem caindo na minha vertigem, pescador.
Tu já viste mulher nua, pescador: um dia eu vi Negra nua
Negra dormindo na rede, dourada como a soalheira
Tinha duas roxuras nos peitos e um vasto negrume no sexo
E a boca molhada e uma perna calçada de meia, pescador...
Não achas que a mulher parece com a água, pescador?
Que os peitos dela parecem ondas sem espuma?
Que o ventre parece a areia mole do fundo?
Que o sexo parece a concha marinha entreaberta pescador?
Esquece a minha voz, pescador, que eu nunca fui inocente!
Teu remo fende a água redonda com um tremor de carícia
Ah, pescador, que as vagas são peitos de mulheres boiando à tona
Vai devagar, pescador, a água te dá carinhos indizíveis, pescador!
És tu que acendes teu cigarro de palha no isqueiro de corda
Ou é a luz da bóia boiando na entrada do recife, pescador?
Meu desejo era apenas ser segundo no leme da tua canoa
Trazer peixe fresco e manga-rosa da Ilha Verde, pescador!
Ah, pescador, que milagre maior que a tua pescaria!
Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela pescador!
Teu anzol é brinco irresistível para o peixinho
Teu arpão é mastro firme no casco do pescado, pescador!
Toma castanha de caju torrada, toma aguardente de cana
Que sonho de matar peixe te rouba assim a fome, pescador?
Toma farinha torrada para a tua sardinha, toma, pescador
Senão ficas fraco do peito que nem teu pai Zé Pescada, pescador...
Se estás triste eu vou buscar Joaquim, o poeta português
Que te diz o verso da mãe que morreu três vezes por causa do filho na guerra
Na terceira vez ele sempre chora, pescador, é engraçado
E arranca os cabelos e senta na areia e espreme a bicheira do pé.
Não fiques triste, pescador, que mágoa não pega peixe.
Deixa a mágoa para o Sandoval que é soldado e brigou com a noiva
Que pegou brasa do fogo só para esquecer a dor da ingrata
E tatuou o peito com a cobra do nome dela, pescador.
Tua mulher Palmira é santa, a voz dela parece reza
O olhar dela é mais grave que a hora depois da tarde
Um dia, cansada de trabalhar, ela vai se estirar na enxerga
Vai cruzar as mãos no peito, vai chamar a morte e descansar...
Deus te leve, Deus te leve perdido por essa vida...
Ah, pescador, tu pescas a morte, pescador
Mas toma cuidado que de tanto pescares a morte
Um dia a morte também te pesca, pescador!


Tens um branco de luz nos teus cabelos, pescador:
É a aurora? oh, leva-me na aurora, pescador!
Quero banhar meu coração na aurora, pescador!
Meu coração negro de noite sem aurora, pescador!
Não vás ainda, escuta! eu te dou o bentinho de São Cristóvão
Eu te dou o escapulário da Ajuda, eu te dou ripa da barca santa
Quando Vênus sair das sombras não quero ficar sozinho
Não quero ficar cego, não quero morrer apaixonado, pescador!
Ouve o canto misterioso das águas no firmamento...
É a alvorada, pescador, a inefável alvorada
A noite se desincorpora, pescador, em sombra
E a sombra em névoa e madrugada, pescador!
Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora
És tão belo que nem sei se existes, pescador!
Teu rosto tem rugas para o mar onde deságua
O pranto com que matas a sede de amor do mar!
Apenas te vejo na treva que se desfaz em brisa
Vais seguindo serenamente pelas águas, pescador
Levas na mão a bandeira branca da vela enfunada
E chicoteias com o anzol a face invisível do céu.



Lápide de Sinhazinha Ferreira

A vida sossega
Lírios em repouso
Adormecestes cega
Na visão do esposo.
A paixão é pouso
Que a treva não nega
A morte carrega
E o sono dá gozo.
Não vos vejo em paz
Nem vos penso bem
Na minha saudade.
Sinto que vagais
Ao lado de alguém
Pela eternidade.






Vinicius e muito mais
Eric Nepomuceno
Jornal do Brasil . 13/12/2005


A foto está lá, ocupando a metade da primeira página do segundo caderno de um conhecido matutino carioca, na edição de quarta-feira, 30 de novembro. Nela aparece tocando violão, de camisa negra e usando óculos escuros, Vinicius de Moraes. Na mão esquerda que busca um acorde, o leve brilho de uma aliança talvez dourada. Há quatro senhores de terno, há três moças. Dois dos homens olham para Vinicius, duas das moças também. Os olhos da outra, sentada no chão, parecem perdidos em algum devaneio. O terceiro homem, sentado aos pés de Vinicius, tem os olhos semicerrados, como quem ouve com atenção. O rosto do quarto homem está encoberto pelas letras amarelas do título.

Uma mesinha de centro mostra dez copos vazios ou quase, duas garrafas de ''água de mesa'', dois pratos usados, um maço de cigarros L&M.

A legenda da foto fala de ''um tempo de casas abertas, celebração da vida e da arte'', e por aí vai, sem levar a nada ou chegar a lugar nenhum, insinuando a atmosfera que envolvia um Rio de Janeiro cordial e generoso, embalando a bossa nova em berços vários.

Basta, porém, olhar com um mínimo de atenção para reparar que Vinicius está um tanto mais velho do que nos primórdios da bossa nova, tempo das reuniões que rompiam madrugadas do Rio em alguma casa generosa e aberta. A foto deve ser do final dos anos 60, ou começo dos 70. É estranho, então, que os outros homens estejam de terno e gravata. Naquela altura da vida de Vinicius e do Rio, ninguém se vestiria assim.

Esse olhar minimamente atento mostrará também que o encontro não aconteceu no Rio: ninguém chama água mineral de ''água de mesa'', que é o que se lê no rótulo das garrafas. Então, além dos ternos e gravatas extemporâneos, há esse outro indício de que se trata de alguma cidade estrangeira.

Mas é ao reparar nos homens da foto que surge a verdadeira curiosidade desse encontro. Sentado numa poltrona, o rosto apoiado na mão esquerda, quem contempla Vinicius é o poeta uruguaio Horácio Ferrer. Ele escreveu letras para canções como Balada para un loco e Chiquilín de Bachín, além da esplêndida opereta Maria de Buenos Aires. No canto direito da foto, sentado no chão, os cabelos cuidadosamente penteados, a gravata sóbria, o olhar levemente posto entre Vinicius e o nada, quem ouve com atenção é o autor das melodias que receberam as letras de Ferrer, um argentino que revolucionou a música e se chamava Astor Piazzolla.

Certa noite de Buenos Aires, Piazzolla se apresentava com seu quinteto num recital. Amelita Baltar cantava as canções que ele tinha escrito com Ferrer. De repente, depois dos aplausos e rompendo um silêncio de missa que antecedia a próxima canção, Piazzolla ouviu uma voz gritando em português: ''Que maravilha! Filho da puta! Filho da puta!''. E em seguida, de pé na frente do palco, o homem dos gritos desandou a aplaudir. Piazzolla ficou pasmo, até perceber que o homem era Vinicius de Moraes, que ele não conhecia pessoalmente.

Aquela homenagem única de Vinicius a Piazzolla aconteceu antes da foto. O mestre argentino jamais se esqueceu da primeira vez que viu o poeta brasileiro. O que a foto mostra são dois homens que com sua arte viraram a vida pelo avesso. Não é uma reunião de época, não é uma imagem de casas abertas: é bom saber - e lembrar - que é o registro do encontro de duas grandezas únicas. E das quais somos todos herdeiros, sabendo ou não.



Bendito vagabundo
Zuenir Ventura
No Mínimo . 02/12/2003

Eu ainda estava sob o impacto do que acabara de assistir em Campo Grande, Mato Grosso do Sul - a apresentação de um extraordinário violonista chamado Marcelo Loureiro - quando dois jovens me abordaram na saída perguntando se eu por acaso havia conhecido Vinicius de Moraes. Respondi que sim, e eles então pediram que eu contasse algumas histórias do poeta. Era um pouco de curiosidade, mas também um pouco de dúvida: “será que ele conheceu mesmo?”.

Enquanto íamos caminhando, tentei me lembrar de algum caso interessante, mas quase todos os que me vinham à cabeça eram impróprios para menores. Até que me lembrei de um episódio ocorrido no Festival de Cannes, que eu não digo o ano para não permitir a identificação das personagens envolvidas. Depois de uma sessão de cinema, fomos parar no cassino, um grupo de brasileiros comandados por Vinicius e sua mulher de então, uma das nove que ele teve.

Distantes do grupo, nós dois estávamos sentados em bancos altos tomando uísque no balcão do bar, quando se deu o incidente. De costas para a cena, ouvi primeiro um estalo seco, quase metálico; depois, os gritos femininos: “sua p..., p... é você”. Antes de me virar, vi a cara de susto do poeta e seu apelo: “me ajuda, Zuenirzinho”. A sua capacidade de reduzir tudo a um diminutivo era tanta que até em meu nome, que não se presta a esse acréscimo carinhoso, ele conseguia botar um zinho.

Virei-me rápido, saí correndo atrás dele, mas ao chegarmos à roda que então se formara, as duas damas já tinham sido devidamente apartadas e estavam contidas pela turma do deixa-disso. Soubemos então o que acontecera: num ímpeto de ciúme, a mulher do poeta agredira com um estridente tapa uma outra jovem brasileira que fora conosco ao cassino. Quando voltamos para os nossos banquinhos, devo ter olhado com suspeita para Vinicius, porque sua reação foi imediata: “não olha assim pra mim não, Zuenirzinho, dessa vez eu estou inocente!”.

Não faz muito tempo encontrei a agressora. Não foi a primeira vez, mas só então tomei coragem de perguntar sobre aquela distante saia-justa: quis saber se ela não tinha exagerado no surto, se havia mesmo razão para tanto ciúme, se não sentira vergonha do vexame naquela festiva madrugada de Cannes. Confessou que, claro, ficava constrangida até hoje quando se lembrava do incidente, mas ainda acha que teve razão. Quando lhe contei a declaração de inocência que eu ouvira, ela riu: “em matéria de mulher, você não sabe do que era capaz o Vinicius”.

Por uma dessas coincidências que muitos dizem não existir, cheguei de Campo Grande no dia em que Miúcha ia lançar o seu excelente CD “Vinicius & Vinicius”, cantando as músicas que Vinicius fez sem parceiros, sozinho, como autor de melodia e letra. Havia na Modern Soud de Copacabana algo que lembrava o poetinha não apenas pelas filhas e amigos presentes, mas também pelo clima do lugar, uma mistura de loja de disco e de bar-restaurante que hoje ele poderia freqüentar (aliás, uma das presenças mais animadas e animadoras da festa era Maria Amélia. Aos 94 anos, ela foi lá prestigiar a filha e homenagear aquele que foi um dos melhores amigos dela e do marido, Sérgio Buarque de Hollanda. No final, em pé no meio-fio com sua bengalinha, fazia sinal para um táxi).

Não sei se Vinicius teria igual disposição com 90 anos, que é com quanto ele estaria agora. Com restrições, acho que ele não sobreviveria. Preferi ficar me lembrando do boêmio incurável que nunca teve vergonha ou culpa de beber; ao contrário, exibia em público o seu vício, levando o copo de uísque para onde fosse, inclusive para o palco, como um violão. Ele foi o artista que tirou a bebida da clandestinidade.

Na biografia amorosa que escreveu sobre o amigo, o poeta Geraldinho Carneiro lembra os versos que o cronista José Carlos Oliveira fez para serem cantados com a cândida melodia de “Nessa rua, nessa rua tem um bosque”:

“Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios
O meu nome deveria ser Vinicius
Se esses vícios fossem muito imorais
Eu seria o Vinicius de Moraes.”

Na verdade, mais do que imoral, Vinicius foi amoral, no sentido de que ele mesmo elaborava seus códigos de conduta, se é que tinha algum. Poucas pessoas viveram a vida com tanta liberdade, despudor e prazer. E poucos poetas foram tão sensuais, tão capazes de cantar o amor carnal com tanto lirismo. Seus sonetos sobre o tema podem figurar numa antologia ao lado dos de Camões.

Acho que foi o próprio Geraldinho que disse uma vez que Vinicius tinha a coragem de rimar amor e flor e ainda assim fazer boa poesia. Me lembrei disso ouvindo Miúcha, cuja voz está cada vez mais delicada e parece feita para cantar os amores e desamores do amigo. Que outro poeta teria coragem de incluir em sua “Serenata do adeus” esses versos de um romantismo tão descabelado: “Ah, mulher, estrela a refulgir,/Parte, mas antes de partir/ Rasga o meu coração,/ Crava as garras no meu peito em dor/ E esvai em sangue todo o amor,/ Toda a desilusão”.

Geraldinho lembra que detratores como o marechal Costa e Silva e apologistas como Toquinho e Chico Buarque chamaram Vinicius de vagabundo. “Tudo bem. Na falta de melhor morada, Vinicius fez do entre-lugar da boemia a sua pátria de eleição.” Bendito vagabundo.


Vinicius de Moraes: poeta e letrista
Susana Moraes
Do samba-canção à tropicália . 18/10/2003

Este é um depoimento com algumas considerações sobre a trajetória de Vinicius e as diversas combinações que deram a ele um papel tão importante na cultura brasileira e especialmente na sua música popular. Participei de perto de muitos pedaços dessa trajetória, em primeiro lugar, porque sou sua filha mais velha, e depois, por temperamento e eleição. Já adulta, e em diferentes épocas, fui ficando amiga de alguns dos seus parceiros, sobretudo do Tom. Hoje em dia, com 62 anos verifico que tive e tenho mais amigos músicos do que de qualquer outra profissão inclusive cinema que é o que eu de vez em quando faço. Isso para dizer que Vinicius, a Bossa Nova, a Música Popular Brasileira e afins são temas de infindas conversas noite adentro com músicos e gente ligada em música de várias praias.

O que sempre me interessou nessa riqueza que é a nossa música popular fica bem exemplificado na pessoa de Vinicius pelas origens. Vinicius de Moraes nasceu filho da pequena classe media carioca. Pelo lado do pai, de uma pequena classe média culta ­ escritores, professores, um folclorista, um que fez um dicionário, uns Moraes pobres oriundos, dizem, de sangues mais ou menos azulados suecos e alemães. O meu avô Clodoaldo, pai de Vinicius, era 25 anos mais velho do minha avó e tinha sido seu professor de violino. Era um homem fino, delicado, boníssimo, pequeno funcionário público, latinista, poeta de gaveta pós-parnasiano, amigo de Olavo Bilac. Tocava violino, piano, sabia música. Já pelo lado de minha avó Lydia, uma família um pouco mais abastada e completamente inculta. Sidney Magal é primo de Vinicius e meu por conseqüência, de segundo grau. Isso é o lado dos Santos Cruz. Incultos mas muito animados, boêmios, namoradores, tocadores de violão e cavaquinho. Tudo de ouvido, tudo swing. Sempre tinha seresta. O tio Niboca, irmão mais moço da minha avó, quase da idade de Vinicius e durante a adolescência seu amigo inseparável além de tocar violão e cavaquinho fazia de vez em quando umas
canções e até teve uma, ³Diz que tem², gravada por Carmen Miranda. Também tinha o tio Henriquinho, delegado, que numa história famosa na família foi pego pelo chefe de polícia na sua sala da delegacia tocando violão e bebendo com as putas que deveriam estar presas.

Então as tradições da casa dos meus avós eram essas: minha avó tocava bem piano e cantava com uma voz alta muito afinadinha. Nos domingos depois de um almoço carioca caprichado Dona Lydia sentava no piano e aí rolavam os choros, as valsas e as modinhas. Vinicius tocava mal violão com desenvoltura e sempre aparecia com novidade, um sambinha engraçado ou uma balada inglesa, alguma coisa que ninguém conhecia. Suas escolhas tinham humor e mesmo as canções mais sentimentais ele cantava com um sorrisinho nos lábios. Isso foi acontecendo em Botafogo, na Ilha do Governador e depois na Gávea, onde eu nasci. Isso foi a formação musical básica de Vinicius.

Vou cortar agora para alguns anos depois, quando já morávamos em Los Angeles. Vinicius foi para lá como diplomata, era seu primeiro posto Los Angeles e ali, por volta de 1944 ou 1945 ele se apaixonou por jazz. Nessa época, além de diplomata, ele escrevia eu acho que para o Diário de Notícias, para um desses jornais da época, crônicas de cinema e crônicas sobre jazz. Lá em Los Angeles, travou amizade com um sujeito chamado Neshui Ertegun, que mais tarde criou a Atlantic Records, um selo importante só de jazz. Neshui também era apaixonado e tinha uma lojinha onde vendia os discos, muito freqüentada por músicos. A música na nossa casa nos Estados Unidos era basicamente jazz e essa paixão de Vinicius se desenvolveu. Eu tinha uns 6, 7 anos e tem algumas improvisacões de Charlie Parker que até hoje sei de cor, nota por nota. Lembro de irmos algumas vezes a New Orleans, uma vez especialmente para ouvir Jelly Roll Morton, de quem ele se tornou amigo. É claro que também se ouvia Música Popular Americana, Gershwin, Frank Sinatra mas basicamente era jazz.

Nessa época alguns músicos brasileiros que moravam em Los Angeles também foram através de Vinicius se aproximando do jazz inclusive os músicos do Bando da Lua que trabalhavam com Carmen Miranda. Carmen freqüentava a nossa casa e com ela, Aluísio de Oliveira, que era o arranjador, compositor bissexto e namorado dela durante um tempo. Aluísio foi se interessando por jazz cada vez mais e muitos anos depois, de volta ao Brasil fundou o selo Elenco onde produziu uma série de discos de Bossa Nova.

Quando Vinicius voltou para o Brasil, no começo dos anos 50 essa mistura de informaões se encontrou com informações parecidas de Tom Jobim, de João Gilberto e de alguns outros jovens compositores. Todos tinham ligações profundas com Música Popular Brasileira e também tinham ouvido Chet Baker. O primeiro encontro foi com Tom na peça Orfeu da Conceição. Nesse primeiro momento as músicas ainda não se caracterizam pela batida de João Gilberto, isso veio logo depois, mas já tem a combinação do ³popular² com a cultura ³erudita². Nisso Orfeu da Conceição é exemplar, uma peça de teatro escrita em versos baseada no mito grego de Orfeu mas ambientada no morro carioca representada por negros. São vertentes que se encontraram num determinado momento histórico, politico e cultural dos anos 50. Antes de eu conhecer pessoalmente João Gilberto, com 15, 16 anos, Vinicius disse assim: ³ apareceu aí um cara que toca um violão genial, um músico completamente original, ele vai acompanhar Elizete no disco² ­ o disco era Canção do Amor Demais. Ele ficou deslumbrado com João Gilberto desde o primeiro minuto.

Acredito que uma das coisas importantes na relação de Vinicius com Tom e João Gilberto, além dos talentos individuais e identificações, era o fato de ele ser um poeta publicado, reconhecido dentro da literatura brasileira e latino-americana. Isso dava uma espécie de aval para o que estava sendo produzido. Pela primeira vez, acho que no mundo, isso é, no mundo ocidental, um poeta sério passou sistematicamente a escrever letras de música, dedicar-se principalmente a isso. Tom era de uma família de professores, ficava impressionado com o fato de Vinicius falar línguas, ter estudado em Oxford.

No primeiro instante a Bossa Nova, e Vinicius em particular foram muito criticados. De um lado por uma ala da ³literatura séria² que achava aquilo um rebaixamento lamentável do seu talento poético e de outro lado pela turma da pureza musical, das raízes intocáveis. Essa corrente é forte, empedernida e atravessa os tempos. Pixinguinha na sua época foi criticado porque gostava de jazz depois naturalmente a Bossa Nova pela sua apropriação da música popular americana seguido da Tropicália pela sua absorção do rock, dos instrumentos eletrificados e à valorização de manisfestações populares consideradas deselegantes. Essa vontade conservadora de querer que as coisas parem no tempo, puras, sem misturas. Mas o resultado dessas misturas foi uma obra universal e uma imagem dos brasileiros para si mesmos e para todo o mundo completamente nova. Esses sons e essas letras eram tão sofisticados quanto Cole Porter ou Duke Elington e qualquer um podia ver isso. A Bossa Nova é, de certa forma e em grande escala, a concretização de 22: jantamos os gringos para abrir um espaço interno maior. Como diz Antonio Cicero raízes são importantíssimas mas o que faz diferença são as antenas. Para a minha geração foi como encontrar sua própria dicção. Olha, a primeira vez que eu ouvi João Gilberto cantar eu pensei assim: é isso aí.

Bem, isso aí é só um pedacinho dessa história.

in Do samba-canção à tropicália. Org.
Paulo Sérgio Duarte e Santuza Cambraia Naves,
Ed. Relume-Dumará: Rio de Janeiro, 2003.



Vinicius@paixão
Flávio Pinheiro
Nomínimo . 18/10/2003

Vinicius de Moraes foi muitos. Tivesse sido um só e seria, como disse Sergio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), apenas Vinicio de Moral. Foi poeta, diplomata, letrista e pedra filosofal da Bossa Nova, crítico de cinema bissexto, dramaturgo eventual, cidadão do mundo. E trágico, transcendental, materialista, cínico, divertidíssimo, boêmio e apaixonado por multidões de mulheres, inclusive as feiinhas, para quem pedia afeto e piedade. De manhã escurecia, de noite ardia.

Vinicius chegou ao mundo junto com o temporal que varreu a madrugada de 19 de outubro de 1913. Faria 90 anos no domingo. Morreu aos 66 em 1980 não como o maior poeta brasileiro, que não foi, mas como o mais amado. “Com o ar de quem conversa ocasionalmente...Vinicius vai transformando tudo em estilo, um espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo",” disse ninguém menos que Antonio Candido, o mais importante e respeitado estudioso de literatura do país.

Na efeméride dos 90 anos há dois marcos que se entrelaçam. Há dias está no ar o site www.viniciusdemoraes.com.br, corajosa iniciativa da família em geral e de Susana, filha mais velha do poeta, em particular. Toda a obra de Vinicius está no site – poesia, prosa, crítica de cinema, letras de música, biografia, tudo – coisa bem rara na Internet brasileira. Se ainda restar alguma dúvida sobre a devoção à Vinicius basta clicar em “Recados”. É tanta gente grata à palavras perfeitas e versos inesquecíveis, alguns divinamente musicados, que marcaram suas vidas.

Quem abrir no site pode concorrer também ao concurso de sonetos com prêmios diferentes para estudantes e poetas de todas as cepas. O júri é de peso: Heloisa Buarque de Holanda, Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto e Glauco Matoso.

O site consumiu meses de trabalho. Susana dá crédito ao que chama de “curadoria chinesa” do poeta Eucanaã Ferraz. Eucanaã restaurou os títulos originais de livros, o que Vinicius mesmo revogara quando aceitou mudanças de nomes propostas por Afrânio Coutinho na organização de suas obras completas na Aguillar. “Ninguém se perde”, garante Eucanaã, “porque há menções no site aos títulos reformados”. Até de amigos, Eucanaã ouviu que o site oficializava a pirataria. “É exatamente o contrário”, reage. Vinicius está todo exposto na Internet com absoluta transparência, à prova de piratarias.

Junto com Antonio Cícero, poeta e letrista, Eucanaã organizou para a Companhia das Letras uma nova antologia poética de Vinicius. Os dois tiveram a audácia de mexer na Antologia feita pelo próprio Vinicius com palpites de Manuel Bandeira.

Esta versão da antologia acaba em 1954. Demarca fronteiras entre o Vinicius transcendental, místico, de arrebatamentos metafísicos e o Vinícius próximo do mundo material “com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. Cícero e Eucanaã acharam isso pouco. Vinicius depois disso multiplicou-se. Graças ao corte temporal, a antologia tinha poesias demais da primeira fase. Suprimiram algumas. Acrescentaram outras. Chegaram a 128.

Na Nova Antologia Poética, que a Companhia das Letras está programando para publicar em novembro, estão as essenciais. Mário de Andrade achava “Ternura” deliciosa (Eu te peço perdão por te amar de repente/Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos/ Das horas que passei à sombra dos teus gestos/Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos/Das noites que vivi acalentando). Mas implicava com uma certa mania por antíteses "cheirosamente fáceis" de Vinicius e achava de mau gosto “a brincadeirinha sem menor interesse essencial” que fecha “O Amor nos Três Pavimentos”. Eis a brincadeirinha: Pra te adormecer/Até um gurizinho, se você deixar/Eu dou pra você.

Mário, porém, já percebia em Vinicius um grande poeta, jamais infenso a críticas. Como dizem Cícero e Eucanaã os católicos não perdoaram Vinicius pela perda da fé; “a esquerda militante desconfiava de seu aparente hedonismo ‘festivo’; os membros da geração de 45, sem confessá-lo, abominavam-no por elaborar sonetos infinitamente mais memoráveis que os deles; os vanguardistas, por empregar formas fixas; os conservadores, por não se ater a estas; os elitistas, por ter se tornado popular, etc”.

O sucesso de Vinicius na música instaurou paradoxos. Carlos Drummond de Andrade invejava-lhe a simplicidade, a enorme capacidade de comunicar-se com corações apaixonados ou aflitos. Mas houve quem dissesse que na música Vinicius entregou-se a profusão. Produzia demais. Sem lirismo perdeu concisão. Seu ceticismo açucarou. Suas licenças afetivas roçaram no pegajoso.

Também na música Vinicius teve várias facetas. Foi melancólico e grave com Edu Lobo e Francis Hime. Terno, inocente e militante com Carlos Lyra. Alegre e negro com Baden Powell. Lúdico e folclórico com Toquinho. Pungente e simples com Chico Buarque. Tudo com Tom Jobim. Garota de Ipanema, ainda mais aguada nos versos de Norman Gimbel do que nos de Vinicius, é a segunda música mais executada nos Estados Unidos. Só perde para Yesterday dos beatles Lennon & McCartney.

Vinicius foi cidadão do mundo. Beijou a mão da inexpugnável Greta Garbo. Ficou amigo de Orson Welles. Embriagou-se com Pablo Neruda, de quem não conseguia despedir-se. Numa festa em Hollywood foi apresentado por Carmen Miranda a uma jovem e cintilante morena. Ela já tinha percebido que ele não desgrudara os olhos dela e disse: "I'm very beautiful. But morally I stink". (Sou muito bonita. Mas moralmente cheiro mal). Era Ava Gardner antes de enlouquecer Frank Sinatra.

Definir Vinicius não é fácil. Manuel Bandeira disse que ele “tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e, finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos”.

Do Vinicius sobretudo divertido cuidou Paulo Mendes Campos que em 1988 fez para uma empresa de engenharia um livro que seria distribuído como brinde. Chamava-se “Murais de Vinicius”, elegia escrita em retalhos de memória que entrou na reedição da obra de PMC. Vinicius conheceu Paulo em 1943 em Belo Horizonte, e numa noite no parque parque municipal o poeta carioca “cantou diversas vezes Stormy Weather debaixo de luar torrencial”.

Em inacreditável pelada na praia de Copacabana com Di Cavalcanti como goleiro de um dos times e Augusto Frederico Schmidt como centro-avante parado do outro, Menisco de Moraes com dois minutos de jogo simulou contusão para se juntar ao mulherio da platéia.

A história de Manduca merece figurar em qualquer antologia de humor de alça de caixão. Vinicius morava na Gávea, atendeu o telefone e do outro lado da linha uma voz chorosa contava a morte de Manduca. Era a mãe dele. Dizia: “o senhor era o maior amigo que ele teve”. Manduca era uma lembrança vaga dos primeiros anos de colégio mas Vinicius decidiu ir ao velório dele numa rua perdida em Madureira. Percebeu ao chegar que era esperado. Todos os olhares sobre ele, já famoso. Foi até a borda do caixão e atolado disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Agüenta a mão aí, bichão”. “No fim da frase já sentia a monstruosidade de seu pronunciamento, esperando em vão que o chão se abrisse e ele também desaparecesse”, completa Paulinho.

Nos "Murais...", PMC compila brevíssimo dicionário de citações do amigo. “Dentre os instrumentos criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua”, é uma das frases. Outra, autobiográfica: “Se Clodoaldo Pereira da Silva Moraes e eu trocamos dez palavras durante a sua vida foi muito. Bom dia, como vai, até a volta – às vezes nem isso. Há pessoas com quem as palavras são desnecessárias. Nós nos entendíamos e amávamos mundanamente, meu pai e eu”.

E seu lema: “A maior solidão é do ser não ama. A maior solidão é do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana”. É Paulo quem pergunta: “Existirá na língua portuguesa outra fascinação tão global pela mulher?” E não se trata apenas da capacidade de descrever a beleza em todas as suas curvaturas, de exortar a feminilidade, mas também de entender suas fraquezas. Talvez em “Desespero da Piedade” ele diga tudo.

Outro amigo, Otto Lara Rezende leva Vinicius a sério para falar do poeta que reabilitou o soneto. “Metro e rima variam, porém, segundo as exigências do tema, ou segundo os caprichos do poeta que é, no soneto ou fora dele, uma malabarista que não recua diante do salto mortal”, ele disse. Do trapézio, Vinicius de Moraes não refugava.

VINICIANDO

Quando Vinicius morreu Marcelo Camelo, vocalista e compositor de Los Hermanos, tinha dois anos. Tem poucas e vagas lembranças de suas letras, mas algumas fortes como "A felicidade", uma das primeiras composições com Tom Jobim. Tristeza não tem fim/Felicidade sim. "Esse primeiro verso é um acontecimento, não?" Vai mais adiante. "E a relação que ele faz com o Carnaval e, sobretudo, com a trajetória da pluma (A felicidade é como a pluma/Que o vento vai levando pelo ar/Voa tão leve/Mas tem a vida breve/Precisa que haja vento sem parar). Tem conteúdo e forma. A poesia que nasce no significado e que por isso não é vaidosa. A estética não sobrepuja o significado porque ele é maior, mais forte...e é muito singelo".

Trata-se aqui de cada um falar de seu Vinicius, poeta e letrista. Das poesias e letras serão citados, na maioria das vezes, apenas trechos para não atravancar a leitura. Quem quiser ler as versões completas deve clicar no pé da página nos nomes das poesias e letras. No dia 31 de julho na abertura da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), uma das lentes do óculos saltou da órbita e Chico Buarque teve que ler seu Vinicius com uma lente só. Primeiro leu "Trecho", desavença de amor entre o Celo e a Flauta (Quem foi, perguntou o Celo/Que me desobedeceu?/Quem foi que entrou no meu reino/E em meu ouro remexeu). Depois, recitou "A Volta da mulher morena" com seu chorrilho de imprecações(Cortai os peitos da mulher morena...Daí morte cruel a mulher morena!). E ainda cantou "Medo de amar", que é só de Vinicius (Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz). Delírio na platéia.

Na mesma noite, Antonio Cícero fez comovente leitura de Pátria Minha (A minha pátria não é florão, nem ostenta/Lábaro não; a minha pátria é desolação/De caminhos, a minha pátria é terra sedenta/E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular/Que bebe nuvem, come terra/E urina mar) Depois, Suzana Moares escandiu "Soneto do Corifeu" (São demais os perigos desta vida/Para quem tem paixão, principalmente/Quando uma lua surge de repente/E se deixa no céu, como esquecida). E outro clássico, "Poética (I)".

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, cujo último livro "Caixa de sapatos" foi lançado recentemente, também adora "Poética". E diz por que:

"Esse poema é belo belo, como diria Manuel Bandeira. Traz a sutileza dos contrários, uma poética da vivência antes mesmo de ser um modo de usar a literatura. O vocábulo é extremamente simples, mas carregado de inversões, como a peercepção de que o excesso de luz faz anoitecer. Uma das principais marcas do poeta é a lascívia igual diante da vida e da morte. Seu extremo de viver e comunicar a vida carregava a preparação de uma despedida. Predomina o acento grave do pensamento, de uma verdade autobiográfica, de uma confissão inadiável, ponderada, ao mesmo tempo testamento e estranhamento. Ele nunca permite a filosofia (a visão de mundo) sufocar a imagem. A imagem é o próprio verbo. Seus versos têm sobrancelhas que se afastam dos olhos a cada pincelada. É uma peça contida, de movimento circular, que poderia constar sem fazer feio numa antologia do inglês W.H.Auden".

Verdade autobiográfica é também o que levou o jornalista e escritor José Castello, autor de "Vinicius de Moraes – O Poeta da Paixão", biografia do poeta publicada em 1994, a escolher "Carta aos 'puros'" (Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/E em cujos olhos queima um lento fogo frio/Vós de nervos de nylon e de músculos duros/Capazes de não rir durante anos a fio). "Carta aos puros", diz Castello que também é colaborador de NoMínimo, "não é considerado, em geral, um dos grandes poemas de Vinicius de Morais. Ainda assim, é um dos mais importantes que ele escreveu. Está para a obra de Vinicius assim como Psicologia da composição está para a de João Cabral de Melo Neto. Trata-se de um poema síntese de sua teoria poética. Num século dominado pela poesia asséptica dos formalistas, Vinicius a ela se contrapõe fazendo a defesa de uma poesia comprometida, contaminada mesmo, pela existência".

Paulo Henriques Britto, poeta ("Trovar Claro" e "Macau", são seus dois últimos livros) e tradutor de Elizabeth Bishop, Thomas Pynchon e tantos outros, ainda na adolescência surpreendeu-se com o "Soneto de intimidade", que Vinicius escreveu em 1938.

Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em tomo dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma

"Era diferente não apenas dos outros sonetos de Vinicius como também de tudo que eu já lera antes", diz Paulo Henriques. "A conjunção da forma clássica rigorosa com uma temática 'baixa' era uma novidade para mim, e viria a ter grande importância na minha formação poética. Muitos anos depois quando estava estudando e traduzindo a obra da poeta norte-americana Elizabeth Bishop, descobri que ela havia feito uma excelente versão em inglês deste soneto. Imagino que ele a tenha fascinado pelo mesmo motivo que me fascinou: também Bishop é uma poeta que gosta de utilizar formas tradicionalmente associadas aos temas elevados para tratar de temas cotidianos e humildes".

O cotidiano fez de Vinicius um poeta-cronista. Carmen L.Oliveira, autora de "Flores raras e banalíssimas" e "Trilhos e quintais", adora "Balada das duas mocinhas de Botafogo". "A mãe asmática, largada do marido, e as irmãs de lábios inconhos e olhos findos assomam, nítidas e insalubres, na 'Balada das duas mocinhas de Botafogo'. O poema é um exemplo fascinante de intervenção da poesia na narrativa. Por dom ou labor, o poeta sabe inteirar-se da palavra mais certa, a um tempo insólita e exata, sem rebuços nem asperezas, para que sua história, com pontaria lírica, possa evocar e pungir".

Pontaria, exatidão. Eucanaã Ferraz, cujo livro de poesias "Desassombro" é finalista do prêmio Portugal Telecom, gosta muito da geométrica precisão de "Azul Branco" que repete "concha e cavalo marinho" e "azul e branco" como motes perpétuos da azulejaria que forra o prédio do Ministério da Educação. "A leveza do edifício e sua sintaxe elegante, a um só tempo sofisticada e simples, ressurgem nos versos, que tomam para si aquelas mesmas qualidades formais. Se nos lembrarmos dos volumes limpos, puros e da articulação dos corpos transversos a se mostrarem claramente aos olhos dos passantes, reconheceremos o quanto o poema de Vinicius traduz em escrita esta arquitetura aquática. As imagens de 'Azul e branco' apóiam-se, entre outras coisas, no jogo entre música e silêncio, céu e mar, noite e aurora, sugerindo a fluidez 'feminina' dos espaços. Vinicius alcançou aqui, sem dúvida, um momento alto de sua poética".

Vinicius é sempre evocação, mesmo em mundos tão diferentes quanto os de Paulinho Moska ou Leoni e de Nei Lopes. Leoni, responsável pelos primeiros grandes sucessos do Kid Abelha adoraria ter escrito "Janelas abertas" (Eu poderia ficar sempre assim/Como uma casa sombria/Uma casa vazia/Sem luz nem calor). Paulinho Moska leva no peito o que considera seu alimento até hoje – a definição de amor do verso final de "Soneto de fidelidade" (Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure), partitura de trocentas cantadas ontem, hoje, sempre.

O Vinicius de que se gosta nem sempre é o melhor, mas o que fala mais fundo. É assim com Aldir Blanc, compositor e escritor. Sua letra favorita é de “Bom dia, tristeza” fruto de parceria improvável entre Vinicius e Adoniran Barbosa. “Sei que não é a melhor, mas é a que me atinge no meio da cara e me joga na serragem do pé-sujo”.

Autor de sambas clássicos como "Senhora Liberdade", "Coisa da Antiga" ou "Gostoso Veneno", Nei Lopes nunca foi muito chegado em Vinicius. Acha a proclamação "o branco mais preto do Brasil!" coisa de "tenda dos milagres". "Eu tinha uns 16 anos e estava realmente apaixonado pela primeira vez. Era correspondido. Já fazia uns versinhos. E 'Eu não existo sem você' era tudo o que eu queria dizer". Vinicius baixou de novo em sua cabeça, um pouco mais tarde. "Eu tinha 22, era militante do CACO e do CPC (o Centro Popular de Cultura da UNE), andava meio desbundado por causa da Redentora e estava querendo me apaixonar de novo. E aí, tome 'Primavera' de Vinicius! Com cuba-libre e os primeiros cigarros com filtro".

Com cuba-libre, chope, caipirinha ou refrigerante, com ou sem serragem no chão, 23 anos depois de sua morte, Vinicius de Moraes ainda entoa paixões.




Altas Intensidades
Francisco Bosco
Revista Cult (nr. 73) . 01/10/2003

Ética e estética nas letras de música de Vinicius de Moraes

I

Há uma força que atravessa, de cabo a rabo, o conjunto das letras de música de Vinicius. Ou melhor, as letras surgem dessa força e procuram transformar-se nela, tornando-se a sua verdade. De que força se está falando, todos que ouvimos suas letras o sabemos bem: trata-se da força do amor. Mas não é isso, ainda. É preciso perguntar de onde vem essa força, de que por sua vez as letras vêm.

Para Vinicius, a experiência do amor é trágica. O que responde por essa tragicidade? O fato de que, para ele, o amor acaba: o amor é uma intensidade que queima, consome-se e consuma-se, esvaziando-se fatalmente. O que fazer, então, diante dessa experiência? Aqui começa a força: Vinicius fez um pacto com as altas intensidades, e dispôs-se a pagar seu preço, igualmente alto. Pois se o amor é uma alta intensidade que, no tempo, esvazia-se, só lhe restava aceitar essa dinâmica e acatar o fim do amor - o que significava abrir novamente a possibilidade de um novo amor, da vivência de uma nova intensidade alta, e assim sucessivamente.

A força de Vinicius - de suas letras e de sua vida, pois ético e estético estão aqui indissociavelmente ligados - vem daí, desse pacto com o que para ele se apresentava como alta intensidade. Essa, às vezes, pode - e deve - ser negativa; faz parte do preço. Pois é preciso trazer à tona, nesse pacto tão exigente, a categoria de sacrifício: todas as perdas, toda a interrupção, tudo aquilo de que é preciso desfazer-se para manter-se fiel às altas intensidades. Todos os lutos. A força é da ordem de uma firmeza ética. No pacote do pacto vêm a luminosidade e a obscuridade, os recomeços e os términos - os extremos das altas intensidades. Ou ainda: altas intensidades só têm extremos, não há meio-termo.

II

Vamos contar essa estória de outra maneira; em parceria, em “canto e contraponto”, como se faz na música.

Comecemos por aqui: “Perto da dor de saber / Que o meu céu não existe / Que tudo que nasce / Tem sempre um triste fim / Até meu carinho, até nosso amor”. (Andam dizendo - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A experiência trágica do amor, portanto: tudo que nasce termina, e não há “céu”, não há abrigo onde se proteger dessa verdade. E quando o amor acaba, “É inútil fingir / Não te quero enganar / É preciso dizer adeus”. (É preciso dizer adeus - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso, mas é duríssimo, “Porque o amor é a coisa mais triste / Quando se desfaz”. (Amor em paz - Tom Jobim e Vinicius de Moraes).

E, no entanto, o pacto com as altas intensidades - as quais talvez Vinicius chamasse dessa maneira: a felicidade. “A felicidade é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar / Voa tão leve / Mas tem a vida breve / Precisa que haja vento sem parar”. (A felicidade - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A felicidade é efêmera, como as altas intensidades. Precisa haver uma força que a mantenha no ar, ou melhor, que volte a erguê-la do chão, por onde deverá passar, sempre. A experiência do chão é terrível, mas é preciso suportá-la, pois o temor pode botar tudo a perder: “Mas o amor sabe um segredo / O medo pode matar o seu coração”. (Água de beber - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso enfrentar o sacrifício, “Por que a vida só se dá / Pra quem se deu”. (Como dizia o poeta - Toquinho e Vinicius de Moraes).

Nos momentos de iluminação amorosa, no interior da alta intensidade, ocorrem vislumbres do infinito, promessas de repouso e solução: “A esperança divina de amar em paz” (Se todos fossem iguais a você - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). Pouco importa que a esses momentos sucedam novamente as dúvidas e os términos; isso é apenas o preço - alto, mas o preço. O que importa é que “A vida é a arte do encontro / Embora haja tanto desencontro pela vida”. (Samba da benção - Baden Powell e Vinicius de Moraes).

III

Vivemos em um tempo de déficit de subjetividade. O que isso quer dizer? Que há um empobrecimento na experimentação de formas de vida. Os grandes mitos da sociedade hoje são, quase sempre, figuras cuja presença no imaginário das pessoas se deve a um aparato aurático produzido pela repetição infinita de sua imagem nos meios de comunicação de massa. Para além ou aquém dessa aura midiática, pouco resta.
Assim, os ícones do espetáculo não se apresentam como referências para experimentações de formas de vida, e a arte - embora, a meu ver, viva um momento histórico vigoroso - não se apresenta, observando em termos de tendências gerais, como uma convergência do ético com o estético.

Vinicius faz parte de uma linhagem de artistas que continuam, sob suas diversas condições históricas, o projeto romântico de unir arte e vida. No ato de escrever esteve em jogo, para ele, a aventura de escrever a própria vida. Era um artista que criava formas de vida, e que, como todo artista, engajou-se na luta de tentar dar vida às suas formas (os poemas, as letras, as peças de teatro, etc).

Em um momento como esse, em que experimentações de formas de subjetivação ao nível dos afetos, da produção de relações, são desencorajadas pela sociedade do consumo e do espetáculo, os valores que Vinicius faz circular na cultura (em suas letras, mas também em todo o rastro de signos que disseminou em sua passagem) tornam-se, mais do que desejáveis, urgentes: o amor, a amizade, a invenção de formas de vida, a exploração corajosa do amplo território da imanência. A vida.

Francisco Bosco é escritor, letrista e ensaísta. Doutorando em Ciência da Literatura pela UFRJ. Publicou “Invisível Rutilante” (Poemas - Ed. Francisco Alves, 1999) e é co-autor, junto a João Bosco, do projeto lítero-musical “Malabaristas do Sinal Vermelho” (Sony Music, 2003), entre outros.




A musa das imagens
Sérgio Augusto
O Globo . 08/07/2003

Muito se ouvirá falar, nos próximos meses, em Vinicius de Moraes. Tantas serão as homenagens, edições e reedições que os seus 90 anos correm o risco de ganhar feições centenárias. Antes que ninguém agüente ler mais nada sobre o poeta, presto-lhe aqui, com nove meses de antecedência, um modesto preito com jeito de ajuste de contas.

Acima, o poeta, Tati e os dois filhos do casal, Pedrinho e Suzana, em Los Angeles, fim dos anos 40: nessa época, era ela que escrevia os artigos do marido

Que contas? Digamos que eu me sinta em dívida com Vinicius. Não só pelo que ele fez, mas sobretudo pelo que eu lhe fiz. Ou melhor, pelo que eu não lhe fiz. Escolhido por Luiz Schwarcz para escrever a biografia do poeta, já lá se vão 13 anos, acabei jogando a toalha, após meses de espera por um patrocínio que nunca se materializava. Não vou dizer que me arrependo da desistência nem que ela tenha desagradado o poeta, que lá do Céu deve ter dado graças a Deus pelo upgrade a que fez jus em matéria de biógrafo. Em meu lugar entrou José Castello e em 1994 a Cia. das Letras lançou O Poeta da Paixão. Duvido, sinceramente, que pudesse fazer melhor, mas de uma coisa estou certo: na minha biografia haveria um pouco mais de cinema (além de cinéfilo e vice-cônsul em Los Angeles, Vinicius foi crítico e até censor de filmes) e muito mais Tati de Moraes.

Tati foi a primeira mulher de Vinicius. Conheceram-se em 1938, na casa do arquiteto e pintor Carlos Leão, cunhado dela. Moça fina, bonita à beça, culta e inteligentíssima, Tati, nascida Beatriz Azevedo de Mello, era tudo aquilo que Vinicius merecia na vida, segundo Portinari, o Santo Antônio daquela união. Embora não conhecesse, àquela altura, nenhum dos poemas de Vinicius, apenas sua assinatura, pois esta aparecia sempre no rodapé dos certificados da Censura cinematográfica projetados antes de cada filme, Tati enrabichou-se pelo poeta carioca em questão de segundos.

Musa dos intelectuais modernistas de São Paulo, seu precoce prestígio pode ser atestado por duas barretadas literárias. Foi em sua homenagem que Monteiro Lobato batizou de Tati o peixinho vermelho de As Reinações de Narizinho e não é outra a Tatizinha que, acoplada a Augusto Meyer e Tarsila, desponta nas últimas estrofes de Cobra Norato, de Raul Bopp. Claro que Vinicius a homenageou mais vezes e em outra voltagem afetiva. O Soneto de Fidelidade, por exemplo, foi escrito para ela, no Estoril, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Fui amigo de Tati, não de Vinicius. Caprichos do destino. Devia ter uns 16 anos quando li pela primeira vez seus comentários cinematográficos no Última Hora. Por ser a crítica de cinema, naquela época, um feudo masculino, pensei que Tati fosse não uma garota, como a de Aníbal Machado, só que adulta, mas, pelo modo como se desmanchava por certos atores, uma bicha enrustida. Ali pelos 19, engatinhando no ofício, conheci toda a verdade. Numa sessão matinal na cabine da United Artists, Gilberto Souto, fazendo, como de hábito, as honras da casa, me apresentou a uma senhora miudinha e de voz rouca, que parecia já ter nascido com um cigarro aceso entre os dedos. Como então Tati de Moraes não era homem e muito menos uma bicha enrustida.

Começaria ali uma amizade que só perderia intensidade depois de sua aposentadoria como crítica. Quando iniciei minha pesquisa sobre a vida e obra de Vinicius, tratei logo de agendar o que todos assumiam impossível: uma entrevista com Tati. Ela sempre se recusara a falar sobre Vinicius. “Mas para você, e só para você, ela disse que conta tudo”, confidenciou-me aquele que na época era seu maior amigo e comparsa de viagens e traduções, Newton Goldman. Regalia igual ninguém mais teria.

Desse desperdício, sim, eu me arrependo – e muito. Quantas histórias maravilhosas de sua conturbada vida com Vinicius Tati me teria contado. As outras que me desculpem, mas ela foi a mais importante figura feminina na vida do poeta. Nenhuma mexeu tanto e tão profundamente com a cabeça dele. O escritor americano Waldo Frank não foi o único responsável pela guinada ideológica radical de Vinicius. Em 1942 o poeta já não era tão de direita como nos tempos em que seguia à risca o evangelho de Octavio de Faria. Quatro anos de convivência com Tati o haviam empurrado lentamente para a esquerda.

Era Tati que estava ao lado de Vinicius quando o cinema entrou mais a sério na vida dele. Foi com ela que ele morou em Hollywood, justamente no período em que o já citado e saudosíssimo Gilberto Souto lá vivia como correspondente. E foi com a ajuda dela que conseguiu entrar para a diplomacia. Afogado nos estudos para o concurso para o Itamaraty, sem tempo para ver os filmes que deveria criticar, Vinicius pediu a Tati que fosse ao cinema em seu lugar e depois escrevesse as críticas. Também usou Mario Vieira de Mello como ghost critic, mas Tati, segundo consta, desencumbiu-se mais vezes da tarefa e menos transtornos causou ao titular da coluna. Intransigente desafeto do cinema hollywoodiano, Mello acabou indispondo Vinicius com todas as distribuidoras de filmes americanos no Brasil.

O cinema pegou o poeta antes mesmo de ele abrir seu primeiro berreiro, numa chuvosa noite de outubro de 1913. Seu nome de batismo, Marcus Vinitius, foi uma homenagem ao soldado romano de Quo Vadis?, best seller de Henryk Sienkiewicz que no ano anterior fora levado à tela pelo italiano Enrico Guazzoni. Uma de suas brincadeiras de infância prediletas era projetar cenas de luta sobre um lençol estendido na parede da sala. O ingresso cobrado à família custeava as idas ao Guanabara, cinema de verdade que ficava na esquina de sua rua, no bairro carioca de Botafogo.

A descoberta do “cinema como arte” só surgiria na Faculdade de Direito, por estímulo do colega de curso, Octavio de Faria. Filiou-se ao Chaplin Club, o primeiro cineclube brasileiro, fundado por Faria, Plínio Sussekind Rocha e Almir Castro, assimilando várias idiossincrasias daquele grupo, nenhuma tão grave quanto a renitente birra de todos eles contra o cinema falado. “O som é uma experiência, brilhante, não há dúvida, num filme como Aleluia, como Cidadão Kane, como Tempos Modernos, esporadicamente. Mas é uma ênfase, uma superfetação” – escreveria em 1942. Quinze anos já haviam se passado desde a chegada do sonoro e Vinicius continuava fiel ao truísmo de que os filmes silenciosos eram o supra-sumo da pureza, da verdadeira arte cinematográfica.

Sua primeira aproximação do cinema em bases profissionais deu-se, infelizmente, pela via errada. Substituiu Prudente de Moraes, neto, como representante do Ministério da Educação na Censura. Cinco anos mais tarde, um emprego que parecia ter caído do céu: uma coluna diária de cinema. Só que no jornal inadequado: A Manhã, dirigido pelo poeta Cassiano Ricardo, linha-auxiliar do Estado Novo. Se não precisasse tanto de aumentar sua renda para sustentar mulher (Tati) e uma filha (Susana), teria esperado por oferta mais palatável. Estreou em agosto de 1941, com um solene arrazoado sobre o cinema como “meio de expressão total em seu poder transmissor e sua capacidade de emoção”. Ficou na gazeta governista até fevereiro de 1944, quando, por pressão das distribuidoras de filmes americanos, foi demitido.

Voltaria à crítica nas páginas de O Jornal (em 1944), do Diário Carioca (1945), da revista Diretrizes e, no começo dos anos 50, no mesmo Última Hora em que, mais tarde, Tati se iniciaria no métier com sua própria assinatura. Na metade desse caminho, Vinicius e Tati (mais Susana e Pedrinho) viveram em Hollywood, freqüentando festas de artistas e, com maior assiduidade, as que Carmen Miranda organizava. Foi no jardim de Carmen que o nosso vice-cônsul em Los Angeles teve o seu inesquecível encontro com uma jovem lindíssima, que foi logo lhe dizendo, assim sem mais nem menos, que era uma formosura por fora e a mais feia das criaturas por dentro. “Quem é aquela deusa louca?”, perguntou Vinicius à anfitriã. “Uma atriz em início de carreira”, respondeu Carmen. Ninguém menos que Ava Gardner.

Em suas memórias, Aloysio de Oliveira lembra, com indisfarçável saudade, das reuniões na casa cor-de-rosa, quase na esquina de Pico Boulevard com La Brea, onde os Moraes moravam. Seus principais habitués, além de Aloysio, eram os correspondentes Gilberto Souto e Alex Viany, cuja mulher, Elza, se tornaria a maior amiga de Tati. Dos jogos de salão da turma, o mais divertido, para Aloysio e Gilberto, era o das “traduções malucas” que inventavam para os títulos dos filmes americanos do momento. Eles se divertiam traduzindo The Snake Pit (Na Cova das Serpentes) para “A Cobra Apitou” e Ruthless (literalmente, “implacável”, “desumano”) para “Sem Ruth”. (Ruthless foi lançado aqui com o título de O Insaciável.)

Vinicius não foi nem pretendia ser um grande crítico. Fazia crônicas deliciosas e cheias de metáforas alimentícias (determinados filmes, atores, atrizes e personagens lhe lembravam frutas, legumes e até refeições completas), sendo que muitas vezes usou o cinema como mero pretexto para divagações sobre outros assuntos. De uma feita gastou toda a coluna para falar do enfado que os filmes em cartaz lhe provocavam e sua preferência por passear de bicicleta pela praia do Leblon, na companhia de Rubem Braga. Foi em 1943 e a crônica está na pág. 38 de O Cinema de Meus Olhos, coletânea das críticas do poeta, reunidas por Carlos Augusto Calil e editadas pela Cia. das Letras em 1991.

Considerava-se, acima de tudo, um fã. E como todo fã que se preza, tinha uma visão mística do cinema, que chegou a definir como “os olhos do primeiro homem em êxtase contínuo”. Considerava heresia alguém sair no meio de um filme e dormir durante a projeção. E ai de quem se sentasse depois da décima fila: cinéfilo autêntico não era. Detestava flashbacks, torcia o nariz para diretores sofisticados e presepeiros, não perdia uma chance de pichar o cinema americano. Cometeu graves injustiças (com John Ford, por exemplo), mas soube enxergar o gênio de Val Lewton à primeira vista. Alternava platitudes do tipo “a história é bem levada até certo ponto” e divagações poético-filosóficas eventualmente afetadas e confusas. Embora se permitisse alguns paralelismos intelectualizados – comparou Hitchcock a Mallarmé e Carol Reed a Paul Valéry –, raramente se aventurava no campo teórico.

Para Paulo Emilio Salles Gomes, Vinicius não sabia pôr um argumento depois do outro, ligá-los, tirar uma conclusão. Mas seu acervo de insights é considerável. Muita gente percebeu que Orson Welles filmava interiores como um expressionista alemão, mas só Vinicius parece ter sacado que ele filmava paisagens como um cineasta russo. Aliás, quando Welles veio ao Brasil, em 1942, o futuro parceiro de Tom Jobim o seguiu como Alcebíades ia atrás de Sócrates, em permanente estado de graça.

Vinicius deixou páginas memoráveis sobre as atrizes de sua preferência. Idolatrava Marlene Dietrich (que não lhe deu bola em Hollywood), Greta Garbo, Paulette Goddard e Ingrid Bergman (que encontrou por acaso numa banca de jornais de Los Angeles). Moleque, não resistia a uma brincadeira nem a trocadilhos. Gozou a insossa Jane Powell em versos; criticou uma fita de Tarzan, do jeito tatibitate como o “rei da selva” falava na tela e outra sobre o filho de Robin Hood como se fosse um garoto de cinco anos. Vez por outra, em sua coluna, publicava cartas de amor às estrelas que mais falavam à sua libido. Também como crítico, o poeta se deixava sempre dominar pela paixão.



A anunciação

Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?
Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...


Montevidéu, 01.11.1958

in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "A lua de Montevidéu"




A arca de Noé

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pêlo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre – "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.

Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.




in Poesia completa e prosa: "Poemas infantis"
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"



A ausente

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...




in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "


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Carlos Drummond de Andrade

                      

Literatura

Relacionados
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Ainda bem que Carlos Drummond de Andrade seguiu o conselho de um anjo torto e foi ser gauche na vida, fazendo da poesia profissão. Nascido em Itabira (MG) em 1902, numa família de fazendeiros em decadência, estudou em Belo Horizonte e no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, de onde foi expulso pelos jesuítas por insubordinação mental.

Por insistência da família, diplomou-se em Farmácia, mas nunca exerceu a profissão. Preferia frequentar as rodas de escritores de Belo Horizonte, onde participou, aos 23 anos, da criação de A Revista, publicação literária importante para a afirmação do Modernismo mineiro. Nessa fase, que vai até a sua mudança para o Rio de Janeiro em 1934, a obra de Drummond é estreitamente ligada aos valores pregados durante a Semana de Arte Moderna de 1922. Os primeiros livros, como Alguma Poesia e Brejo das Almas, trazem versos anedóticos, sintéticos e irônicos.
Divulgação
  • Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)
Em 1926, inicia atividade jornalística no Diário de Minas. A mudança para a capital revelou outra face de Drummond, que se tornou um poeta de seu tempo, politicamente engajado e disposto a usar a literatura como ferramenta de crítica social. Foi época em que conciliou a atividade poética com o serviço público, como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação.

Ligado ao Partido Comunista Brasileiro no início dos anos 40, escreveu poesias de fundo social, como Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945). Mas a indignação causada pelas desigualdades sociais em nada comprometeu o seu profundo lirismo, senso de humor e emoção contida. Muitos poemas de Drummond mostram um homem ao mesmo tempo torturado pelo passado e assombrado pelo futuro. Ora cético e melancólico, ora irônico e bem-humorado, foi também um fino crítico de costumes.

Em sua poesia, ligada à observação da relação com outros seres, o amor tem muitas vezes um gosto amargo. O amadurecimento faz com que, a partir dos anos 50, predominasse o poeta-filósofo, de versos enigmáticos, e também o cronista de sucesso, que encantava os leitores do Correio da Manhã e do Jornal do Brasil. A partir de Claro Enigma (1951), Drummond voltou a registrar o vazio da vida humana e o absurdo do mundo.

Outros livros que o consagraram como o nosso maior poeta moderno foram Lição de Coisas, Boitempo, O Menino Antigo e Farewell. Todos espelham o embate que permeia toda a sua vida: de um lado o desejo de mudanças político-sociais, de outro, a simpatia por valores da tradição. Buscando refletir o seu tempo presente, sem abandonar o contexto maior da humanidade, Drummond torna-se um dos maiores e inesquecíveis poetas do Brasil. Abatido com a morte de sua filha única, Maria Julieta, Drummond morreu no Rio de Janeiro, em 1987.
Fonte:Livro 100 Brasileiros (2004)
                                        




Confidência do itabirano 

(Poema da obra Sentimento do mundo), de Carlos Drummond de Andrade


Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!




                                   


         O poema começa com a saudade profunda de seu lugar de nascimento, traçado em quatro belas, mas sofredoras estrofes. Confessa (estrofe 3) que aprendeu a sofrer por causa de Itabira; mas, paradoxalmente: "A vontade de amor (...) vem de Itabira"; vale dizer que o amor nasce e é servido no sofrimento. De Itabira vem a explicação de Drummond viver de "cabeça baixa" (estrofe 3, verso 6). Afinal, apesar das negatividades, o poeta sente uma incomensurável saudade de sua cidade natal.O texto insere-se na segunda fase de Drummond em que o social é preponderante.
        O poema evidencia a visão crítica do eu sobre o meio e ressalta  a influência que o MEIO tem sobre o EU.

          Carlos Drummond de Andrade é um dos expoentes do movimento modernista brasileiro.Nos seus poemas trabalhou poeticamente as inquietudes e os dilemas humanos.Sua poesia  é feita  de uma relação tensa entre o UNIVERSAL e o PARTICULAR.




                     
 Mundo grande

                       CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
 
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
 
ANÁLISE

       O eu lírico agora percebe que o mundo é grande,ou seja,é mais importante do que ele.’Não meu coração não é maior que o mundo’’ou ‘’Tu sabes como é grande o mundo’’e outros.
    Preocupa-se com os problemas do mundo,deseja participar deles.
   Com base na quarta e quinta estrofes o eu lírico expressa sobre a postura  que vinha tendo diante do mundo,postura individualista,inconseqüente,que não levava a nada , a não ser ao empobrecimento do próprio ser humano.
A propósito das duas últimas estrofes do poema:
  O eu lírico diz ter viajado por’’ilhas sem problemas’’;em seguida afirma que’’ilhas perdem o homem’’.No contexto do poema as ilhas simbolizam o isolamento ou a indiferença perante os problemas do mundo.Considerada sua atual disposição de  participar da transformação do mundo
   O poema é finalizado com o verso”-Ó vida futura!nós te criaremos’’.De acordo com esse verso e com a última estrofe do poema,cabe a tarefa de construir a vida futura;a palavra nós não apenas inclui o eu lírico,mas também traduz o sentimento de compromisso coletivo perante a causa social.



O FAZER POÉTICO EM DRUMMOND

Fábio Della Paschoa Rodrigues


Drummond, nos livros que compreendem o período do Modernismo, ou seja, entre 1922 e 1945, dedicou sempre alguns poemas sobre o fazer poético, sobre a função da poesia. Em Alguma Poesia (1930), Brejo das Almas (1934), Sentimento do Mundo (1940), José (1942) e A Rosa do Povo (1945), Carlos Drummond de Andrade nos deu belíssimos poemas que comportam uma poética própria que, na análise cronológica de seus livros, ora se transforma com alguns nuances ou mais dramaticamente, ora conserva outros conceitos e idéias.
Como Drummond resolve sua poética? Tentemos buscar nos poemas sobre poesia uma tentativa de resposta a essa questão, verificando uma possível coerência e o desenvolvimento da poética de Drummond, já que, poeta torto, ele vacila entre suas produções mais voltadas ao indivíduo (como no livro de estréia, Alguma Poesia) e a poesia mais social, coletiva.

“Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração”
Em Alguma Poesia, temos um poeta que vive na solidão. E sua poesia basta a ele. A poesia surge quando aparece uma pedra no meio do caminho do poeta. Ela “surge quando o universo se torna insólito, enigmático, embaraçoso – quando a vida já não é mais evidente” (Merquior, 1975:25).
A figura do poeta é sempre elidida, o que se afigura nos poemas é tão somente a mão, ou a pena que escreve.
A mão que escreve este poema
não sabe que está escrevendo

(“Poema que aconteceu”, AP)
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever
(“Poesia”, AP)
Ao reduzir a figura do poeta à sua mão, Drummond parece privá-lo de sua consciência: o poeta parece não ter consciência do seu fazer poético e, “se soubesse”, talvez “nem ligasse”  (“Poema que aconteceu”, AP). Em “Poema que aconteceu” (AP) a composição do poema é involuntária, “o poema ‘aconteceu’ num sentido completamente impessoal. Presumimos que há um poeta”. O poeta, “o eu não é criador, mas vítima da sua poesia” (Gledson, 1981:80-1).
Quando aparece a figura do poeta, ele não se apresenta no seu fazer poético, senão na sua vida cotidiana.
O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia,

Bandeirolas 
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos...
O poeta está melancólico.
(“Nota Social”, AP)
Por vezes, ele aparece inconsciente, bêbado de tudo, cantor inconseqüente de seu canto.
O poeta ia bêbedo no bonde.
(“Aurora”, BA)
Nos dois primeiros livros de Drummond, a poesia parece ser a redenção do poeta, sua “consolação”. O verso do poeta serve-lhe e somente a ele. É seu muro de lamentações.
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
(...)
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.
(“Explicação”, AP)
Faz-se verso como se faz qualquer outra besteira, como se bebe, como se xinga. O poeta faz besteiras e convida os outros:
Vamos fazer um poema
ou qualquer outra besteira.
(“Convite triste”, BA)
As necessidades do poeta são postas no poema, como se assim, a carência delas fosse suprida:
É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
(“Poema da necessidade”, BA)
Mas não se espere que o canto do poeta transforme as pessoas: “A poesia é incomunicável” (“Segredo”, BA). E no entanto, o poeta crê na necessidade de mudar o mundo e credita muito valor ao poema. Mas o coração do poeta é mais vasto que o mundo.

“Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.”
No terceiro livro, Sentimento do Mundo, Drummond revê o fazer poético. Amadureceu o poeta individualista de Alguma Poesia, tomando consciência do mundo, apesar de não se esquecer de seu coração: “agora, o órgão sensível da poesia-acontecimento não é mais a instância individualista do coração, é a consciência individual (mas socializável) do sofrimento coletivo” (Merquior, 1975: 40).
O poeta de Sentimento do Mundo constata que vive em “um tempo em que a vida é uma ordem” (“Os ombros suportam o mundo”, SM), que vive num mundo grande, onde os homens de “diferentes cores”  vivem suas “diferentes dores” e que não é possível “amontoar tudo isso/num só peito de homem” (“Mundo grande”, SM). Ele constata, arrependido, que se voltou para si e para seus ínfimos problemas:
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
(“Mundo grande”, SM)
Mais que constatar ele se recusa a ser  “o poeta de um mundo caduco”,  a ser “o cantor de uma mulher, de uma história”. O poeta não será uma ilha, mas cantará “o tempo presente, os homens presentes,/a vida presente” (“Mãos dadas”, SM). O verso-cachaça dá lugar ao verso-combate, que alimenta o coração do poeta, para lhe dar forças para lutar:
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
Ó vida futura! nós te criaremos.
(“Mundo grande”, SM)

“Lutar com palavras
é a luta mais vã.”
Num livro em que Drummond se volta novamente ao indivíduo (o nome do livro já é uma indicação disso), a poética de José apresenta a luta do poeta com as palavras e prenuncia a poética que guiará o livro seguinte, A Rosa do Povo.
É no belo poema “O lutador” (J), que Drummond expressa a luta do poeta com as palavras, tentando atraí-las para perto de si. Este poema representa uma certa ruptura com a poética do vivido, que predomina até Sentimento do Mundo (cf. Merquior, 1975:72). O poeta-lutador é vulnerável, mais que isso, impotente ante as palavras: “são muitas, eu pouco” (“O lutador”, J). Mas ele não desiste da luta: tenta apanhar as palavras, delas não apanhar.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
(“O lutador”, J)
Em cada palavra há uma essência, que tem de ser captada pelo poeta. No entanto, elas deslizam e fingem: “as palavras parecem entidades rebeldes e múltiplas, que o poeta procura atrair, mas que fogem sempre, quer ele as acaricie, quer as maltrate” (Candido, 1977:116). Se as palavras o desafiam, ele aceita o combate, pois é dessa luta que nascerá a poesia, luta contínua, que inicia “mal rompe a manhã” e que prossegue “nas ruas do sono” (“O lutador”, J). As palavras são o sustento de vida do poeta-lutador.
Esse lutador pode ser qualquer um, um Jão-Todo-Mundo ou João-Ninguém: qualquer um pode ser um poeta.  O poema “José” configura uma outra condição solitária do indivíduo gauche:
E agora, José ?
A festa acabou,
a luz apagou,
 povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José ?
e agora, você ?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama protesta,
e agora, José ?
(“José”, J)

“Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.”
De poeta-lutador a poeta-viajante, ele terá de adentrar no reino das palavras, numa “viagem mortal”, movendo-se “em meio/ a milhões e milhões de formas raras,/ secretas, duras.” (“Consideração do poema”, RP). O local onde as palavras se encontram em estado de latência, a deduzir de “Poesia” (AP), pode ser o próprio poeta, seja na sua “mente”, no seu “espírito”, ele está “cá dentro/inquieto, vivo”.
Em “Procura da poesia”, poema de seu livro A Rosa do Povo, como em “O lutador”,
a poesia está escondida, agarrada nas palavras; o trabalho poético permitirá arranjá-las de tal maneira que elas a libertem, pois a poesia não é a arte do objeto, como pareceria ao jovem autor de Alguma Poesia, mas do nome do objeto, para constituir uma realidade nova.
(Candido, 1977:117)
Mas já agora não se trata de uma poética de luta com as palavras, mas de relações entre as palavras:
As palavras não são necessariamente hostis; (...) elas não se esquivam sistematicamente ao poeta – aguardam-no, pois a linguagem “em estado de dicionário” encerra os poemas “que esperam ser escritos”.
(Merquior, 1975:77)
Parece nulo o poder do poeta sobre as palavras. Elas existem autônomas em estado latente. Mas não basta apanhá-las e justapô-las. Não se faz poesia assim. No entanto, se as palavras rodopiam na frente do poeta, elas também não podem prescindir dele, pois é a chave do poeta que abrirá as portas para que elas saiam da latência em que se encontram.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(“Procura da poesia”, RP)
Elas “se refugiaram na noite”, “ermas de melodia e conceito” e “ainda úmidas e impregnadas de sono” (“Procura da poesia”, RP). A tarefa do poeta não é senão hercúlea: tirar as palavras do limbo, trazê-las à luz, dar-lhes novos significados, novos sentidos que nos revelarão, no poema, o que o cotidiano opressor nos ofusca.  As palavras estão em estado de dicionário, o poeta tem de ir buscá-las e combiná-las de tal forma que se revelem, adquirindo sentido pelas relações que se estabelecem entre elas, transformando palavras em poemas. O poema é a sedimentação das palavras, e ele sim é do poeta: “estes poemas são meus” (“Consideração do poema”, RP).
Drummond persegue as palavras e aqui parece estar uma chave de interpretação para compreender sua poética: a poesia existe enquanto realização material através das palavras. É a palavra o elemento material que o poeta busca para alcançar seu objetivo artístico, estético e conceitual. São elas que dão vida à poesia. Os fatos passam, os temas esquecem-se, mudam-se. As palavras ficam. São elas que vão significar. “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia” (“Procura da poesia”, RP) – a intenção, poderíamos dizer consciência, do poeta não aparece, e se aparece é através das palavras que estão lá no poema, não as que o poeta talvez gostasse de ter usado. Para o poeta,
a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A idéia só existe como palavras, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavras que a designa e à posição desta na estrutura do poema. O trabalho poético produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre a idéia, que então ganha uma segunda natureza, uma segunda inteligibilidade.
 (Candido, 1977:117-8)
A poesia, de consolo, de cachaça ou do povo, arrebenta o muro opressor da realidade, para respirar, mostrar-se e mostrar ao mundo a melodia que seu canto ecoa e o conceito que carrega, assim como a flor que fura o asfalto:
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(“A flor e a náusea”, RP)
Assim como a flor furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio, o poema, as palavras já sedimentadas pela pena do poeta, faz vibrar seu canto, que
(...) é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
(“Consideração do poema”, RP)
A poesia é um canto pessoal, mas também coletivo. A inquietação de Drummond é a oscilação do poeta entre esses dois lugares. Mas a poesia é sempre um canto. Um canto de amor, de guerra, de lamúria, mas um canto que ecoa e sensibiliza. Seu poder é imenso: ele penetra todas as esferas da vida, cotidiana e espiritual. Poderíamos inverter a ordem das palavras nos últimos versos de “Consideração do poema” (RP): “Tal uma lâmina, o poema, meu povo, te atravessa”. É a crença na redenção do poeta, do homem, do mundo pela palavra.

 


O mundo é grande
O mundo é grande e cabe
Nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
Na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
No breve espaço de beijar
.

Neste poema, o poeta realizou uma opção estilística: a reiteração de determinadas construções e expressões
lingüísticas, como o uso da mesma conjunção para estabelecer a relação entre as frases. Que sentido essa conjunção
estabelece, entre as idéias relacionadas?

R-No poema “O mundo é grande”, Drummond emprega reiteradas vezes a conjunção e para estabelecer
uma relação de oposição entre as frases.
Em três instâncias, o poeta opõe dados objetivos a percepções subjetivas:
Objetividade ------------ Subjetividade
O mundo é grande     -      janela sobre o mar
O mar é grande     -    cama e no colchão de amar
O amor é grande    -     breve espaço de beijar



José

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, Você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
Você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio, - e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse,
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse....
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja do galope,
você marcha, José!
José, para onde?



ANÁLISE

       A leitura do poema que  permite verificar a afirmação explícita de que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação histórico-social.A figura de José vem nesse poema, justamente como representação de um problema coletivo. O poema todo está centrado na reflexão sobre a existência de José que resiste e segue vivendo. Começa e termina de forma interrogativa o que vem enfatizar o problema do direcionamento da existência.
       Nos 5 primeiros versos tem-se a sensação de perda, de esvaziamento, que é transmitida através de uma seqüência de imagens que denotam uma situação sem saída.
      O verso 7 apresenta-se de maneira ambígua. Drummond utiliza-se desse recurso com o intuito de chamar atenção do leitor, pois diante desta estratégia pode-se inferir que José tornou-se o interlocutor, ou então, que o leitor se identifica como José, sendo que tudo que é dito de José pode ser dito do leitor.
       O caráter genérico do nome José, que serviria então para designar o ser humano em geral, transmite uma idéia de indiferença diante daquilo que não tem nome (v.8). Ou seja, José é apenas mais um na multidão.
     Nos versos 13 a 18 o sujeito encontra-se sem condições de expressão. É assinalada a carência e a solidão vivenciadas pelo indivíduo que está impedido de seguir certos impulsos. O uso reiterado das expressões sem e não contribuem para reforçar a noção de carência que define a atmosfera do poema.
    Os versos 19 a 27 trazem novamente a idéia de esvaziamento através do uso da expressão não veio. Esta idéia é enfatizada pela repetição do vocábulo tudo que denota generalização do vazio.
     Na seqüência dos versos registra-se a inutilidade das tentativas de José para resolver seu problema. Nem os versos, nem o delírio, nem as leituras, nem a riqueza, nem a revolta, metaforizadas no texto, se mostraram suficientes para vencer a crise.
         Para expressar a precariedade da existência de José, Drummond utiliza-se de expressões sem continuidade semântica, frases coordenativas, nas quais não há uma ligação das idéias entre si. Os termos não apresentam coerência do ponto de vista lógico. Nestes versos o sujeito remete ao passado e faz referências de forma fragmentária, pois todos os referenciais foram destruídos, o que fez com que se perdesse o sentido da existência.
         Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo compondo orações condicionais, anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte desmente. Isso vem evidenciar que não há resolução para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo morrer vale a pena, pois não resolveria o problema.
       O uso do verbo marcha expressa a única reação de José, que, sem ter nenhuma forma de apoio, nenhuma forma de liberdade, privado de qualquer recurso – parede nua, teologia, cavalo preto – recorre ao seu próprio corpo.
        A riqueza de detalhes, o uso de linguagem subjetiva, a descontinuidade temática, a fragmentação da forma, o uso de figuras de linguagem, são recursos utilizados constantemente nos poemas de Drummond. Isso se deve ao fato dele incorporar em sua produção elementos da sociedade que se encontrava desestruturada e em conflito devido aos mandos e desmandos da elite para atender as exigências do  mercado capitalista.
        Para Drummond ele é composto por um nome próprio comum e popular: “José”. A ausência de um artigo torna-o distante e não familiar: “José” aproxima-se não de um homem específico e individualizado, mais do homem no sentido universal – tornou-se mesmo sinônimo de humanidade; representa o ser humano com suas angústias, incertezas e esperanças: José simboliza todos os homens.

       O poema drummondiano apresenta seis estrofes assimétricas: as duas primeiras são as mais longas (12 e 15 versos), a terceira, a quinta e a última possuem o mesmo número de versos (9) e a quarta estrofe é a mais curta (8 versos). Os versos são pentassílabos com acentuação tônica na segunda e quinta sílabas; a exceção está na segunda estrofe (4º e 5º versos) e no penúltimo verso da última estrofe. Apesar dessas exceções, o ritmo não é quebrado. É mantido, ainda, pela repetição de palavras ou grupos de palavras constantes em todo o texto que é, inclusive, uma característica do fazer poético do poeta, do qual o poema “No meio do caminho” constitui o exemplo por excelência. O ritmo é também concretizado pelas rimas e estas, mais a repetição, desvelam uma dimensão sonora característica dos poemas criados para serem ouvidos. Mas Drummond tem consciência de que seu fazer poético está relacionado à escrita: “é o primeiro poeta no Brasil a ter consciência de fazer poesia escrita. Ele não se vê como um poeta cantor, mas um poeta escritor. Seus versos não são para serem ouvidos (com a rara exceção, talvez, de “José”) mas para serem lidos’’.

         À repetição se juntam a aliteração e a assonância para marcar um ritmo mais acentuado, sobretudo, na quinta estrofe, (aliteração do “e” e assonância do “s”). Nela aparecem duas tríades: os três primeiros versos, isolados por um verso intermediário que se liga ao tema do anterior (a valsa), e os três versos seguintes que também possuem ligação temática com o verso seguinte (a morte): “Se você gritasse,/ se você gemesse,/ se você tocasse/ a valsa vienense,/ se você dormisse,/ se você cansasse,/ se você morresse.../ Mas você não morre”.

         A tríade é, ainda, usada na segunda estrofe, mas com um destaque maior, pois toda a estrofe está construída com tríades, como pode ser observado no poema. Os três primeiros versos apresentam a seguinte estrutura: verbo + preposição + substantivo, sendo estes enumerativos (mulher/ discurso/ carinho); nos dois próximos versos aparece uma ruptura rítmica, pois eles desfazem a sequência de pentassílabos com versos de seis sílabas e verbos no infinito (beber e fumar). Nos dois versos seguintes há um retorno ao pentasssílabo 36 e uma nova tríade, agora formada de artigo + substantivo + verbo e finalizando a estrofe aparece a última tríade composta de conjunção + advérbio + verbo, sendo estes de caráter negativo (acabou/ fugiu e mofou). O que essas tríades demonstram é um destaque em elementos que ressaltam o vazio e a solidão (sem/ não/ acabou). Atitudes e coisas comuns do ser humano estão ausentes, acentuando a angústia existencial.

    Nessa segunda estrofe todos os verbos que marcam a ação não estão relacionados a José; ele não pratica nenhuma ação, José está parado, e o verbo “está” revela uma condição momentânea, pois José está e não é, o que pode sugerir um estado passageiro, um momento de crise e de reflexão, o que leva a pensar na possibilidade de uma mudança e de que há alguma esperança. Os únicos versos que revelam uma condição existencial do ser José estão na quinta estrofe: “você é duro, José” – José é forte, pois não morre e apesar de tudo, da solidão e da impossibilidade momentânea de fuga José resiste; e na estrofe inicial: “você é sem nome”, indicando um José “desindividualizado, homem-síntese-de-mundaneidade. Marcado pela impossibilidade de ação, de conduzir o seu próprio destino, na fatal condição de viver” (PROENÇA FILHO, 2002).

         Todo o poema de Drummond está construído com palavras que remetem ao vazio: “Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou;/ quer ir para Minas,/ Minas não há mais”; não há festa nem povo, não há mulher (símbolo de amor) nem bonde (símbolo de fuga), não há porta nem mar (símbolos de saída), muito menos há um destino ou um caminho a ser seguido. Não existe mais Minas nem cavalo que o leve a outro lugar (“sem cavalo preto/ que fuja a galope”): é um José que marcha sem saber para onde, por isso tantas dúvidas e questionamentos representados pela pontuação interrogativa, bastante intensa em todo o texto (“e agora, você?”), de modo que ao todo são dez interrogações. Esse José que caminha sem objetivo simboliza a humanidade, seu nome não é apenas um nome, mas uma sina.

       A relação do homem José no texto de Drummond é desvelada por meio da 39 falta e do vazio: “A festa acabou”, “o povo sumiu”, “está sem mulher”, “o dia não veio”, “sozinho no escuro” e pela negação, acentuada pelo uso recorrente do advérbio “não”; o poema está construído com base na falta e no vazio sugerindo incertezas e dúvidas que refletem não só o universo individual do homem José, mas toda uma humanidade que busca respostas e soluções, almeja, enfim, um destino.

        É interessante observar que no poema a palavra José está isolada entre vírgulas ou entre vírgula e ponto (final, de interrogação, ou de exclamação). No texto de Drummond isso sugere o próprio isolamento e solidão do homem, representado por José; ele está isolado até mesmo na construção textual e, ainda, o fato de estar entre dois pontos revela a falta de caminhos e horizontes, significando que José não tem saída mesmo, como nos versos: “José, e agora?” (quarta estrofe) e “você é duro, José!” (quinta estrofe).

        Em Drummond, o poema “desenvolve-se em torno de uma indagação dramática de caráter temporal – “e agora?” – e termina com outra pergunta da mesma natureza, mas de caráter espacial: “José, para onde?”. Espaço e tempo: dimensões fundamentais da existência humana” (PROENÇA FILHO, 2002).

       Em Drummond, também, há essa sensação de um futuro, mesmo porque José no final marcha, não fica parado, apesar de toda situação adversa e negativa; embora todo o momento anterior seja de reflexões e angústias e indique um momento estático (não há festa, nem bonde, mar, ou cavalo) José é duro e não desiste: marcha.



    ROSA DO POVO

          Publicado em 1945, Rosa do Povo é aclamado por inúmeros setores da crítica literária como a melhor obra de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta da Literatura Brasileira e um dos três mais importantes de toda a Língua Portuguesa.Antes que se comece a visão sobre esse livro, necessária se faz, no entanto, uma recapitulação das características marcantes do estilo do grande escritor mineiro.
   Desde o seu batismo de fogo em 1928, com a publicação do célebre “No Meio do Caminho”, na Revista de Antropofagia, Drummond ficou conhecido como “o poeta da pedra”. Ao invés de se sentir ofendido com tal apelido, de origem pejorativa, acaba assumindo-o, transformando-o em um dos símbolos de seu fazer literário. De fato, obedecendo a um quê de Mallarmé em sua ascendência (principalmente no que se refere à idéia de poesia como algo ligado à mineral), a dureza e até a frieza da pedra marcam a poesia drummondiana, pois ela é dotada não de uma insensibilidade, mas de uma afetividade contida. Torna-se, portanto, um dos pilares da poesia moderna (junto de Bandeira e João Cabral), afastando do lugar nobre de nossa literatura o melodrama, a emoção desbragada, descontrolada e descabelada que por muito tempo imperaram por aqui.
      Dessa forma, vai sempre se mostrar um eu-lírico discreto ao sentir o seu círculo e o seu mundo até mesmo quando vaza críticas, muitas vezes feitas sob a perspectiva da ironia. Aliás, essa figura de linguagem é muito comum na estética do autor, pois pode ser entendida como uma forma torta de dizer as coisas.   
      Tal caráter está não só na linguagem (que muitas vezes não tem os elementos considerados óbvios para a poesia), mas também pode ser encontrado na maneira deslocada como se relaciona com o seu mundo, o que pode ser justificado pela sua origem, pois é um homem de herança rural, filho de fazendeiros, que acaba se encontrando no ambiente urbano (essa mudança de plano é uma característica encontrada em vários escritores modernistas, o que possibilita afirmar que Drummond, se não é o símbolo de sua geração, é o representante do próprio Brasil, que estava se tornando urbano, mas que carregava ainda uma forte herança rural.).
    No entanto, ao invés de esse seu sem jeito tornar-se elemento pejorativo, acaba por dar-lhe uma potência fenomenal na análise social e existencial.  Posto à margem do sistema, consegue ter uma visão mais clara e menos comprometida pela alienação dos que se preocupam em cumprir seus compromissos rotineiros. Eis o grande feito de Rosa do Povo.
     Para a compreensão dessa obra, bastante útil é lembrar a data de sua publicação: 1945. Trata-se de uma época marcada por crises fenomenais, como a Segunda Guerra Mundial e, mais especificamente ao Brasil, a Ditadura Vargas. Drummond mostra-se uma antena poderosíssima que capta o sentimento, as dores, a agonia de seu tempo. Basta ler o emblemático “A Flor e a Náusea”, uma das jóias mais preciosas da presente obra.

                  A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

        Nota-se no poema um eu-lírico mergulhado num mundo sufocante, em que tudo é igualado a mercadoria, tudo é tratado como matéria de consumo. Em meio a essa angústia, a existência corre o risco de se mostrar inútil, insignificante, o que justificaria a náusea, o mal-estar. Tudo se torna baixo, vil, marcado por “fezes, maus poemas, alucinações”.
No entanto, em meio a essa clausura sócio-existencial (que pode ser representada pela imagem, na terceira estrofe, do muro), o poeta vislumbra uma saída. Não se trata de idealismo ou mesmo de alienação – o poeta já deu sinais claros no texto de que não é capaz disso. Ou seja, não está imaginando, fantasiando uma mudança – ela de fato está para ocorrer, tanto que já é vislumbrada na última estrofe, com o anúncio de nuvens avolumando-se e das galinhas em pânico. É o nascimento da rosa, símbolo do desabrochar de um mundo novo, o que mantém o poeta vivo em meio a tanto desencanto.
Dois pontos ainda merecem ser observados no presente poema. O primeiro é o fato de que ele, além de ser o resumo das grandes temáticas da obra, acaba por explicar o seu título. Basta notar que, conforme dito no parágrafo anterior, a rosa indica o desabrochar de uma nova realidade, tão esperada pelo poeta. E a expressão “do povo” pode estar ligada a uma tendência esquerdista, socialista, muito presente em vários momentos do livro e anunciadas pela crítica ao universo capitalista na primeira (“Melancolias, mercadorias espreitam-me.”) e terceira estrofes (“Sob a pele das palavras há cifras e códigos.”). O novo mundo, portanto, teria características socialistas.
O outro item é visto pelo estreito relacionamento que “A Flor e a Náusea” estabelece com o poema a seguir, “Áporo”, um dos mais estudados, densos,  complexos e enigmáticos da Literatura Brasileira.

ÁPORO

Um inseto cava
 cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

      Note que a narrativa parece ser tirada de “A Flor e a Náusea”: um inseto, o áporo, cava a terra sem achar saída. Assemelha-se ao eu-lírico do outro poema, que se via diante de um muro e da inutilidade do discurso. No entanto, Drummond continua discursando, vivendo, assim como o inseto continua cavando.    Então, do impossível surge a transformação: do asfalto surge a flor, da terra-labirinto-beco surge a orquídea.
       Há algo aqui que faz lembrar o poema “Elefante”, também no mesmo volume. Da mesma forma como Drummond fabrica seu brinquedo, mandando-o para o mundo, de onde retorna destruído (mas no dia seguinte o esforço se repete), o eu-lírico de “A Flor e a Náusea” sobrevive em seu cotidiano nulo e nauseante e o áporo perfura a terra. É a temática do “no entanto, continuamos e devemos continuar vivendo”, tão comum em vários momentos de A Rosa do Povo.
          “Áporo”, portanto, é um poema tão rico que pode ter outras leituras, além dessa de teor existencial. Há também, por exemplo, a interpretação política, que enxerga uma referência a Luís Carlos Prestes (“presto se desata”), que acabara de ser libertado pelo regime ditatorial. A figura histórica pode ser vista, portanto, como um áporo buscando caminho na pátria sem saída que se tornou o Brasil na Era Vargas.
           Ainda assim, existe quem veja no texto um mero – e inigualável – exercício lúdico, em que as palavras são contempladas, manipuladas, transformadas. Basta lembrar, por exemplo, que “áporo”, além de ser a designação do inseto cavador, é também um termo usado em filosofia e matemática para uma situação, um problema sem solução, sem saída. Além disso, a essência etimológica da palavra inseto é justamente as letras “s” e “e”, diluídas no corpo do texto. Observe como tal pode ser esquematizado:

Um inSEto cava
cava SEm alarme
perfurando a terra
SEm achar EScape.

Que faZEr, ExauSto,
Em paíS bloqueado,
enlaCE de noite
raiZ E minério?

EiS que o labirinto
(oh razão, miStÉrio)
prESto SE dESata:

em verdE, Sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-SE.

       Note que a essência do áporo, do inseto, vai se movimentando em todo o poema, transformando-se, até o ápice do último verso da terceira estrofe. É o momento da transformação e da iniciação, já anunciadas na segunda estrofe na aliteração do /s/ e do /t/ e da assonância do /e/ que acabam criando a forma verbal “encete” (ENlaCE de noiTE), que significa principiar, mas que possui também uma forte aproximação sonora com “inseto”. A mutação final virá no último verso: o áporo inseto se transforma em áporo orquídea (“áporo” é também o nome de um determinado tipo de orquídea), a flor que se desabrocha para a libertação. Tanto que a raiz SE está prestes a se libertar, pois virou a forma pronominal “se” (e, portanto, com relativa vida própria) que encerra o poema.
     Tal trabalho com a linguagem é a base de todo texto poético, como é defendido pelo próprio Drummond em “Procura da Poesia”, transcrito abaixo:

PROCURA DA POESIA

            Não faça versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é a música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
Como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

      Esse antológico poema é dividido em duas partes. Na primeira apresentam-se proibições sobre o que não deve ser a preocupação de quem estiver pretendendo fazer poesia. Sua matéria-prima, de acordo com o raciocínio exibido, não são as emoções, a memória, o meio social, o corpo. Na segunda parte explica-se qual é a essência da poesia: o trabalho com a linguagem. O poema pode até apresentar temática social, existencial, laudatória, emotiva, mas tem de, acima de tudo, dar atenção à elaboração do texto, ou seja, saber lidar com a função poética da linguagem.
             A riqueza de A Rosa do Povo não se restringe, porém, às temáticas abordadas. Há uma profusão de outros assuntos, como a abordagem da cidade natal (“Nova Canção do Exílio”, em que há uma reinterpretação do “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias), a observação do problemático cotidiano social (“Morte do Leiteiro”, em que o protagonista, que dá nome ao poema, acaba sendo assassinado em pleno exercício de sua função por ser confundido com um ladrão, o que possibilita uma crítica às relações sociais esgarçadas pelo medo), a rememoração dos parentes (“Retrato de Família”, em que o eu-lírico percebe a viagem através da carne e do tempo de uma constante eterna ligada à idéia de família) e o amor como experiência difícil, o famoso amar amaro (“Caso de Vestido”, em que o eu-lírico, uma mulher, narra o sofrimento por que passou quando da perda do seu marido e quando também da recuperação dele).
            Em suma, Rosa do Povo é obra monumental que merece não apenas ser lida para um vestibular, mas fruída para se tornar uma das grandes experiências de nossa existência.



 A bomba

        (Carlos Drummond de Andrade)




A BOMBA

é uma flor de pânico apavorando os floricultores


A bomba


é o produto quintessente de um laboratório falido


A bomba


é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles


A bomba


é grotesca de tão metuenda e coça a perna


A bomba


dorme no domingo até que os morcegos esvoacem


A bomba


não tem preço não tem lugar não tem domicílio


A bomba


amanhã promete ser melhorzinha mas esquece


A bomba


não está no fundo do cofre, está principalmente onde não está


A bomba


mente e sorri sem dente


A bomba


vai a todas as conferências e senta-se de todos os lados


A bomba


é redonda que nem mesa redonda, e quadrada


A bomba


tem horas que sente falta de outra para cruzar


A bomba


multiplica-se em ações ao portador e portadores sem ação


A bomba


chora nas noites de chuva, enrodilha-se nas chaminés


A bomba


faz week-end na Semana Santa


A bomba


tem 50 megatons de algidez por 85 de ignomínia


A bomba


industrializou as térmites convertendo-as em balísticos


interplanetários


A bomba


sofre de hérnia estranguladora, de amnésia, de mononucleose,


de verborréia


A bomba


não é séria, é conspicuamente tediosa


A bomba


envenena as crianças antes que comecem a nascer


A bomba


continua a envenená-las no curso da vida


A bomba


respeita os poderes espirituais, os temporais e os tais


A bomba


pula de um lado para outro gritando: eu sou a bomba


A bomba


é um cisco no olho da vida, e não sai


A bomba


é uma inflamação no ventre da primavera


A bomba


tem a seu serviço música estereofônica e mil valetes de ouro,


cobalto e ferro além da comparsaria


A bomba


tem supermercado circo biblioteca esquadrilha de mísseis, etc.


A bomba


não admite que ninguém acorde sem motivo grave


A bomba


quer é manter acordados nervosos e sãos, atletas e paralíticos


A bomba


mata só de pensarem que vem aí para matar


A bomba


dobra todas as línguas à sua turva sintaxe


A bomba


saboreia a morte com marshmallow


A bomba


arrota impostura e prosopéia política


A bomba


cria leopardos no quintal, eventualmente no living


A bomba


é podre


A bomba


gostaria de ter remorso para justificar-se mas isso lhe é vedado


A bomba


pediu ao Diabo que a batizasse e a Deus que lhe validasse o batismo


A bomba


declare-se balança de justiça arca de amor arcanjo de fraternidade


A bomba


tem um clube fechadíssimo


A bomba


pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel


A bomba


é russamenricanenglish mas agradam-lhe eflúvios de Paris


A bomba


oferece de bandeja de urânio puro, a título de bonificação, átomos de paz


A bomba


não terá trabalho com as artes visuais, concretas ou tachistas


A bomba


desenha sinais de trânsito ultreletrônicos para proteger


velhos e criancinhas


A bomba


não admite que ninguém se dê ao luxo de morrer de câncer


A bomba


é câncer


A bomba


vai à Lua, assovia e volta


A bomba


reduz neutros e neutrinos, e abana-se com o leque da reação


em cadeia


A bomba


está abusando da glória de ser bomba


A bomba


não sabe quando, onde e porque vai explodir, mas preliba


o instante inefável


A bomba


fede


A bomba


é vigiada por sentinelas pávidas em torreões de cartolina


A bomba


com ser uma besta confusa dá tempo ao homem para que se salve


A bomba


não destruirá a vida


O homem


(tenho esperança) liquidará a bomba.

 Bomba. De acordo com o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda, o verbete tem três significados imediatos. Primeiro, trata-se de um “projétil ou artefato explosivo”; depois, “de um acontecimento inesperado”; para em seguida virar uma “coisa ruim”. Entretanto, no início da segunda metade do século XX, Carlos Drummond de Andrade e Ferreira Gullar expandiram esse significado para o terreno ambíguo da metáfora. O mineiro o fez no reflexivo manifesto-indignação “A bomba” (in: Lição de coisas, 1962).O poema sintetiza a relação que o seu criador
estabelece com a forma de violência inserida na realidade em que vive.
  A bomba drummondiana se assemelha ao que faz o popular José (in: José,
publicado em Poesias, 1942), mostrando o choque do artista com o mundo sem
esperança. O substantivo-título é explorado em sua ambigüidade semântica: é ao mesmo
tempo o instrumento que mata e o inesperado. Drummond insere nessa bomba tudo que
testemunhou de intolerância manifesta. A bomba é o caos propagado numa sinfonia de
sentidos: “A bomba tem a seu serviço música estereofônica”; ela rompe a paz burguesa,deixando a porta aberta aos seus inimigos: “A bomba cria leopardos no quintal,a bomba é a guerra fria e suas guerras todas: “A bomba é  a falta de crença no futuro: “A bomba envenena as crianças antes que comecem a nascer”; destrói a natureza: “A bomba é uma inflamação no ventre da primavera”; é mal que se reproduz: “A bomba é câncer”; é sádica e indiferente: “A bomba saboreia a morte , mascara-se de paz,
patriotismo, solução, vingança e honra: “A bomba brinca bem brincado o carnaval”.
Munido de uma metralhadora verborrágica, Drummond destrói e eleva o potencial da palavra bomba, transformando-a em um troféu beligerante e ao mesmo tempo em uma medalha pacificadora.

de Haroldo de Campos, em seu artigo “Drummond, mestre de coisas”, a respeito do
poema “A bomba”: “A ‘Bomba’ drummondiana consegue afinal impor um contexto coerente e envolvente, de revolta contra a corrida bélica e de fé no humanismo
pacifista”.

No poema“A bomba”:
-  bomba é miséria confederando milhões de misérias”, deixando transparecer um tom de tristeza
absoluta. Porém, este mesmo tom melancólico irá conduzi-lo a um fio de luz ao fim do
poema, já que o poeta oferece, nos últimos versos, uma saída para a espécie humana.
Uma saída manifestada de forma explícita, onde espera acordar os homens e adormecer
as crianças. “A bomba / não destruirá a vida / O homem / (tenho esperança) liquidará a
bomba” (“A bomba”, in: Lição de coisas). Nesta passagem final, Drummond cessa o
repetitivo bombardeio imposto cinqüenta e sete vezes pelo verso introdutório “A
bomba”, gerando, por meio desta mesma repetição, o esvaziamento e anulação da
palavra já desgastada e a eventual transferência de sua força semântica para o verso “o
homem”, proporcionando um impacto profundo preenchido de surpreendentes sentidos
às nossas retinas então fatigadas.
 podemos imaginar que Drummond se revolta contra as leis estabelecidas, e como confessou no poema “Nosso tempo” (in: A rosa do povo):
“Tenho palavras em mim buscando canal, / são roucas e duras, / irritadas, enérgicas, /comprimidas há tanto tempo, / perderam o sentido, apenas querem explodir”. São os estilhaços dessa explosão que chegam a nós, por meio do poema “A bomba”, através de um turbilhão de imagens sugestivas e plurissignificativas, que mais nos faz em lembrar
uma re-visão do quadro de Guernica, repletas de cifras e códigos sob a pele das
palavras, sem contar a anteriormente comentada exaustiva repetição da palavra bomba,capaz de criar um efeito de aliteração com um valor estético que nos sugere um novo bombardeio, desta vez, sinestésico. “A bomba / é uma flor de pânico apavorando os
floricultores”; “A bomba / é estúpida é ferotriste é cheia de rocamboles”; “A bomba / é grotesca de tão metuenda e coça a perna”. Ao passo que, em nós leitores, acaba por implodir uma construtiva reflexão, instigando a uma análise do problema, como já



A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade



        E como eu palmilhasse vagamente
        uma estrada de Minas, pedregosa,
        e no fecho da tarde um sino rouco

        se misturasse ao som de meus sapatos
        que era pausado e seco; e aves pairassem
        no céu de chumbo, e suas formas pretas

        lentamente se fossem diluindo
        na escuridão maior, vinda dos montes
        e de meu próprio ser desenganado,

        a máquina do mundo se entreabriu
        para quem de a romper já se esquivava
        e só de o ter pensado se carpia.

        Abriu-se majestosa e circunspecta,
        sem emitir um som que fosse impuro
        nem um clarão maior que o tolerável

        pelas pupilas gastas na inspeção
        contínua e dolorosa do deserto,
        e pela mente exausta de mentar

        toda uma realidade que transcende
        a própria imagem sua debuxada
        no rosto do mistério, nos abismos.

        Abriu-se em calma pura, e convidando
        quantos sentidos e intuições restavam
        a quem de os ter usado os já perdera

        e nem desejaria recobrá-los,
        se em vão e para sempre repetimos
        os mesmos sem roteiro tristes périplos,

        convidando-os a todos, em coorte,
        a se aplicarem sobre o pasto inédito
        da natureza mítica das coisas,

        assim me disse, embora voz alguma
        ou sopro ou eco ou simples percussão
        atestasse que alguém, sobre a montanha,

        a outro alguém, noturno e miserável,
        em colóquio se estava dirigindo:
        "O que procuraste em ti ou fora de

        teu ser restrito e nunca se mostrou,
        mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
        e a cada instante mais se retraindo,

        olha, repara, ausculta: essa riqueza
        sobrante a toda pérola, essa ciência
        sublime e formidável, mas hermética,

        essa total explicação da vida,
        esse nexo primeiro e singular,
        que nem concebes mais, pois tão esquivo

        se revelou ante a pesquisa ardente
        em que te consumiste... vê, contempla,
        abre teu peito para agasalhá-lo.”

        As mais soberbas pontes e edifícios,
        o que nas oficinas se elabora,
        o que pensado foi e logo atinge

        distância superior ao pensamento,
        os recursos da terra dominados,
        e as paixões e os impulsos e os tormentos

        e tudo que define o ser terrestre
        ou se prolonga até nos animais
        e chega às plantas para se embeber

        no sono rancoroso dos minérios,
        dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
        na estranha ordem geométrica de tudo,

        e o absurdo original e seus enigmas,
        suas verdades altas mais que todos
        monumentos erguidos à verdade:

        e a memória dos deuses, e o solene
        sentimento de morte, que floresce
        no caule da existência mais gloriosa,

        tudo se apresentou nesse relance
        e me chamou para seu reino augusto,
        afinal submetido à vista humana.

        Mas, como eu relutasse em responder
        a tal apelo assim maravilhoso,
        pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

        a esperança mais mínima — esse anelo
        de ver desvanecida a treva espessa
        que entre os raios do sol inda se filtra;

        como defuntas crenças convocadas
        presto e fremente não se produzissem
        a de novo tingir a neutra face

        que vou pelos caminhos demonstrando,
        e como se outro ser, não mais aquele
        habitante de mim há tantos anos,

        passasse a comandar minha vontade
        que, já de si volúvel, se cerrava
        semelhante a essas flores reticentes

        em si mesmas abertas e fechadas;
        como se um dom tardio já não fora
        apetecível, antes despiciendo,

        baixei os olhos, incurioso, lasso,
        desdenhando colher a coisa oferta
        que se abria gratuita a meu engenho.

        A treva mais estrita já pousara
        sobre a estrada de Minas, pedregosa,
        e a máquina do mundo, repelida,

        se foi miudamente recompondo,
        enquanto eu, avaliando o que perdera,
        seguia vagaroso, de mãos pensas.



      Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

      Em “A máquina do mundo”, publicado no livro Claro enigma (Andrade, 1973: 197-200), encontramos um arcabouço narrativo em primeira pessoa. Apesar de longo (com 96 versos), o poema apresenta apenas seis períodos, que estruturam três seqüências narrativas básicas. A primeira está representada nos nove primeiros versos, que delineiam a moldura espácio-temporal - “fecho da tarde” (v. 3) e “estrada de Minas, pedregosa” (v. 2) - do acontecimento que será narrado. Na segunda seqüência, ocupando a maior parte do poema, a aparição da máquina e seu discurso de início se apresentam discretamente, mantendo o clima de introspecção do solitário caminhante revelado na primeira seqüência: “Abriu-se majestosa e circunspecta,/ Sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável” (vv. 13-15). A máquina o convida a se aplicar “sobre o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas” (vv. 29-30); entretanto, por não obter resposta, muda de tom, tornando-se mais categórica:

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

[...]

vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo. (vv. 40-48)


Nesse fragmento do discurso da máquina, podemos observar os recursos utilizados para seduzir o viajante. Em primeiro lugar, a reiteração de verbos no imperativo dentro do mesmo campo semântico - “olha”, “repara”, “vê”, “contempla” - serve de reforço ao convite inicial. Também a enumeração dos elementos a serem revelados assim como o número de adjetivos usados para descrevê-los - “sublime”, “formidável”, “total”, “primeiro”, “singular” - reforçam o pedido. Finalmente, um apelo emotivo, ao ordenar que o coração do poeta acolha o que sua mente não se dispõe a aceitar. No entanto, todos esses recursos revelam-se inúteis. Para um apelo visual, a recusa se dá no mesmo nível: por não querer ver os conhecimentos oferecidos pela máquina, o viajante drummondiano baixa “os olhos incurioso, lasso” (v. 88). Desdenhada a visão da grande máquina, instaura-se uma nova seqüência, que retoma a situação inicial: o viajante continua a sua jornada, agora totalmente imerso nas trevas, as quais indiciam o tempo decorrido entre o surgimento da máquina no fecho da tarde e o seu desaparecimento já na noite, e também simbolizam o isolamento total do eu, a sua recusa do conhecimento e da comunicação com o engenho sobrenatural.

Destaque-se ainda que a narração começa  no meio de uma caminhada numa estrada de Minas, em que o viajante encontra-se envolto por sentimentos de introspecção e renúncia, atribuídos posteriormente ao cansaço de uma busca não concluída, à procura de um conhecimento jamais encontrado. Esses sentimentos determinarão sua atitude posterior face à máquina bem como a retomada de sua solitária caminhada na seqüência final. Tal retorno ao ponto de partida denota a impossibilidade de superação de sua condição primeira e ressalta também o continuum da caminhada, não interrompida nem após revelações tão surpreendentes. Concretizando, portanto, a volta circular ao início, há a repetição quase total do segundo verso no penúltimo terceto: “sobre a estrada de Minas, pedregosa”.

Observemos mais de perto o viajante desse poema. Ele é o ser que caminha sozinho, identificando-se com a paisagem árdua através da escuridão maior, vinda dos montes e de seu próprio ser desenganado (vv. 8-9). Em seu isolamento, nega a busca existencial, a tentativa de compreensão do enigma do mundo, que antes o caracterizara. E, recusando a revelação suprema oferecida pela máquina, abdica, portanto, de um conhecimento metafísico, como podemos observar nos seguintes versos: “pela mente exausta de mentar/ toda uma realidade que a transcende” (vv. 18-19) e “quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria recobrá-los” (v. 23-25). Desse modo, a aparição do impedimento momentâneo de sua caminhada sobrevém quando já estava definida a sua nova postura face aos obstáculos cotidianos com que já se acostumara e que ocasionaram o seu estado de desistência.

É importante enfatizar a correlação entre a postura de isolamento do viajante e o ambiente físico descrito no poema, entre seu “passo seco” e a “estrada pedregosa”. O caminho deserto e árido constitui o elemento topológico a partir do qual ele se define como ser solitário, índice do seu conflito não só existencial, como também epistemológico. Afastado de seus semelhantes, o homem se reflete na paisagem através de signos de isolamento e dificuldade, e tal jogo de espelhos é reiterado no plano acústico, em que o sino rouco se mistura ao som seco de seus sapatos (v. 4). Lentos são seus passos e também os movimentos das aves (v. 5-7), e a escuridão final apresenta-se, simultaneamente, segundo José Guilherme Merquior, “como sombra do céu e do homem” (1975: 83). Sendo pedregosa, a estrada retoma o tema da dificuldade, do obstáculo no caminho, tão caro à obra de Drummond, e exemplificado no conhecido poema “no meio do caminho” (1973: 12), que aliás apresenta a mesma descrição metonímica de cansaço visual-epistemológico - “na vida de minhas retinas tão fatigadas” (idem, ibid.) - presente no viajante de “pupilas gastas na inspeção...” (v. 16).

YYYYYYY

As verdades que os  homens contam
Há mais “verdades” entre o céu e a terra
do que supõe a nossa vã filosofia

Verdade
A porta da verdade estava aberta,
Mas só deixava passar
Meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
Porque a meia pessoa que entrava
Só trazia o perfil de meia verdade,
E a sua segunda metade
Voltava igualmente com meios perfis
E os meios perfis não coincidiam verdade...
Arrebentaram a porta.
Derrubaram a porta,
Chegaram ao lugar luminoso
Onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
Diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais
bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela
E carecia optar.
Cada um optou conforme
Seu capricho,
sua ilusão,
sua miopia.

Carlos Drummond de Andrade.



ANÁLISE


   VErdade. Será que ela existe? Até que ponto
pode-se falar da existência de uma única
v e rdade inquestionável? Dru m m o n d desafia
o conceito cristalizado sobre o
tema. Não há para o poeta indubitável verdade,
nem mesmo consegue-se chegar a qualquer concepção.
     A compreensão da verdade desafia a humanidade
há milhares de anos. Filósofos da antiga
Grécia debatiam sua natureza. Discutiam se era
real e absoluta, ou relativa e ilusória.

   Mas o que é verdadeiro? Posso conhecer a verdade?

     A própria pergunta sobre a verdade passa a
ser reavaliada e reformulada diante das múltiplas
possibilidades de respostas que surgem à medida
que o conhecimento é relativizado e as explicações
antes intocáveis vão com o passar da história
mudando as feições.
     Como poeta moderno, Drummond busca através
da poesia as suas respostas que são os sentimentos
pessoais, impressões e pensamentos. Ele aponta
para a desconstrução de todas as crenças arbitrárias,
indicando a multiplicidade presente nos
diferentes objetos que estão no mundo. Volta-se
para o seu universo particular, já dissolvido em
uma visão parcial e pessoal sobre a realidade, à sua
verdade que não necessariamente é a mesma da de
todos que estão lendo , muito menos dos
que habitam este planeta.
Muitos filósofos e amantes do saber chegaram à conclusão que
mais vale a busca da verdade do que propriamente o seu conhecimento.
Vivemos em um eterno fluir e destruir de pensamentos
que no decorrer da história se autocorrompem, sem
sabermos com que certeza seguimos adiante.
Este é um dos impasses não só das engenhosas teorias.
         Embora descrever o objeto em si, sem
que o sujeito interrompa a veracidade da ação seja
uma das premissas da  credibilidade.
         Não existem meios de transmissão de uma
informação que não passem pela mente de um ser
humano que carrega em si uma história de vida, e
mesmo sobre muitas tentativas de ser uma tábula
rasa, não se estaria imune a ela. No fim, somos
todos reféns de nós mesmos. Cada um com seus
particulares caprichos, miopias e ilusões.

“Aquele que duvida e não investiga torna-se
não só infeliz, mas também injusto”

A VERDADE GREGA

Em grego a palavra para verdade é aletheia e significa o não oculto, não escondido, não dissimulado. O verda d e i ro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito, a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro, neste sentido, se opõe ao falso, pseudos,
que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não é como parece. Verdadeiro é o evidente, numa acepção quase ‘visual’ da palavra, o ‘verdadeiro’ é claro, delineado, estruturado, visível.


A VERDADE LATINA

Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu.Verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos,
se refere a enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foram ou aconteceram. Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem
enuncia os fatos reais.

A VERDADE HEBRAICA

Em hebraico verdade se diz emunah e significa
confiança. Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus verda d e i ro ou um amigo verd a d e i ro são aqueles que cumprem o que prometem, são fieis à palavra dada ou a um pacto feito; enfim, não traem a confiança.
A verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que foi prometido ou pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavra de mesma origem que amém, que significa que assim seja. A verdade é uma
crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será
ou virá. Sua forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais
perfeita é a profecia.

VERDADES
ALETHEIA
VE R I TA S
EMUNAH




A VERDADE NO TEMPO

Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas aos fatos que foram; emunah se refere às ações e coisas que serão. A nossa concepção de verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes, como na aletheia, aos fatos passados e à linguagem, como na veritas, e às coisas futuras, como na e m u n a h. Também se refere à própria realidade, como aletheia, à linguagem,como veritas, e à confiança-esperança, como na  e m u n a h.

FONTE: http://www.consciencia.net – Texto: Renato Kress.


“Deve-se exigir de mim que procure a verdade,
mas não que a encontre”
Diderot

“A única verdade é arealidade” Aristóteles

“Aquele que duvida e não investiga torna-se
não só infeliz, mas também injusto”
Pascal










Análise do poema :Amar-amaro

Por que amou por que a!mou
se sabia
proibido passear sentimentos
ternos ou
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula ev
idente?”
ah PORQUEAMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesmo (o,a)
irm(ã, o)retrato espéculo por que amou?
se era para
ou se era por
como se entretanto todavia
toda vida mas toda vida
é indagação do achado e aguda espostejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de
núncaras.


ANÁLISE
 
O sofrimento amoroso é descrito nesse poema, cujo título é Amar-amaro. É a
decepção amorosa e o amargor que ela traz que predominam em todo o texto. Para o poeta,
o amor não consola “nunca de núncaras”; assim, o ato de amar só pode ser realmente
amaro. Percebe-se com a
justaposição amar-amaro que, mais do que caracterizar o
substantivo amar, o adjetivo amaro o contém, ou seja, não existe amar que não seja amaro.
No pessimista poema, Drummond pergunta a si mesmo no verso inicial: “Por que
amou por que a!mou”, mostrando toda sua originalidade, ao intercalar na forma verbal
amou o ponto de exclamação (a!mou).O ponto de exclamação mostra que, mesmo sendo
amaro, o amor é lembrado com certa nostalgia. Parece que a lembrança de um amor vem
acompanhada de um suspiro.
A seguir, chama-se atenção para o adjetivo desesperados, grafado de ponta-cabeça,
acentuando o desespero daqueles que amam.
A idéia de desespero se reforça com a quebra do vocábulo evidente – nada mais é
evidente. A sonoridade obtida com a aliteração do /v/, na seqüência “varíola voluntária
vágula ev”, pode ser associada ao sopro, ao expirar.
 


Além disso, ev é forma equivalente de
eu e a parte idente pode ser relacionada à identidade. Embora distante da origem, pode-se
entender que a desagregação ev/idente poderia estar associada à identidade do eu. O eu que
ama e sofre como se morresse de varíola, parece estar aos pedaços.
O jogo lúdico continua quando, com letras maiúsculas, ele grita:
“PORQUEAMOU”.
O inconformismo pelo fato de o amor ser amaro e não consolar “nunca de núncaras”
é percebido com a criação do verbo porqueamar. Trata-se de um verbo que soa como um
castigo para os que amam e não são amados:
quem ama sofre e se queima.
Para Drummond, o ato de amar é comprado a uma “aguda espostejação da carne do
conhecimento”. O sufixo -ção é extremamente produtivo na formação de substantivos
deverbais, ao lado de –mento. Por serem concorrentes, é comum um bloquear o outro. No
poema, Drummond prefere espostejação, embora a forma dicionarizada seja
espostejamento. Pode-se dizer que por causar estranhamento, a forma escolhida consegue
transmitir uma idéia de intensificação.
Para reforçar a idéia de que o amor produz muitos males, e, principalmente um malestar
muito grande, para o poeta, um “malestar escarninho cantarino piedoso”. Como
malestar, na verdade, há uma nova apresentação para a forma dicionarizada mal-estar. O
significado mantém-se o mesmo: 1. indisposição ou perturbação orgânica; doença de pouca
gravidade; incômodo. 2. ansiedade mal definida; inquietação. 3. situação incômoda;
constrangimento, embaraço. Mas a união dos dois elementos sem hífen agrega
graficamente e sonoramente os dois elementos, reforçando a idéia negativa.
Recorrendo à ironia, o poeta diz que se trata de um malestar cantarino. O adjetivo
tem uma carga positiva e qualifica o substantivo malestar (negativo), que só é cantarino
por ser escarninho, sarcástico.
Toda essa situação é “inconsolável de ofício”, diz o poeta. Nada se pode, portanto,
fazer. Até a morte é esconsolável, mas o amor não.
O prefixo es-, de origem latina, indica, segundo Houaiss, “movimento para fora,
separação, transformação, intensidade, ausência, negação”. Na formação esconsolável, ele
indica mudança de estado. Ao criar o vocábulo esconsolável, CDA, na verdade, faz um
jogo com o radical consol-, encontrado em consolar, inconsolável e consolatrix e,
sobretudo, com o vocábulo inconsolável. Há coisas que são inconsoláveis, ou seja,
impossíveis de serem consoladas. Já a morte é esconsolável, ou seja, é possível uma
mudança de estado; logo, ela pode ser consolada, por mais difícil que seja e exija um certo
esforço.
O poeta utiliza uma série de adjetivos para caracterizar a morte, dentre eles
consolatrix. (a que consola) O amor não consola “nunca de núncaras”, mas a morte é
consolatrix assim como Nossa Senhora, que mesmo tendo o filho morto consola os aflitos
(consolatrix aflictorum), como diz um dos versos da ladainha.
Em Amar-amaro, Drummond utiliza a forma consoadíssima para referir-se à morte;
“a morte é esconsolável, consolatrix, consoadíssima”. No Houaiss, consoada é um
substantivo e significa: pequena refeição noturna, em dia de jejum ou ceia da noite de
Natal. Não é, portanto, esse o significado proposto por CDA. Para o poeta, a morte e a vida
têm consolo, mas o amor não. Dizer que a morte é consoadíssima, é dizer que ela pode ser
aceita, está em total consonância, em total conformidade com a vida. Drummond, com a
escolha de consoadíssima, pode estar referindo-se também ao poema Consoada (Opus 10),
de Manuel Bandeira, em que o poeta pernambucano fala da chegada da morte: “Quando a
indesejada das gentes chegar/ (Não sei se dura ou caroável),/ Talvez eu tenha medo./ Talvez
sorria, ou diga:/ - Alô, iniludível!”.
Como o amor pode atingir qualquer pessoa, independentemente do sexo,
Drummond cria um feminino para cavalheiro (cavalheira), ao utilizar a desinência de
gênero entre parênteses: cavalheiro (a). Com esse recurso, o poeta, que se dirige ao leitor,
faz questão de mostrar que os males do amor ocorrem não só com homens, mas também
com mulheres.

Já em relação à flexão de número, percebe-se, na pluralização do advérbio nunca a
busca da expressividade. Além da criação do plural para o advérbio (nuncas), Drummond o
estica, formando a proparoxítona núncaras que, por ser a última palavra do poema, parece
que o leva realmente ao infinito.



Análise

Em Quero, o poeta está condenado ao caos e ao não-amor se não ouvir a repetição
da frase “Eu te amo”. O amor realiza-se somente pela palavra, a palavra pronunciada como
som, emissão vocal, vibração. A palavra que o próprio poeta usa para sua expressão é agora
responsável pela presentificação do amor. Caso não ouça a palavra, o amor deixa de existir.
A escolha dos verbos evaporar, desmentir, apagar, deixar relaciona-se ao campo semântico
dos substantivos não-amor e caos, onde o poeta se precipitará no momento em que não for
amado por e na palavra.


















Poema:QUERO



Quero que todos os dias do ano


todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.


Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?


Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.


Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.


Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,


a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.


No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.


Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.



ANÁLISE



Um poeta desesperado não propriamente pela falta de amor, mas pela falta de ouvir
a pessoa amada dizer a todo momento “eu te amo” é o que se encontra no poema Quero.
Como o próprio título do texto avisa, o verbo na primeira pessoa do singular já
deixa claro qual o desejo desse eu: ele primeiramente quer, ao longo do poema ele passa a
exigir (exijo) a repetição exagerada da frase “Eu te amo”.


Para mostrar seu desejo e reforçar a idéia de que o que importa é a raiz da palavra, o
poeta utiliza no texto não só o verbo amar (amo, amas, sou amado, ser amado, amar,
amaste), mas também o substantivo amor, o adjetivo amoroso, formando ainda amação e
não-amor, além do composto amoamoamoamoamo.
Percebe-se que Drummond utiliza a repetição, indicando não só a continuidade da
ação como também a intensificação do movimento. Com a pluri-repetição de amo (cinco
vezes) para a formação do composto amoamoamoamoamo, Drummond faz realmente uma
súplica à amada, mostrando a necessidade que tem de ouvir “todos os dias do ano/ todos os
dias da vida/ de meia em meia hora/ de 5 em 5 minutos” a frase “Eu te amo”. Ele se
precipitará no caos se não ouvir repetidamente “Eu te amoamoamoamoamo”. O objetivo
claro do texto é mostrar que mais do que se sentir amado, o poeta precisa - e quer - que a
mulher repita exageradamente e à exaustão a frase fabricada.
Não é propriamente o amor que vai evaporar-se se ele não ouvir a frase, mas a
amação, derivação sufixal formada por amar +-ção. A criação lexical reforça a idéia de que
o que o poeta deseja, ou melhor, o que quer que permaneça não é o amor em si (talvez esse
sequer exista), mas a amação, ou seja, o ato de vivenciar essa situação amorosa em que a
única preocupação é com o som (amor/feito som), com a palavra (amor/saltando em língua
nacional) e não propriamente com o sentimento. No momento em que ele não ouve a frase
que quer ouvir, tem a sensação de que o amor nunca existiu (deixaste de amar-me /nunca
me amaste antes). Essa é a amação a que ele se refere, um sentimento exagerado que não
tem simplesmente o significado de ato ou efeito de amar, um sentimento que só se realiza
pela palavra.
Já ao anexar o prefixo não- ao substantivo amor, formando não-amor, o poeta
reforça a idéia de negação e dúvida que o atormenta e que o levará a precipitar-se no caos.
Terminando o texto com essa palavra negativa, o autor recupera o significado já anunciado
com as escolhas do advérbio nunca (nunca me amaste antes) e dos verbos deixar, evaporar,
desmentir e apagar.


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Análise  do poema Cidadezinda Qualquer, de Carlos Drummond de Andrade.

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Êta vida besta, meu Deus.

(Alguma poesia in Reunião, 1982)





Nos três primeiros versos, temos construções sem verbos, o que demonstra, de forma clara, a falta de ação objetiva inerente à cidade de interior retratada. O primeiro verso nos dá a idéia de distanciamento entre as casas ao colocar “casas entre bananeiras” e não “bananeiras entre casas”; o segundo substantivo (bananeiras) parece sobrepor-se ao primeiro (casas), como se fosse predominante, o que leva o leitor a concluir que o número de bananeiras é bem maior que o de casas. Esse distanciamento físico é bastante condizente com a condição de cidade pequena e com a solidão que ela inspira.

No verso “Mulheres entre laranjeiras”, transparece a domesticidade da vida feminina, indicada apenas para o casamento – sugestão entrevista na simbologia do temo “laranjeiras”, já que a flor dessa árvore compõe o buquê das noivas.

Concluindo o primeiro terceto, temos um verso com substantivos soltos “pomar amor cantar”, sem pontuação, como se fosse dito ininterruptamente. Os elementos semânticos das palavras denotam a simplicidade peculiar à vida interiorana isenta de qualquer atividade inédita. Além disso, os três substantivos remetem a atividades ligadas à mulher do interior, cuja vida centra-se no amor à família e cujo trabalho limita-se à esfera doméstica, estendendo-se, por vezes ao pomar, onde permanece durante horas, entoando em alto e bom som as canções de sua preferência.

Investindo no paralelismo sintático, o poeta usa o mesmo artigo, o mesmo verbo e o mesmo advérbio nos três versos da segunda estrofe, alterando apenas o substantivo. Compõe uma estrutura sintática simétrica, induzindo o leitor a colocar o homem na mesma condição do cachorro e do burro, numa forma de animalizá-lo por ter um cotidiano igual ao dos animais que o cercam. Assim, integra-os na simetria da construção sintática, inserindo-os no mesmo plano existencial.

Já a repetição do advérbio “devagar”, ora no final do verso, ora dando início a outro, pela própria força semântica da palavra, reforça a idéia de rotina elucidada em todo o poema.

No verso seguinte, nos deparamos com um momento de reflexão, afirmado pelo uso de reticências após a palavra “devagar”. O eu-poético suspende o pensamento e deixa o leitor na espectativa de uma ação que negue o sentido de mesmice da palavra pronunciada: “devagar...”; e, como a concluir que a espera é inútil, continua: “as janelas olham”. Ou seja, pessoas ociosas se colocam à janela na ânsia de que os olhos alcancem algo de novo ou com a finalidade de tomar conhecimento da vida dos outros – hábito comum nas pequenas cidades, onde a novidade restringe-se à curiosidade de saber da vida alheia. A animação do objeto “janela”, imposta pela ação do verbo “olhar”, normalmente usado para seres humanos, dá a impressão de vida igualmente imóvel. As pessoas olham e vêem o mesmo que as janelas: nada.

E, como em um desabafo, o eu-poético, cansado da rotina, assume a posição de espectador e compõe o último verso. Pensa alto sobre o que vê e diz : “Êta vida besta, meu Deus”. Atentemos para o sentido da palavra “besta” e a sua carga afetiva no verso. “Tola”, palavra sinônima, seria muito leve para expressar o descontentamento do falante. A palavra “besta”, tomada em seu sentido denotativo, nos leva a resgatar a idéia de animalização do homem, anteriormente citada, já que, literalmente, significa “asno” – animal da espécie do burro. Ou pode nos remeter à alusão de vida imbecil, ignorante. “Êta”, palavra sincopada, nos mostra a espontaneidade com que o eu-poético expôs o seu pensamento, formando com “vida besta, meu Deus” uma frase peculiar aos hábitos lingüísticos dos habitantes de pequenas cidades.

Antes de finalizar, concentremo-nos no título do poema. “Cidadezinha qualquer” não é um título aleatório, atribuído por acaso. É a síntese do poema. O diminutivo impõe afetividade à palavra, dando, de imediato, o sentido de pequenez. Mas o sufixo INH(A) transpõe a pura denotação. Deixa de indicar o meramente dimensional para sugerir o afetivo, enfatizando o valor pejorativo que leva o leitor a pensar que a cidade retratada é uma cidadezinha sem importância, da qual se faz pouco caso. O pronome “qualquer”, aí adjetivado, colocado após o substantivo, dá a idéia de vulgaridade, reforçando, assim, o sentido pejorativo com que o título pode ter sido composto.

Essa possível intenção pejorativa, entretanto, ultrapassa o sentido de depreciação. Se a cidadezinha fez-se a alma do poema, é porque exatamente a sua mesmice e a sua simplicidade cativaram o poeta, quem sabe em um processo de identificação. Seja como for, a exploração de suas características banais, tão bem sugeridas no texto, permite ao leitor intuir o dia-a-dia de uma cidade de interior, onde a vida tem a dimensão de sua extensão geográfica.







O poema de Drummond Amar 

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão vazio,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este é o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
(Amar, de Carlos Drummond de Andrade, 1966, p. 146-7)



ANÁLISE DO POEMA


Uma primeira leitura do poema nos faz ver de pronto que ele não se alinha a uma tradição literária
romântica, não há aqui invocação ao ser amado, revelação do desassossego do eu-lírico, representação
de um personagem singularizado ou o consolo de um final feliz.

 A pergunta retórica que abre o poema

– “Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?” –, e que ecoa com variantes
até a segunda estrofe, tem como sujeito gramatical um agente vago e indeterminado: “uma
criatura”/ “o ser amoroso”. Despersonalizado, este agente não é um, mas abrange muitos: a
coletividade das criaturas, os seres amorosos/viventes da família humana. A reforçar esse
receptor ampliado, o uso do possessivo “nosso/nossa” em três recorrências.

E quem é essa criatura (ou quem somos nós)?

 Fundamentalmente um ser “sozinho em rotação
universal”, perdido na imensidão do cosmos, indiferenciado de outros seres ou coisas,
impelido a repetir incessantemente o movimento de “rodar”, ir e vir como as marés, fazendo
e refazendo os ciclos da natureza: amando, malamando, desamando, amando.
Esse amor obrigatório e compulsivo, este “destino” que nos cabe a todos, tem como objeto
de desejo “o inóspito” (cuja etimologia é não hospitaleiro), “o cru” (não cultural, em estado de
natureza), “as coisas pérfidas ou nulas”. E na explicitação do que seriam essas coisas amoráveis,
Drummond retoma imagens literárias tradicionalmente associadas ao campo semântico
do amor, invertendo-lhes os sinais. Assim, o frescor das flores é substituído pelo “vaso sem
flor”; o coração palpitante se torna “um peito inerte”; a belicosidade de “uma ave de rapina”
está no lugar de um símbolo da paz como a pomba.
Contudo, o exercício de amar a que nos aplicamos com empenho, “paciência” e “medo” – “simples
ânsia”, “entrega” ou “doação ilimitada a uma completa ingratidão” – resulta numa procura
vã: a “concha” do amor está “vazia”. Jamais preenchemos essa “falta”. E de algum modo sabemos
que não há no mundo água capaz de curar nossa “secura” ou aplacar nossa “sede infinita”.

No âmbito semântico, o poema se constrói em dois eixos imagísticos antagônicos, tendo a
natureza como solo comum: as figurações do movimento/fertilidade/vida – “amar”, “rodar”,
“mar”, “praia”, “brisa marinha”, “água” – e as figurações da imobilidade/esterilidade/morte –
“esquecer”, “malamar“, “desamar”, “sepulta”, “deserto”, “inóspito”, “cru”, “chão vazio”, “ave de
rapina”, “concha vazia”, “falta”, ”secura”, “sede infinita”.

 Ao que parece, Tanatus suplanta amplamente
Eros. Será um pesadelo?
O questionamento que Drummond verbaliza com o engenho e a arte da poesia diz respeito à
nossa irredutível incompletude, à nossa infinita carência. Não sofremos por um ou outro amor
eventualmente mal resolvido: estamos fadados à solidão, que é constitutiva da condição humana Mapeando sentidos



O poema de Drummond nos faz lembrar a angústia da
existência, nossa inadequação e insegurança neste planeta sem água.
Nesse mundo desencantado que é o nosso, perderam validade as promessas de transcendência
em uma outra dimensão e as juras do amor romântico que se diz eterno. E porque
estamos apartados da crença no sagrado e da ilusão amorosa, temos que nos haver cotidianamente
com a nostalgia do paraíso perdido em brumas intrauterinas; temos que empreender a
tentativa, que sabemos de antemão inútil, de sempre e sempre buscá-lo.





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Castro Alves
Castro Alves
    Castro Alves

   A década de 1870 a 1880 é de transição entre o Romantismo e as novas tendências estéticas marcadas pelo Realismo. É exatamente nesse período que nasce o  romantismo liberal de Castro Alves, eco brasileiro da poesia de Victor Hugo, que conciliava a estética romântica e os ideais filosóficos e sociais em prol da humanidade.

    Sob a influência de Hugo, Castro Alves criou uma poesia grandiloquente, de metáforas ousadas, de gosto épico, à qual foi dado o nome de poesia condoreira, como se imitasse o condor, pássaro que alcança em seus voos grandes altitudes.
 Poesia impregnada de evangelização social, a obra de Castro Alves não é adocicada como a de Casimiro de Abreu, nem tão piegas quanto a de Álvares de Azevedo: o poeta baiano escreve versos altissonantes, pois quer que sua poesia seja declamada,gritada em praça pública. É a poesia da hipérbole, do exagero das imagens, que são intensificadas de maneira intencional, a fim de reforçar as ideias revolucionárias presentes nos versos.
   Como afirma Augusto Meyer, na poesia de Castro Alves “o orador popular, o agitador de praça pública estão sempre em evidência, e [...] pressentimos o seu gesto arrebatado, a sua voz de comício”. 
 Resumo do enredo


  Os Escravos reúne os poemas antiescravagistas de Castro Alves. Publicado em 1883,doze anos após a morte do poeta, o livro apresenta, dentre outros, os poemas abolicionistas “Vozes d’África” e “O Navio Negreiro”.Reticências, travessões e pontos de exclamação aparecem com frequência nos
poemas, configurando o tom declamatório, cujo objetivo era convencer a sociedade da injustiça da escravidão. Abusando dos vocativos, das interpelações e das evocações, cria-se o estilo condoreiro, de que falamos acima, como neste trecho do início de“Vozes d’África”, no qual a voz que clama a Deus é a do próprio escravo:
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
– Infinito: galé!...
Por abutre – me deste o sol candente,
E a terra de Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

     Nas poesias presentes em Os Escravos o que predomina é o discurso político – e não o lirismo. Por esse motivo, o poeta abusa das antíteses e das hipérboles, de maneira que, ao ser declamado em praça pública, o poema, acompanhado da interpretação do declamador, atinja alto grau de emoção. Vejamos, por exemplo, a sucessão de figuras
no início do poema

 “O século”:

O séc’lo é grande… No espaço
Há um drama de treva e luz.
Como o Cristo – a liberdade
Sangra no poste da cruz.
Um corvo escuro, anegrado,
Obumbra o manto azulado,
Das asas d’águia dos céus…
Arquejam peitos e frontes…
Nos lábios dos horizontes
Há um riso de luz… É Deus.
Às vezes quebra o silêncio
Ronco estrídulo, feroz.
Será o rugir das matas,
Ou da plebe a imensa voz?...
Treme a terra hirta e sombria...
São as vascas da agonia
Da liberdade no chão?...
Ou do povo o braço ousado
Que, sob montes calcado,
Abala-os como um Titão?!...
      Esse poema é, todo ele, um convite à luta abolicionista, tentativa emocional de despertar a juventude – e toda a sociedade – para o caráter desumano do sistema escravocrata e para a defesa das ideias liberais. Não por outro motivo o poeta se refere a figuras históricas que, em diferentes épocas, defenderam a liberdade. Nos trechos a seguir, o poeta parece se dirigir diretamente a uma praça lotada de ouvintes:
O quadro é negro. Que os fracos
Recuem cheios de horror.
A nós, herdeiros dos Gracos,
Traz a desgraça – valor!
Lutai... Há uma lei sublime
Que diz: “À sombra do crime
Há de a vingança marchar”.
Não ouvis do Norte um grito,
Que bate aos pés do infinito,
Que vai Franklin despertar?
É o grito dos Cruzados
Que brada aos moços – “De pé!”
É o sol das liberdades
Que espera por Josué!...
São bocas de mil escravos
Que transformaram-se em bravos
Ao cinzel da abolição.
E – à voz dos libertadores –
Reptis saltam condores,
A topetar n’amplidão!...
E vós, arcas do futuro,
Crisálidas do porvir,
Quando vosso braço ousado
Legislações construir,
Levantai um templo novo,
Porém que não esmague o povo,
Mas que lhe seja o pedestal.
Que ao menino dê-se a escola,
Ao veterano – uma esmola...
A todos – luz e fanal!
      Mas o poeta também sabe usar um tom mais intimista. A fim de convencer seu leitor(ou ouvinte), convida-o, no poema “Tragédia no lar”, a conhecer de perto o drama dos escravos, visitando uma senzala. Vejam como o poema perde grandiloquência e ganha
ironia:
Leitor, se não tens desprezo
De vir descer às senzalas,
Trocar tapetes e salas
Por um alcouce cruel,
Vem comigo, mas… cuidado…
Que o teu vestido bordado
Não fique no chão manchado,
No chão do imundo bordel.
Não venhas tu que achas triste
Às vezes a própria festa.
Tu, grande, que nunca ouviste
Senão gemidos de orquestra
Por que despertar tu’alma,
Em sedas adormecida,
Esta excrescência da vida
Que ocultas com tanto esmero?
[...]


       



                                                                            
O Navio Negreiro (Tragédia no mar) 


  I 'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar — dourada borboleta; E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. 'Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias, — Constelações do líquido tesouro... 'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano, Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dous é o céu? qual o oceano?... 'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares, Como roçam na vaga as andorinhas... Donde vem? onde vai?  Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade! Embaixo — o mar em cima — o firmamento... E no mar e no céu — a imensidade! Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa! Homens do mar! ó rudes marinheiros, Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos! Esperai! esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, E o vento, que nas cordas assobia... .......................................................... Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar — doudo cometa! Albatroz!  Albatroz! águia do oceano, Tu que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviathan do espaço, Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. II     Que importa do nauta o berço, Donde é filho, qual seu lar? Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a morte é divina! Resvala o brigue à bolina Como golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena As vagas que deixa após. Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langor, Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor! Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente, — Terra de amor e traição, Ou do golfo no regaço Relembra os versos de Tasso, Junto às lavas do vulcão! O Inglês — marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou, (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando, orgulhoso, histórias De Nelson e de Aboukir.. . O Francês — predestinado — Canta os louros do passado E os loureiros do porvir! Os marinheiros Helenos, Que a vaga jônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu ... Nautas de todas as plagas, Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu! ... III     Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador! Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras! É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! IV      Era um sonho dantesco... o tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho. Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras moças, mas nuas e espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs! E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja, se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala. E voam mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! Um de raiva delira, outro enlouquece, Outro, que martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra, E após fitando o céu que se desdobra, Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . E da ronda fantástica a serpente           Faz doudas espirais... Qual um sonho dantesco as sombras voam!... Gritos, ais, maldições, preces ressoam!           E ri-se Satanás!... V     Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Quem são estes desgraçados Que não encontram em vós Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são?   Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa Musa, Musa libérrima, audaz!... São os filhos do deserto, Onde a terra esposa a luz. Onde vive em campo aberto A tribo dos homens nus... São os guerreiros ousados Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão. Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão. . . São mulheres desgraçadas, Como Agar o foi também. Que sedentas, alquebradas, De longe... bem longe vêm... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, N'alma — lágrimas e fel... Como Agar sofrendo tanto, Que nem o leite de pranto Têm que dar para Ismael. Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram crianças lindas, Viveram moças gentis... Passa um dia a caravana, Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus ... ... Adeus, ó choça do monte, ... Adeus, palmeiras da fonte!... ... Adeus, amores... adeus!... Depois, o areal extenso... Depois, o oceano de pó. Depois no horizonte imenso Desertos... desertos só... E a fome, o cansaço, a sede... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p'ra não mais s'erguer!... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer. Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d'amplidão! Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar... Ontem plena liberdade, A vontade por poder... Hoje... cúm'lo de maldade, Nem são livres p'ra morrer. . Prende-os a mesma corrente — Férrea, lúgubre serpente — Nas roscas da escravidão. E assim zombando da morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoute... Irrisão!... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus, Se eu deliro... ou se é verdade Tanto horror perante os céus?!... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas Do teu manto este borrão? Astros! noites! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ... VI        Existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria!... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia? Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as promessas divinas da esperança... Tu que, da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!

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            FERREIRA GULLAR                                             
               FERREIRA GULLAR                                          
                 FERREIRA GULLAR  

 

 Sessão de autógrafos do livro "Em alguma parte alguma", do poeta Ferreira Gullar, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. (13/09)
             Celeste Aragão Ferreira e Clara Aragão Ferreira (netas) em sessão de autógrafos do livro "Em alguma parte alguma", do poeta Ferreira Gullar, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. (13/09)     Ferreira Gullar e Thiago de Mello em sessão de autógrafos do livro "Em alguma parte alguma", do poeta Ferreira Gullar, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. (13/09)                                                     
      Ferreira Gullar, um dos grandes poetas brasileiros da atualidade, é autor de
“Bicho urbano”, poema sobre a sua relação com as pequenas e grandes
cidades.
Bicho urbano
Se disser que prefiro morar em Pirapemas
ou em outra qualquer pequena cidade do país
estou mentindo
ainda que lá se possa de manhã
lavar o rosto no orvalho
e o pão preserve aquele branco
sabor de alvorada.
.....................................................................
A natureza me assusta.
Com seus matos sombrios suas águas
suas aves que são como aparições
me assusta quase tanto quanto
esse abismo
de gases e de estrelas
aberto sob minha cabeça.
(GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1991)
   Embora não opte por viver numa pequena cidade, o poeta reconhece elementos de valor no cotidiano das pequenas comunidades. Para expressar a relação do homem com alguns desses elementos, ele recorre à sinestesia, construção de linguagem em que se mesclam impressões sensoriais diversas.
"e o pão preserve aquele branco / sabor de alvorada."Na expressão SABOR DE ALVORADA mesclam-se referências a duas impressões sensoriais diversas.A palavra sabor implica sensação gustativa;alvorada(palavra derivada de alvo)implica sensação visual.
     No poema "Bicho urbano", ao contrário do que comumente se faz, compara o morador da cidade a um “bicho”, qualitativo usual em relação ao morador do meio rural: "bicho do mato". Na inversão que propõe, muito ao caráter da
alegoria, o poema vai mais além, quando trata da desumanização do homem urbano em seus processos mecânicos de relacionamento. Esses, ao invés de valorizarem o homem,retiram o que de mais digno ele tem, tornando-o menos nobre:


Poema Sujo - um fragmento: "Velocidades"


Mas na cidade havia
muita luz,
        a vida
fazia rodar o século nas nuvens
               sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
               por cima
do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
               atrás da quitanda,
                       e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no botequim do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
                 ali
                 no norte do Brasil
                 vestido de brim.
         E por ser pouco
         era muito,
         que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.
                 Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
                         que a vida
passava por sobre nós,
                         de avião.
Não tem a mesma velocidade o domingo
         que a sexta-feira com seu azáfama de compras
         fazendo aumentar o tráfego e o consumo
         de caldo de cana gelado,
                                    nem tem
         a mesma velocidade
         a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
         a penetrar soturnamente o rio
         noutra lentidão que a do crepúsculo
         que, no alto,
         com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
                  Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
         a dobrar os lençóis lavados e passados
         a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
                se a vida fosse eterna.
                        E era
         naquele seu universo de almoços e temperos
         de folhas de louro e de pimenta-do-reino
         mastruz para tosse braba,
                           universo
         de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
         dentro de um surrado vestido de chita,
                                    enfim,
         onde batia o seu pequenino coração.
                    E se não era
         eterna a vida, dentro e fora do armário,
         o certo é que
         tendo cada coisa uma velocidade
                   (a do melado
                    escura, clara
                    a da água
                    a derramar-se)
         cada coisa se afastava
         desigualmente
         de sua possível eternidade.
                  Ou
                  se se quer
                  desigualmente
         a tecia
         na sua própria carne escura ou clara
         num transcorrer mais profundo que o da semana.
                  Por isso não é certo dize
         que é no domingo que melhor se vê
                  a cidade
         - as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
         as janelas trançadas no silêncio -
                  quando ela
                  parada
                  parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
        quando - como Alcântara
        todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
        um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
        entre as ruínas
        a persistente certeza de que
        naquele chão
        onde agora crescem carrapichos
        eles efetivamente dançaram
        (e quase se ouvem vozes
        e gargalhadas
                que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
                                 Mas
        se é espantoso pensar
        como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
        tantas e tantas saias, anáguas,
        sapatos dos mais variados modelos
        arrastados pelo ar junto com as nuvens,
                                 a isso
        responde a manhã
        que
        com suas muitas e azuis velocidades
        segue em frente
                            alegre e sem memória
        É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
        se move uma cidade
                           a cada instante
                           (sem falar nos mortos
                           que voam para trás)
                           ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
         nem à do quintal
         escancarado às ventanias da época
                   e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
         desigual segundo o bairro e a classe, e da
         rotação do capital
         mais lenta nos legumes
         mais rápida no setor industrial, e
         da rotação do sono
         sob a pele,
         do sonho
         nos cabelos?
         e as tantas situações da água nas vasilhas
         (pronta a fugir)
                 a rotação
         da mão que busca entre os pentelhos
         o sonho molhado os muitos lábios
         do corpo
         que ao afago se abre em rosa, a mão
         que ali se detém a sujar-se
         de cheiros de mulher,
                  e a rotação
         dos cheiros outros
         que na quinta se fabricam
         junto com a resina das árvores e o canto
         dos passarinhos?
         Que dizer da circulação
         da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
         entre sapatos?
                 e da circulação
         dos gatos pela casa
         dos pombos pela brisa?
         e cada um desses fatos numa velocidade própria
         sem falar na própria velocidade
         que em cada coisa há
                  como os muitos
         sistemas de açúcar e álcool numa pêra
                  girando
         todos em diferentes ritmos
                           (que quase
         se pode ouvir)
                  e compondo a velocidade geral
         que a pêra é
do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
          compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
          o dia
          que passa
          - ou passou -
          na cidade de São Luís.
          E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
          só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
          assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
                                   (feito um caroço
                                    ou um sol)
          porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
          como, por exemplo, o pote de água
          na sala de jantar
          ou na cozinha
          em tomo do qual
desordenadamente giram os membros da família.
          E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
          outras funções metabólicas
          outros centros geram
          como a sentina
          a cama
          ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
          porta-e-janela da Rua da Alegria
          na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
          espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
          colégios, igrejas e prostíbulos,
          outros tantos centros do sistema
          em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
          sem sair do lugar.
          Porque
                   quando todos esses sóis se apagam
                   resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar.
          Porque
          diferentemente do sistema solar
          a esses sistemas
          não os sustém o sol e sim
          os corpos
          que em tomo dele giram:
          não os sustém a mesa
          mas a fome
          não os sustém a cama
          e sim o sono
          não os sustém o banco
          e sim o trabalho não pago
          E essa é a razão por que
          quando as pessoas se vão
                     (como em Alcântara)
apagam-se os sóis (os
          potes, os fogões)
          que delas recebiam o calor
          essa é a razão
          por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
          ainda neste momento a cidade se move
          em seus muitos sistemas
          e velocidades
          pois quando um pote se quebra
          outro pote se faz
          outra cama se faz
          outra jarra se faz
          outro homem
          se faz
para que não se extinga
          o fogo
          na cozinha da casa
O que eles falavam na cozinha
          ou no alpendre do sobrado
          (na Rua do Sol)
          saía pelas janelas
          se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
          (e vá alguém saber
          quanta coisa se fala numa cidade
          quantas vozes
          resvalam por esse intrincado labirinto
          de paredes e quartos e saguões,
          de banheiros, de pátios, de quintais
                           vozes
          entre muros e plantas,
                           risos,
          que duram um segundo e se apagam)
                 E são coisas vivas as palavras
          e vibram da alegria dó corpo que as gritou
          têm mesmo o seu perfume, o gosto
          da carne
          que nunca se entrega realmente
          nem na cama
                            senão a si mesma
                            à sua própria vertigem
                            ou assim falando ou rindo
                            no ambiente familiar
          enquanto como um rato
          tu podes ouvir e ver
          de teu buraco
          como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
          na armação de ferro onde seca uma parreira
          entre arames
          de tarde
                   numa pequena cidade latino-americana.
          E nelas há
          uma iluminação mortal
                   que é da boca
                   em qualquer tempo
           mas que ali
           na nossa casa
                    entre móveis baratos
                    e nenhuma dignidade especial
           minava a própria existência.
                         Ríamos, é certo,
            em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
            de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
            ríamos, sim,
            mas
            era como se nenhum afeto valesse
            como se não tivesse sentido rir
            numa cidade tão pequena.
                     O homem está na cidade
                     como uma coisa está em outra
                     e a cidade está no homem
                     que está em outra cidade
                     mas variados são os modos
                     como uma coisa
                     está em outra coisa:
                     o homem, por exemplo, não está na cidade
                     como uma árvore está
                     em qualquer outra
                     nem como uma árvore
                     está em qualquer uma de suas folhas
                     (mesmo rolando longe dela)
                     O homem não está na cidade
                     como uma árvore está num livro
                     quando um vento ali a folheia
            a cidade está no homem
            mas não da mesma maneira
            que um pássaro está numa árvore
            não da mesma maneira que um pássaro
            (a imagem dele)
            está/va na água
                     e nem da mesma maneira
            que o susto do pássaro
            está no pássaro que eu escrevo
            a cidade está no homem
            quase como a árvore voa
            no pássaro que a deixa
            cada coisa está em outra
            de sua própria maneira
            e de maneira distinta
            de como está em si mesma
            a cidade não está no homem
            do mesmo modo que em sua
            quitandas praças e ruas


        Ferreira Gullar esclarece esse momento e mostra como os aspectos biográficos são reveladores da escrita do seu livro:
    O Poema sujo foi escrito quando a ditadura tinha se
instalado na Argentina. Meus amigos desapareciam , ou eram presos, ou fugiam. O meu passaporte estava cancelado pelo Itamarati. Senti o cerco se fechando.  Quem sabe estaria chegando ao final. Pensei : “Vou ter que escrever essa coisa final, o testemunho final.  Eu vou ter que escrever isso”. Então fui escrever esse poema, que era a experiência da vida toda,não era só um poema do exílio, mas um poema da memória, da
perda, da recomposição do mundo perdido e do amor à vida..
     . Realmente ele é uma espécie de último olhar sobre o mundo e sobre sua própria vida, a manifestação de uma vontade de síntese da própria existência. No entanto, não se deve considerá-lo um texto que, escrito a partir do desencanto do mundo, da desesperança, contenha tão-somente a aceitação resignada da idéia da morte,do fim. Pelo contrário, ele é sobretudo um poema “do amor a vida”. O poeta, diante das inúmeras perdas, do afastamento das pessoas e lugares queridos, tenta recompor e dar sentido integral àquilo que se apresenta em grande medida desmantelado. Existe, no Poema sujo, uma espécie de projeto de arte como sublimação, isto é, Ferreira Gullar, ao elevar a força da vida em sua poesia, buscava uma atitude de resistência contra os
transtornos operados por sua atualidade histórica.  Essa busca é a resposta do poema ao que podemos chamar de experiência de esfacelamento do presente, ou seja, a impossibilidade de se encontrar um significado pleno e reconfortador na vida cotidiana.
           

CANTIGA PARA NÃO MORRER                                                                                 Quando você for embora, moça branca como a neve, me leve. me leve. Se acaso você não possa me carregar pela mão, menina branca como a neve, me leve no coração. Se no coração não possa por acaso me levar, moça de sonho de neve, me leve no seu lembrar. E se aí também não possa por tanta coisa que leve já viva em seu pensamento, menina branca de neve, me leve no esquecimento.        
     Ferreira Gullar 


   
 ANÁLISE 
   
 O eu lírico procura caracterizar a mulher amada por meio de locuções adjetivas ou comparações,que acompanham os substantivos menina e moça.As locuções de neve e de sonho de neve e as comparaçoes como a neve.Que reforçam a harmonia sugerida pelo adjetivo branca.     Ferreira Gullar compara a brancura da moça à da neve;na sequência passa da comparação à metáfora sugerindo que a pele da mulher é feita de neve;finalmente transforma sua amada em algo ainda mais imaterial:o sonho.O poema evolui do corpo físico para a alma de sua interlocutora.     A descrição física da mulher não é um fim em si mesmo,pois a sequência gradativa encerra-se com a inclusão do sonho.O eu lírico parece valorizar mais o aspecto psicológico da personagem.  Meu pai meu pai foi ao Rio se tratar de um câncer (que o mataria) mas perdeu os óculos na viagem quando lhe levei os óculos novos comprados na Ótica Fluminense ele examinou o estojo com o nome da loja dobrou a nota de compra guardou-a no bolso e falou: quero ver agora qual é o sacana que vai dizer que eu nunca estive no Rio de Janeiro                Ferreira Gullar    

   ANÁLISE  :    O texto faz uso de linguagem coloquial;nota-se seu emprego no vocabulário,no conteúdo e em estruturas sintáticas como as observadas nos seguintes versos :(Fluminence ele/examinou o estojo com/o nome da loja dobrou/a nota de compra guardou-a/no bolso e falou:).Embora haja também o emprego da subordinação nos versos:(perdeu os óculos/na viagem/quando lhe levei/os óculos novos/comprados na Ótica/Fluminense ele/examinou o estojo com).      O emprego da coordenação nos versos(examinou o estojo com/o nome da loja dobrou/a nota de compra guardou-a/no bolso e falou:)dá ao texto uma simplicidade sintática que se harmoniza com o conteúdo prosáico(voltado para o cotidiano).      O conectivo "mas" no verso"o mataria) mas",introduz uma não compensação que,no final da narrativa,se tornará uma compensação.      O conectivo "e" ,no verso"no bolso e falou:"introduz uma sobreposição de ações do pai; estas criam um efeito de dinamicidade que se traduz na agressividade da personagem"agora qual é o sacana que vai dizer".No texto não há agressividade na fala do pai,mas um tom de desafio temperado com humor e orgulho de alguém que quer provar que foi ao  Rio.  Poema extraído da Antologia Poética
de Ferreira Gullar

 AGOSTO 1964  
  

                        Entre lojas de flores e de sapatos, bares, mercados, butiques, viajo num ônibus Estrada de Ferro – Leblon. Volto do trabalho, a noite em meio, fatigado de mentiras. O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud, relógio de lilases, concretismo, neoconcretismo, ficções da juventude, adeus, que a vida eu a compro à vista aos donos do mundo. Ao peso dos impostos, o verso sufoca, a poesia agora responde a inquérito policial-militar. Digo adeus à ilusão mas não ao mundo. Mas não à vida, meu reduto e meu reino. Do salário injusto, da punição injusta, da humilhação, da tortura, do terror, retiramos algo e com ele construímos um artefato um poema uma bandeira  
       A forma de organização do poema revela despojamento: os problemas são indicados sucessivamente por acumulação, organizando uma cadeia de imagens que resulta no efeito poético. Em vez do otimismo cepecista, agora já não mais existem heróis destinados à vitória. No antepenúltimo verso, há a passagem da primeira pessoa do singular para a primeira do plural: “retiramos algo e com ele construímos um artefato”, revelando a transformação de uma identidade pessoal inserida dentro de uma ampla identidade nacional.     O que leva à passagem de um tipo de poesia a outro, então, são principalmente as alterações nas condições históricas do país. A aliança com os outros configura a chave para a transformação social e o poeta passa a denunciar o cotidiano sofrido das pessoas, com a convicção de que sua produção poética pode auxiliar na mudança da sociedade. A denúncia de desigualdade social é mais do que explícita, como ocorre no poema intitulado “O açúcar”. 
     O eu-lírico, em uma tranqüila manhã, divaga sobre a origem do açúcar que adoça seu café. Quem o teria produzido?  “O açúcar” é um poema de Dentro da noite veloz. Ei-lo: “O branco açúcar que adoçará meu café nesta manhã de Ipanema não foi produzido por mim nem surgiu dentro do açucareiro por milagre. Vejo-o puro E afável ao paladar Como beijo de moça, água Na pele, flor Que se dissolve na boca. Mas este açúcar Não foi feito por mim. Este açúcar veio Da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, Dono da mercearia. Este açúcar veio De uma usina de açúcar em Pernambuco Ou no Estado do Rio E tampouco o fez o dono da usina. Este açúcar era cana E veio dos canaviais extensos Que não nascem por acaso No regaço do vale. Em lugares distantes, onde não há hospital Nem escola, Homens que não sabem ler e morrem de fome Aos 27 anos Plantaram e colheram a cana Que viraria açúcar. Em usinas escuras, Homens de vida amarga E dura Produziram este açúcar Branco e puro Com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
 

 
ANÁLISE 

   O poema gira em torno do eu. Os acontecimentos narrados são vividos e filtrados por um eu, e é assim que o texto se impõe ao leitor. Não é uma narrativa de acontecimentos, mas a expressão dos efeitos desses acontecimentos na subjetividade do poeta.       Contudo, o poema vai se mover em direção ao mundo dando a ver uma condição problemática do eu.      Diz o poeta que o café a ser adoçado é ‘meu,’a manhã de Ipanema,qualificada como ‘esta’, é também a sua. O açúcar, por sua vez, é branco, o que deve ser entendido como ‘purificado’,ou mesmo, ‘puro’.   Entretanto, o açúcar “não foi produzido por mim”. Ser produzido contrapõe-se a existir por milagre.      Como se verá, este contraponto tem grande importância também para o poema, cuja existência hesita entre ser milagre e produção.    A voz tenta recuperar nos 33 versos do poema o processo de produção do açúcar,como numa história contada de trás pra frente, em que os últimos acontecimentos precedem os primeiros. Como numa desmontagem, o açúcar percorre o caminho de volta do açucareiro para a mercearia do Oliveira, daí para a usina em Pernambuco ou no Estado do Rio, até chegar aos canaviais que “não nascem por acaso/ no regaço do vale”. Por fim chega aos homens que o plantaram e o colheram. O deslocamento dá-se no espaço, mas também no tempo. As condições de trabalho dos “homens de vida amarga” são pré-capitalistas.     Em seus versos, Gullar lembra aqueles que nunca são alvos de lembrança: são os homens de vida amarga (antítese com o adocicado provocado pela adição de açúcar no café), aqueles que não sabem ler e morrem de fome. Enquanto isso, o eu-lírico está mais do que tranqüilo em seu confortável apartamento em Ipanema, idéia que serve como uma espécie de provocação para os integrantes da classe média alta nacional. Alerta-se,assim, para as diferenças sociais tão acentuadas no território brasileiro.     Os acontecimentos políticos refletem em uma produção mais reflexiva e melancólica que, ao mesmo tempo, mostra-se madura e consciente. O poeta, ciente das dificuldades existentes, precisa viver, resistir e refletir sobre os acontecimentos coletivos. Consciente de que os fatos cotidianos são vistos a partir de sua coletividade,participa de sua transformação. Ao mesmo tempo, é testemunha de uma realidade injusta e dilacerada. Por isso, não há espaço para produções poéticas ingênuas.    Nada mais natural, pois, que a poesia passasse a configurar uma forma de protesto contra a desumanização característica do universo capitalista.  O que vale é o retrato da podridão social.         O poeta encontra-se deslocado. Por isso, opta pela ruptura sintática, por um vocabulário mais chulo, pelo verso livre, pela pontuação não usual,pela sátira e pela ironia. Com maior liberdade formal e temática, reúne alegorias que refletem o cotidiano do homem comum, e ainda elementos de sua memória afetiva que recompõem o quadro da vida humilde da pequena burguesia no interior do país. 

 

Poesia

 

 

Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva 

 

Moraes, poeta e cidadão

A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas. Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente não tinha pai. No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta De Augusto geralmente procrastinava a tarde. Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho Rangia nos trilhos a muitas praias de distância Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes Mas ser marraio em teus braços, sentir por último Os doces espinhos da tua barba. Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura De quem se deixou ser. Teus ombros possantes Se curvavam como ao peso da enorme poesia Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras Mirando o mar). Dize-me, meu pai Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance Que nunca revelaste a ninguém? Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona. Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde A um gesto do mar. A noite se fechava Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
*
Muitas vezes te vi desejar. Desejavas. Deixavas-te olhando o mar Com mirada de argonauta. Teus pequenos olhos feios Buscavam ilhas, outras ilhas... - as imaculadas, inacessíveis Ilhas do Tesouro. Querias. Querias um dia aportar E trazer - depositar aos pés da amada as jóias fulgurantes Do teu amor. Sim, foste descobridor, e entre eles Dos mais provectos. Muitas vezes te vi, comandante Comandar, batido de ventos, perdido na fosforescência De vastos e noturnos oceanos Sem jamais. Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar Em silêncio. Foste um pobre. Mendigavas nosso amor Em silêncio. Foste um no lado esquerdo. Mas Teu amor inventou. Financiaste uma lancha Movida a água: foi reta para o fundo. Partiste um dia Para um brasil além, garimpeiro, sem medo e sem mácula. Doze luas voltaste. Tua primogênita - diz-se - Não te reconheceu. Trazias grandes barbas e pequenas águas-marinhas. Não eram, meu pai. A mim me deste Águas-marinhas grandes, povoadas de estrelas, ouriços E guaiamus gigantes. A mim me deste águas-marinhas Onde cada concha carregava uma pérola. As águas-marinhas que me deste Foram meu primeiro leito nupcial.
          Eras, meu pai morto            Um grande Clodoaldo Capaz de sonhar     Melhor e mais alto            Precursor do binômio            Que reverteria            Ao nome original            Semente do sêmen            Revolucionário            Gentil-homem insigne            Poeta e funcionário            Sempre preterido            Nunca titular            Neto de Alexandre            Filho de Maria            Cônjuge de Lydia            Pai da Poesia.
*
Diante de ti homem não sou, não quero ser. És pai do menino que eu fui. Entre minha barba viva e a tua morta, todavia crescendo Há um toque irrealizado. No entanto, meu pai Quantas vezes ao ver-te dormir na cadeira de balanço de muitas salas De muitas casas de muitas ruas Não te beijei em meu pensamento! Já então teu sono Prenunciava o morto que és, e minha angústia Buscava ressuscitar-te. Ressuscitavas. Teu olhar Vinha de longe, das cavernas imensas do teu amor, aflito Como a querer defender. Vias-me e sossegavas. Pouco nos dizíamos: "Como vai?". Como vais, meu pobre pai No teu túmulo? Dormes, ou te deixas A contemplar acima - eu bem me lembro! - perdido Na decifração de como ser? Ah, dor! Como quisera Ser de novo criança em teus braços e ficar admirando tuas mãos! Como quisera escutar-te de novo cantar criando em mim A atonia do passado! Quantas baladas, meu pai E que lindas! Quem te ensinou as doces cantigas Com que embalavas meu dormir? Voga sempre o leve batel A resvalar macio pelas correntezas do rio da paixão? Prosseguem as donzelas em êxtase na noite à espera da barquinha Que busca o seu adeus? E continua a rosa a dizer à brisa Que já não mais precisa os beijos seus? Calaste-te, meu pai. No teu ergástulo A voz não é - a voz com que me apresentavas aos teus amigos: "Esse é meu filho FULANO DE TAL". E na maneira De dizê-lo - o vôo, o beijo, a bênção, a barba Dura rocejando a pele, ai!
*
Tua morte, como todas, foi simples. É coisa simples a morte. Dói, depois sossega. Quando sossegou - Lembro-me que a manhã raiava em minha casa - já te havia eu Recuperado totalmente: tal como te encontras agora, vestido de mim. Não és, como não serás nunca para mim Um cadáver sob um lençol. És para mim aquele de quem muitos diziam: "É um poeta…" Poeta foste, e és, meu pai. A mim me deste O primeiro verso à namorada. Furtei-o De entre teus papéis: quem sabe onde andará… Fui também Verso teu: lembro ainda hoje o soneto que escreveste celebrando-me No ventre materno. E depois, muitas vezes Vi-te na rua, sem que me notasses, transeunte Com um ar sempre mais ansioso do que a vida. Levava-te a ambição De descobrir algo precioso que nos dar. Por tudo o que não nos deste Obrigado, meu pai. Não te direi adeus, de vez que acordaste em mim Com uma exatidão nunca sonhada. Em mim geraste O Tempo: aí tens meu filho, e a certeza De que, ainda obscura, a minha morte dá-lhe vida Em prosseguimento à tua; aí tens meu filho E a certeza de que lutarei por ele. Quando o viste a última vez Era um menininho de três anos. Hoje cresceu Em membros, palavras e dentes. Diz de ti, bilíngüe: "Vovô was always teasing me…" É meu filho, teu neto. Deste-lhe, em tua digna humildade Um caminho: o meu caminho. Marcha ela na vanguarda do futuro Para um mundo em paz: o teu mundo - o único em que soubeste viver; aquele que, entre lágrimas, cantos e martírios, realizaste à tua volta.

O anúncio da morte por telefone se evidencia no verso “A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas”, ficando claro, nos versos seguintes, que, ao pensar no pai morto, o que lhe vem à memória são também as recordações de sua infância: “No escuro de minha casa em Los Angeles, procurei recompor tua lembrança / Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância / Boiaram do mar de minhas lágrimas.”

O barbante cortava teus dedos / Pesados de mil embru - lhos: O emprego da expressão mil embrulhos no verso mencionado caracteriza-se como figura de linguagem denominada hipérbole, porqueMil embrulhos é exageração, ênfase expressiva empre
gada pelo poeta, ou seja, hipérbole.
PLeonasmo, - uma redundância de termos com bom efeito
estilístico.
Há pleonasmo na repetição do pronome oblíquo
referente à primeira pessoa: “A mim me deste”


 
Quando a curva / Se acendia de luzes semoventes, Esta imagem significa, nos versos em que surge,
A imagem sugere a chegada do bonde que trazia o pai
do eu lírico no fim da tarde. Luzes semoventes é uma
referência ao farol do bonde que se aproxima.
Partiste um dia / Para um brasil além, garimpeiro sem
medo e sem mácula.
O emprego da palavra brasil com inicial minúscula, no
poema de Vinicius, tem justificativa?

A inicial minúscula de brasil justifica-se por não ser uma referência ao país (o Brasil), mas a um destino desconhecido (um brasil), situado além desta vida, além deste país em que o falecido vivera

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Camões
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Camões
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Camões
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Camões
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O canto X

Busque Amor novas artes, novo engenho - Camões  


 Busque Amor novas artes, novo engenho, para matar-me, e novas esquivanças; que não pode tirar-me as esperanças, que mal me tirará o que eu não tenho. Olhai de que esperanças me mantenho! vede que perigosas seguranças: que não temo contrastes nem mudanças, andando em bravo mar perdido o lenho Mas, conquanto não pode haver desgosto onde esperança falta, lá me esconde Amor um mal, que mata e não de vê; que dias há que na alma me tem posto um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei por quê. Vocabulário Esquivanças: desdéns, desprezos, recusas. Novo engenho: nova artimanha. Conquanto: se bem que, ainda que. Lenho: embarcação (metonímia representada pela substituição da coisa pela matéria de que esta é feita).  ´´As redondilhas de Camões`` – é construída de redondilhos (versos de 5 ou 7 sílabas) e lembra os melhores momentos do Cancioneiro geral de Garcia de Rezende. É a poesia singela, de amores transitórios e de belíssimas fulgurações femininas, especialmente aquelas que definem a moça do povo, a graça feminina tipicamente ibérica e rural. A sintaxe é às vezes elementar, às vezes puxa um pouco para o modo clássico. A medida velha provém de uma tradição que começou com o trovadorismo, principalmente o das cantigas de amigo. Os poemas líricos camonianos escritos em medida nova apresentam as inovações de forma e conteúdo introduzidas pelos poetas ligados ao humanismo italiano no século XIV, sobretudo a partir da influência de Petrarca. O verso empregado é o decassílabo; os tipos de composição preferidos são o soneto, as éclogas, as odes, as oitavas e as elegias. Camões alcançou maior sucesso no soneto, motivo pelo qual é apontado como um dos três maiores sonetistas da literatura portuguesa, ao lado de Bocage (séc. XVIII) e de Antero de Quental (séc., XIX). A principal parte da obra lírica de Camões é desenvolvida em sintonia com sua época, com os modelos de forma e de conteúdo do Renascimento. Embora Camões seja, essencialmente, um autor do Classicismo (século XVI), em seus sonetos, notam-se certos traços maneiristas (visíveis em, por exemplo, antíteses e paradoxos), que prenunciam a estética barroca. O soneto foi uma das formas poéticas mais exploradas na Era Clássica, já que, pela própria natureza dissertativa, facilita a reflexão e a exposição de ideias em textos predominantemente conceituais e lógicos. Obedecendo a este preceito, Camões nos apresenta esta composição de forma fixa, composta por 14 versos (decassílabos heróicos), divididos em 2 estrofes de 4 versos (quartetos) e 2 estrofes de três versos (terceto). O posicionamento das rimas é regular: abba/abba/cde/cde. O eu lírico chega a uma paradoxal definição do amor através de uma dialética: de um lado, ´´desafia`` o amor a novamente fazê-lo sofrer, o que demonstra a sua experiência, a sua vivência. De outro, entretanto, esta vivência, esta experiência são ameaçadas por um mistério transcendente aos seres humanos: ´´um mal, que mata`` e não se vê``(força estranha e maléfica, invisível e inevitável). Assim, na 1.ª estrofe, o ´´Amor`` aparece no soneto como uma entidade abstrata e independente. O eu lírico nos expõe um raciocínio sobre ele (este personificado; com A maiúsculo, para indiciá-lo como um ser superior: Cupido ou Eros). É um verdadeiro desafio ao Amor a buscar novas artes e engenhos para matá-lo.Veja que o texto é cheio de argumentações: o que inicial dos versos 3 e 4 equivale a uma conjunção causal ou explicativa (pois, visto que, porque). Perceba: não há uma indiferença em relação ao Amor, mas aos efeitos, ou melhor, aos sofrimentos que o Amor manda inutilmente ao eu lírico, para tirar-lhe esperanças que, afinal, ele não mais possui. Na 2.ª estrofe, o eu lírico não teme ´´contrastes nem mudanças`` porque já leva uma vida perigosa e agitada. Castigado tão variamente, já não teme as más novidades, pois, naufrago do amor (´´andando em bravo mar perdido o lenho``), que mais pode temer? Concluindo, podemos observar que o soneto desenvolve um raciocínio completo: O eu lírico apresenta um tese: está imune a novas investidas do Amor porque já chegou ao limite do sofrimento (verso 1 ao verso 8). Esta convicção, contudo, vai ser dialeticamente quebrada na 3.ª estrofe (com a introdução da conjunção adversativa ´´mas``), pelo súbito reconhecimento de que há dias em que a dor de amar se põe tão estranha e aguda, que a consciência não consegue nem mesmo acompanhar o percurso do ´´sofrer``, e por isso, a certeza que demonstra no começo transforma-se, ao fim, numa impressão de desespero (rende-se aos inexplicáveis mistérios do Amor). O eu lírico constata que sua tese é incorreta: apesar do grau extremo de seu sofrimento, o Amor ainda o faz passar por dissabores (verso 9 ao verso 11). Na 4.ª estrofe, o eu lírico apresenta o Amor impedindo qualquer explicação lógica (não sei... não sei... não sei...). É o amor como sofrimento, ou sofrer amando. Um amor que ele aceita e possivelmente reconhece (´´que dias há que na alma me tem posto``), mas que ignora de onde nasce, de onde vem e que ´´dói não sei porquê``(ressalta a dúvida e a total falta de controle). O eu lírico explica e sintetiza a aparente contradição entre a tese e a antítese. Isto ocorre devido ao caráter indefinido e vago do Amor (versos 12 ao verso 14). Do soneto apresentado se depreende uma verdadeira ´´Gramática filosófica-amorosa `´de Camões (uma dialética que trabalha à oposição entre razão e sentimento). O pré-Barroquismo se desenvolve (segue a lógica aristotélica) no processo de tese (1.º e 2.ª estrofes), antítese (3.ªestrofe) e síntese (4.ª e última estrofe).  Nelson Souzza  Análise de algumas poesias líricas de Camões    Alma minha gentil, que te partiste  Alma minha gentil, que te partiste  tão cedo desta vida descontente,  repousa lá no Céu eternamente,  e viva eu cá na terra sempre triste.  Se lá no assento etéreo, onde subiste,  memória desta vida se consente,  não te esqueças daquele amor ardente  que já nos olhos meus tão puro viste.  E se vires que pode merecer-te  alguma cousa a dor que me ficou  da mágoa, sem remédio, de perder-te,  roga a Deus, que teus anos encurtou,  que tão cedo de cá me leve a ver-te,  quão cedo de meus olhos te levou. 


 Vocabulário -


 assento etéreo – morada celeste, céu 
Análise da formalidade O poema é constituído de catorze versos distribuídos em quatro estrofes: as duas primeiras são quartetos (possuem quatro versos cada) e as duas últimas são dois tercetos (possuem três versos cada), sendo a forma exata do soneto. Neste poema segue a seguinte distribuição das rimas: ABBA, ABBA para os quartetos (rimas opostas ou interpoladas); CDC, DCD para os tercetos (rimas alternadas ou cruzadas). Além disso os seus versos são decassílabos heroicos (sílabas fortes nas sextas e décimas sílabas), como pode ser observado na divisão apresentada abaixo. Al-ma- mi-nha- gen-til,- que -te –par-tis(te)  Tão- ce- do- des-ta- vi-da- dês-com-ten(te),  Re-pou-sa -lá- no- Céu- e-ter-na-men(te),  e- vi- vaeu- cá- na- te-rra- sem-pre- tris(te) Não se esqueça que devemos contar até a última sílaba tônica de cada verso e também há a junção de uma semivogal final de palavra e uma vogal inicial da palavra da sequência (como pode ser visto no último verso apresentado acima).


 Comentários sobre o poema   


O soneto, que os biógrafos associam à morte de Dinamene, amante chinesa com quem Camões teria vivido em Macau, é um dos mais conhecidos de sua obra lírica. Camões e Dinamene estariam indo da China para a Índia, onde o poeta seria julgado por delitos administrativos, mas, na viagem, por volta de 1560, o navio naufraga nas costas do Camboja, junto à foz do Rio Meckong. Camões teria conseguido salvar-se e salvar os originais de “Os Lusíadas”, que trazia quase concluído, mas teria perdido Dinamene, a sua “alma gentil”. O tema deste soneto é a saudade da amada morta e o desejo de unir-se a ela numa outra vida. Neste soneto o eu lírico marca o conflito que vive pela perda da amada, levando-o à condição dolorosa da vida e à noção de que a morte é a única forma de esperança e de realização do seu amor. O soneto pode ser estruturado da seguinte forma: - Primeiro quarteto: o eu lírico mostra a saudade que sente pela amada morta - Segundo quarteto: o eu lírico faz um pedido para que a amada não o esqueça - Tercetos: o eu lírico faz o pedido para ir junto da amada No soneto a amada morta aparece elevada à máxima purificação, perfeição, já presente no primeiro verso, com a apóstrofe lírica (chamamento): Alma. A presença da espiritualidade está marcada nas locuções “lá no céu” e “no assento etéreo”. Essas marcas de idealização e de religiosidade contrapõem-se à nota sensual presente em “daquele amor ardente”, que, ao mesmo tempo, é abrandada pela sequência “que já os olhos meus tão puro viste” e no desejo, manifestado pelo poeta, de ir ter com a amada no céu. Aqui está presente o processo antitético mais amplo: Céu x Terra que engloba todas as outras. O platonismo revela-se, no soneto, pela sublimação eternizada da amada, a partir de sua morte. O poeta contempla a amada transformada em puro espírito (“lá no assento etéreo”), por via de muito amar. O apelo aos sentidos é transcendentalizado, imaterializado, buscando a amada no Céu, em Deus. A morte pode ser vista como uma espécie de purificação. A amada que partiu se tornou objeto de elevação e saudade. Mesmo apresentando todas as marcas de idealização e espiritualidade, a nota sensual aparece em “daquele amor ardente”, atenuada pelo adjetivo “puro”. A oposição Céu x Terra revela um drama amoroso que mesmo transportado para o plano da morte, do imaterial e do atemporal não exclui as ansiedades do amante, humano, carnal, colocadas de forma discreta, mas persistente e irrecusável. No primeiro quarteto do poema, o eu lírico fala sobre a sua amada que morreu muito cedo e que está repousando no Céu enquanto ele está aqui na terra muito triste. No segundo terceto, o eu lírico fala que se a amada, lá no Céu, guardar memória da vida na terra, deverá lembrar-se do amor ardente que eles viveram e que era visto de forma pura nos seus olhos. Nos tercetos o eu lírico pede para a amada que, se ela achar que ele merece, peça a Deus que também encurte a sua vida, ou seja, que o leve para junto dela. Na visão platônica do amor expressa no poema, a morte da amada não impede a realização do amor, somente adia, pois esse é um sentimento que pertence à eternidade. Em ordem direta, assim deveríamos ler os dois tercetos: “E roga a Deus, que teus anos encurtou, que tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou, se vires que a dor, que me ficou, da mágoa sem remédio de perder-te, pode merecer-te alguma cousa.”   Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades  Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,  Muda-se o ser, muda-se a confiança;  Todo o Mundo é composto de mudança,  Tomando sempre novas qualidades.  Continuamente vemos novidades,  Diferentes em tudo da esperança;  Do mal ficam as mágoas na lembrança,  E do bem, se algum houve, as saudades.  O tempo cobre o chão de verde manto,  Que já coberto foi de neve fria,  E em mim converte em choro o doce canto.  E, afora este mudar-se cada dia,  Outra mudança faz de mor espanto:  Que não se muda já como soía. 
 Vocabulário -soía - costumava - mor - maior 
 Comentários sobre o poema Logo no início do poema “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, o poeta desenvolve o tema renascentista da mudança, da instabilidade do mundo, opondo o tempo da natureza (“os tempos”) ao tempo humano (“as vontades”). Podemos observar que as mudanças ocorrem desde os aspectos físicos até os aspectos que chamamos de psicológicos, os comportamentos; os aspectos exteriores do mundo e os interiores aos seres humanos. Nos versos de 5 a 8 para o poeta tudo sofre mudança, menos a dor. E, na sequência, versos de 9 a 11, pode-se observar que a natureza também se modifica, pois ocorre o inverno (“neve fria”) e primavera (“verde manto”), mas par o poeta só há invernos (“e em mim converte em choro o doce canto”). Mas no último terceto o poeta manifesta a mudança mais surpreendente, até a mudança sofreu alterações, já que ela não muda mais como antes, ao contrário do tempo natural que tem como característica ser repetitivo. A mudança das coisas afeta até a própria mudança; ela passa a não mudar mais como mudava antes. Abre-se outro par antitético: presente x passado. Assim, como o tempo não permite que nada fique como é, e a mudança se dá sempre para pior, no plano da existência, o bem só subsiste no passado, na memória, na saudade, na recordação. Neste poema o eu lírico apresenta a plena consciência de que tudo muda, que nada é eterno, traduz a noção de que até a própria mudança é inconstante e, para agravar, o passado mudava-se do mal para o bem, e do bem para o mal; no presente não se muda senão do mal para o mal. O poema também apresenta o jogo antitético mal x bem; verde manto x neve fria; choro x doce canto.   Erros meus, má fortuna, amor ardente Erros meus, má fortuna, amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Os erros e a fortuna sobejaram, Que para mim bastava amor somente. Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram, Que as magoadas iras me ensinaram A não querer já nunca ser contente. Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa [a] que Fortuna castigasse As minhas mal fundadas esperanças. De amor não vi senão breves enganos. Oh, quem tanto pudesse que fartasse Este meu duro Gênio de vinganças!  
Vocabulário - “sobejaram” – sobraram, excederam, no sentido de que não eram necessários erros, nem má fortuna, pois as decepções do amor bastariam para lhe deixar a vida infeliz. - “conjuraram” – conspirar, tramar - “que” (verso 4) – nesse caso tem o sentido explicativo da conjunção “pois” - “a desejos deixar de ser contente” – abandonar o desejo de ser contente - “discurso” – no verso possui o sentido de transcurso, tudo aquilo que foi realizado - “que fartaste / este meu duro Gênio de vingança” – que satisfizesse a sede de vingança (contra mim) do meu duro Gênio (no sentido romano de “o outro” que habita dentro de mim). - Amor – (versos 1 e 4) – através da inicial maiúscula, Camões reveste a palavra de uma significação mais ampla, universal. Ocorre a personificação do sentimento, transformando-o, no caso, no deus Amor. O mesmo ocorre com a palavra Fortuna. - amor – (verso 12) grafado com letra minúscula, refere-se à experiência vivida, pessoal, concreta. 


 Comentários sobre o poema


 O poeta faz uma poesia reflexiva sobre o tema do “desconcerto do mundo”, para, ao fazer uma revisão crítica de sua vida, revelar suas mágoas e tristezas. Este soneto apresenta uma grande intensidade dramática, pelo uso da primeira pessoa do singular, com a presença do “eu”. A presença de interjeições nos dois últimos versos (verso 13 e 14) realça o sentimento de dor e da revolta cujas causas aparecem ao longo do poema, os desenganos amorosos (versos 1, 2, 4 e 12). A dor de lembrar, a recusa de ter esperança e a revolta contra a Fortuna (sorte) dão intensidade dramática ao poema, que se acentua com o uso da primeira pessoa. No primeiro quarteto o verbo “conjuraram” está no pretérito perfeito, ou seja, indica algo que está no passado, apontando para (“erros meus, má fortuna, amor ardente”) aquilo que o sujeito realizou no passado, referindo-se assim a acontecimentos. Já no segundo quarteto, o primeiro verso começa por uma espécie de síntese dos acontecimentos: “Tudo passei.” e se inicia, na sequência, a apresentação daquilo que pertence aos sentimentos, daquilo que ficou após o encerramento da experiência. A primeira marca desse sentimento está na constatação dos resultados danosos para a alma: “mas tenho tão presente / a grande dor das cousas que passaram”. Portanto, o efeito das coisas que passaram (aconteceram) é a grande dor que fica. Outro efeito está na experiência adquirida, que ensinou ao poeta a não mais se contentar com os desejos, com as coisas de amor, ensinou-o “a desejos deixar de ser contente”. No primeiro terceto ocorre a combinação entre acontecimento e efeito. Por ter errado os caminhos de sua vida (“Errei todo o discurso de meus anos”), a Fortuna (o destino) castigou o poeta, jogou por terra suas “mal fundadas esperanças”. Os dois versos finais do poema vão apresentar a conclusão, pois o poeta termina seu poema mostrando o desejo de que alguém fizesse o impossível: satisfazer a sede de vingança que seu “duro Gênio” nutre sempre contra ele, mostra que é impossível estancar a fonte dos males que o afligem.   Sete anos de pastor Jacó servia  Sete anos de pastor Jacó servia  Labão, pai de Raquel serrana bela,  Mas não servia ao pai, servia a ela,  Que a ela só por prêmio pretendia.  Os dias na esperança de um só dia  Passava, contentando-se com vê-la:  Porém o pai, usando de cautela,  Em lugar de Raquel lhe dava Lia.  Vendo o triste pastor que com enganos  Lhe fora ssi negada a sua pastora,  Como se a não tivera merecida,  Começa de servir outros sete anos,  Dizendo: mais servira, se não fora  Pera tão longo amor tão curta a vida. Vocabulário - “na esperança de um só dia” – aguardando o dia em que Labão lhe entregasse Raquel - “assi” – forma antiga de assim - “tivera” – tivesse - “mais servira, se não fora” – mais eu serviria, se não fosse - “pera” – para - “pera tão longo amor tão curta a vida.” – na antítese (longo x curta) Jacó garante que trabalharia mais para obter o amor de Raquel, caso sua vida não fosse tão breve. Comentários sobre o poema A fonte antiga deste poema está na Bíblia (Gênesis XXIX, 25), embora Camões se possa ter inspirado também no verso de Petrarca (poeta italiano) “Per Rachel ho servito e non per Lia”, (“Servi por Raquel e não por Lia”). Na estória bíblica, Labão engana Jacó, desrespeitando o acordo feito e dando-lhe Lia, a filha mais velha, que segundo o hábito hebaico deveria casar-se primeiro. As complicações futuras entre o sogro e o genro, devidas a motivos materiais, não aparecem no poema de Camões, que se deteve apenas nos elementos românticos da história. Este soneto narra uma síntese da história bíblica de Jacó e seu amor por Raquel. (Jacó no Velho Testamento é símbolo de fidelidade e constância no amor.) Agora será transcrito o episódio bíblico para que possamos observar o poder se síntese de Camões. Disse Labão a Jacó: “Acaso, por seres meu parente, haveis de servir-me de graça? Dize-me qual será teu salário”. Ora, Labão tinha duas filhas; a mais velha chamava-se Lia, a mais moça Raquel. Lia tinha os olhos amortecidos, ao passo que Raquel era esbelta e bela de aparência. Jacó tendo amor por Raquel, respondeu a Labão: “Por Raquel, tua filha mais moça, servir-te-ei durante sete anos.” Labão respondeu: “Melhor que eu ta dê do que a qualquer outro. Fica comigo.” Jacó serviu sete anos por Raquel, e estes lhe pareceram poucos dias, de tal modo ele a amava! Disse então Jacó a Labão: “Entrega-me a minha mulher porque já venceu o prazo combinado, e eu quero me unir a ela.” Labão reuniu todos os homens do lugar e fez um banquete. Chegando a noite, tomou sua filha Lia e a levou até Jacó, que a ela se uniu. Labão deu a sua filha Lia uma criada chamada Zelfa. Ora, pela manhã, eis que era Lia! Disse, pois, a Labão: “Que me fizeste? Então não foi por Raquel que te servi? Por que me enganaste?” Respondeu-lhe Labão: “Em nossa região não é costume dar-se a filha mais moça antes da mais velha. Acaba a semana com esta, e então te darei também a outra, por outros sete anos de serviço.” Jacó aceitou, e acabada a semana deu-lhe Labão por mulher sua filha Raquel. Labão deu como escreva para Raquel sua criada Balá. Jacó uniu-se também a Raquel e amou-a mais que a Lia. E serviu a Labão por outros sete anos. Podemos dizer que esse poema de Camões esboça uma espécie de novela amorosa, sendo assim podemos classificá-lo como um soneto narrativo, já que desenvolve uma história de forma concentrada, além dos adjetivos “triste” e “bela” nada há que afrouxe o tom condensado dessa narração. Além da construção de uma narrativa, no soneto ocorre uma concepção filosófica do amor, celebrando-o como sendo maior que a vida. Os versos 13 e 14 sintetizam o sentimento platônico do poeta, que não se importará de esperar um longo tempo para ter a mulher amada, pois a teria custasse o que custasse, já que o seu sentimento não era da carne, mas sim do espírito. Jacó não serviria a Jacó, mas ao amor que sentia por Raquel. Os versos finais do poema “mais servira, se não fora / Pera tão longo amor tão curta a vida”, dentro da concepção platônica, traduz a ideia de que o amor de Jacó transcendia o tempo histórico e projetava-se numa zona ideal, além da malícia e astúcia de Labão. O amor de Jacó por Raquel transcende a tudo e simboliza a fidelidade e a constância, fazendo com que o pastor viva para e pelo amor, embora a possibilidade de concretizá-lo seja remota. O amor, nesse caso, torna-se idealizado e perfeito.  Tanto de meu estado me acho incerto  Tanto de meu estado me acho incerto,  que em vivo ardor tremendo estou de frio;  sem causa, juntamente choro e rio,  o mundo todo abarco e nada aperto.  É tudo quanto sinto, um desconcerto;  da alma um fogo me sai, da vista um rio;  agora espero, agora desconfio,  agora desvario, agora acerto.  Estando em terra, chego ao Céu voando,  numa hora acho mil anos, e é de jeito  que em mil anos não posso achar uma hora.  Se me pergunta alguém porque assi ando,  respondo que não sei; porém suspeito  que só porque vos vi, minha Senhora. Vocabulário - “abarco” – alcançar - “desvario” – ato de loucura, delírio Comentários sobre o poema O soneto é constituído de contradições inspirado em um soneto de Petrarca. As contradições são conjuntos de sensações corporais opostas, para realçar o delírio amoroso provocado pela Senhora. Essas sensações exprimem calor, frio, contentamento, tristeza, alteração da percepção de espaço e tempo., ou seja, exprimem sensações contrastantes. A inquietação do poeta é mostrada a partir das contradições manifestadas através do jogo de antíteses e paradoxos (versos 2, 3, 4, 6 e 9) e intensifica os sentimentos através das hipérboles líricas (exageros). Observe que somente o fato de ver a sua “Senhora” desencadeia toda a inquietação do poeta presente no poema. O caráter dramático da composição resulta da constante tensão entre a aparência e a essência, construído pelo sistema de oposição presente no texto: ardor x frio; o mundo todo abarco x nada aperto; alma x ;fogo x rio; espero x desconfio; desvario x acerto;terra x céu. O poeta tem consciência de seu drama, de seu desconcerto: “numa hora acho mil anos, e é de jeito / que em mil anos não posso achar uma hora.” No primeiro verso, o eu lírico afirma a “certeza de sua incerteza”, exprimindo sucessivamente o desconcerto: de ser (“... e é de jeito / que em mil anos não posso achar uma hora.”); de estar (“tremendo estou de frio;...estando em terra, chego ao céu voando”). O eu lírico, ao se interrogar sobre a causa de seu drama (“Se me pergunta alguém porque assi ando”), tem como resultado a negação: “respondo que não sei”. Contudo, sem poder afirmar, o eu lírico desconfia que a resposta está no ver, está no amor: “porém suspeito / que só porque vos vi, minha senhora”. O motivo possível para o desconcerto do poeta é a mulher idealizada, presença de seu imaginário, caracterizada pelo pronome possessivo “minha”, além do caráter evocativo da expressão “minha Senhora”.   Busque Amor novas artes, novo engenho  Busque Amor novas artes, novo engenho,  para matar-me, e novas esquivanças;  que não pode tirar-me as esperanças,  que mal me tirará o que eu não tenho.  Olhai de que esperanças me mantenho!  Vede que perigosas seguranças!  Que não temo contrastes nem mudanças,  andando em bravo mar, perdido o lenho.  Mas, conquanto não pode haver desgosto  onde esperança falta, lá me esconde  Amor um mal, que mata e não se vê.  Que dias há que n'alma me tem posto  um não sei quê, que nasce não sei onde,  vem não sei como, e dói não sei por quê. Vocabulário/Notas - “Busque” – ainda que o amor busque - “novo engenho” – novas artimanhas, artifício, astúcia - “esquivanças” – recusas, desprezos - “perigosas seguranças” – certezas ilusórias, desmentidas pela realidade - “lenho” –embarcação (lenho = madeira - metonímia representada pela substituição da coisa pela matéria de que esta é feita) - “Amor” – quando escrito com letra maiúscula está personificado representando o Deus Amor Comentários sobre o poema Soneto que desenvolve uma visão filosófica do amor. O poeta desenvolve antíteses para construir uma genial definição do amor, mas uma definição feita de indefinições. O eu lírico chega a esta paradoxal definição do amor através de um raciocínio dialético: de um lado, desafia o amor a novamente fazê-lo sofrer, o que demonstra a sua experiência, a sua vivência. Do outro, entretanto, esta vivência, esta experiência são “perigosas seguranças” (oxímoro), o amor as ameaça como um mistério transcendente aos seres humanos – “um mal que mata e não se vê”. Comparando-se a um náufrago (do amor) perdido em “bravo mar”, o poeta afirma, nos quartetos, que é indiferente aos sofrimentos do Amor, que pretende, inutilmente, tirar do poeta o que ele não mais possui – as esperanças. O início dos tercetos, o uso da conjunção adversativa “mas” introduz uma inesperada contradição: mesmo nada mais tendo a temer, dadas a intensidade e variedade dos castigos e sofrimentos que o Amor já lhe impôs, essa certeza vai ser quebrada pelo súbito reconhecimento de que há dias em que a dor do amor é tão estranha, aguda e perturbadora que a consciência não consegue sequer compreender o próprio sofrimento e a certeza que alimentava no início, transforma-se numa impressão de indefinível desespero: “um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei por quê.”. Poucos poetas conseguiram explicar tão expressiva e engenhosamente o estado de desatino e desespero provocado pelo sofrimento amoroso. No primeiro quarteto do poema ocorre a afirmação de que o Amor não pode mais tirar as esperanças do poeta, isso ocorre porque o poeta já não tem mais esperanças. Na segunda estrofe, o poeta não teme nem contrastes, nem mudanças em sua vida, pois leva uma vida perigosa e agitada (provavelmente referindo-se a sua participação nas navegações – “andando em bravo mar, perdido o lenho”. No primeiro terceto (versos 9 e 10), o poeta fala que no seu coração não pode “haver desgosto”, pois quem não tem esperança/ilusão, sendo assim não pode se desiludir. Nos tercetos temos um definição do Amor (é utilizado com inicial maiúscula, pois não representa somente um sentimento, mas uma entidade/deus), que é o “mal que mata e não se vê” (verso 11) seguida de uma explicação desse Amor – “um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei por quê.” (versos 13 e 14). Nos quartetos o eu lírico diz que nenhum mal pode piorar a sua situação (“em bravo mar, perdido o lenho”), mas nos tercetos o mesmo eu lírico afirma que o Amor ainda lhe reserva um mal indefinível.   Amor é um fogo que arde sem se ver  Amor é fogo que arde sem se ver,  é ferida que dói, e não se sente;  é um contentamento descontente,  é dor que desatina sem doer.  É um não querer mais que bem querer;  é andar solitário entre a gente;  é nunca contentar-se de contente;  é um cuidar que ganha em se perder.  É querer estar preso por vontade;  é servir a quem vence, o vencedor;  é ter com quem nos mata, lealdade.  Mas como causar pode seu favor  nos corações humanos amizade,  se tão contrário a si é o mesmo Amor? Vocabulário verso 10 – é o vencedor servir ao vencido versos 11-14 – mas como será que o favor, o bem do amor, pode despertar amizade nos corações dos homens, se o próprio Amor em si mesmo é tão contraditório?  
Análise da formalidade O poema é constituído de catorze versos distribuídos em quatro estrofes: as duas primeiras são quartetos (possuem quatro versos cada) e as duas últimas são dois tercetos (possuem três versos cada), sendo a forma exata do soneto. Neste poema segue a seguinte distribuição das rimas: ABBA, ABBA para os quartetos (rimas opostas ou interpoladas); CDC, DCD para os tercetos (rimas alternadas ou cruzadas). Além disso os seus versos são decassílabos heroicos (sílabas fortes nas sextas e décimas sílabas), como pode ser observado na divisão apresentada abaixo. A-mor- é- fo-go- quear-de- sem- se- ver,  é- fe-ri-da- que- dói,- e- não- se- sen-(te);  é- um – con- ten-ta-men-to- des-con-ten(te),  é – dor – que- de-as-ti-na- sem- do-er.  É um- não- que-rer- mais- que- bem- que-rer;  é – an-dar – so-li-tá-rio - en-trea –gen(te);  é –nun-ca- con-tem-tar-se -de –con-ten(te);  é- um -cui-dar- que- ga-nha em -se- per-der.  É- que-rer- es-tar- pre-so- por- von-ta(de);  é –ser-vir- a- quem –ven-ce,o –ven-ce-dor;  é -ter –com- quem- nos- ma-ta,- le-al-da(de). Observe que os versos decassílabos são classificados em heroicos, com acentos principais nas sextas e décimas sílabas métricas. Nas sextas sílabas métricas também existe a divisão das contradições, ou seja, as primeiras seis sílabas apresenta uma afirmação que é negada pela sua ideia opostas nas sílabas finais de cada verso, constituindo assim os paradoxos que circulam pelo poema todo. Não se esqueça que devemos contar até a última sílaba tônica de cada verso e também há a junção de uma semivogal final de palavra e uma vogal inicial da palavra da sequência (como pode ser visto no último verso apresentado acima). Comentários sobre o poema Este soneto apresenta uma enumeração de definições do amor (versos de 1 a 11) que são antitéticas, formando um jogo de contradições. As definições baseadas nas contradições parecem formar a dualidade entre amor-carne (“fogo que arde”, “ferida que dói”) e o amor-espírito (“sem se ver” / “não se sente”). As oposições apresentadas em cada verso transformam-se num paradoxo final, quando o poeta questiona o caráter contraditório do amor (“se tão contrário a si é o mesmo Amor?”). O poeta procura analisar o sentimento amoroso racionalmente, através de uma operação de fundo intelectual, racional, valendo-se de raciocínios próximos da lógica formal. Mas como o amor é um sentimento vago, imensurável, Camões acaba por concluir pela ineficácia de sua análise, desembocando no paradoxo do último verso. O sentir e o pensar são movimentos antagônicos: o sentir deseja e o pensar limita, e como o poeta não pode separar aquilo que sente daquilo que pensa, o resultado só pode ser o acúmulo de contradições e paradoxos. Os versos apresentam afirmativas que se repetem em enunciados contraditórios (antitéticos e paradoxais). Essas contradições são aparentes porque o segundo membro do verso funciona como complemento do primeiro, especificando-o e tornando-o ainda mais expressivo, quando confronta duas realidades diversas: uma sensível (“ferida que dói”) e a outra espiritual, transcendente (“e não se sente”). Isso ocorre no 1º, 2º, 4º e 5º versos. No 1º verso, por exemplo, o segundo membro (“sem se ver”) significa interiormente; no 2º verso, o “Amor é ferida que dói” (exteriormente) e “não se sente” (interiormente); no 4º verso, o “Amor é dor que desatina” (exteriormente), “sem doer” (interiormente) e, no 5º verso, a noção é a de que não é possível querer mais de tanto que se quer, de tanto que se ama. Mesmo que se tome o referencial fogo, como elemento de contraste entre os dois membros desses versos, este mesmo fogo, contraditoriamente, “arde sem se ver”. Ocorre também uma reiteração do verbo ser no início do 2º ao 10º versos, marcando uma sucessão de anáforas, mas ao mesmo tempo, começa com a palavra “Amor” e termina com ela de forma interrogativa. O poeta tenta definir o que é o amor e não consegue. O amor aparece como conflito interior do poeta e da sua própria existência, que se caracteriza pela sua contradição. O poema, para um melhor entendimento, pode ser dividido em estrofes: 1ª estrofe – apresenta o amor sofrimento, fixa-se nos efeitos corporais da paixão, que exprimem sensibilidade e insensibilidade à dor; 2ª estrofe – apresenta o amor desinteressado, que não enfoca uma amada, mas a forma geral do amor. Exprime a intensidade subjetiva com que o apaixonado entrega-se aos caprichos do amor; 3ª estrofe – apresenta o amor doação, revela a opção do amante por um sentimento que prende, submete e mata; 4ª estrofe – apresenta o aspecto paradoxal do amor, revelando a perplexidade da pergunta que funciona como conclusão: como é possível amar, se o Amor é tão contraditório, instável e impossível de conhecer?   Eu cantarei de amor tão docemente,  Eu cantarei de amor tão docemente,  Por uns termos em si tão concertados,  Que dois mil acidentes namorados  Faça sentir ao peito que não sente.  Farei que amor a todos avivente,  Pintando mil segredos delicados,  Brandas iras, suspiros magoados,  Temerosa ousadia e pena ausente.  Também, Senhora, do desprezo honesto  De vossa vista branda e rigorosa,  Contentar-me-ei dizendo a menor parte.  Porém, para cantar de vosso gesto  A composição alta e milagrosa,  Aqui falta saber, engenho e arte. Comentários sobre o poema Com este soneto o poeta tem a intenção de cantar um amor tão harmônico que é capaz de sensibilizar a todos, inclusive o “peito” de quem “não sente” (versos de 1 a 4), propõe cantar o Amor com tal propriedade, que consiga despertar o sentimento, mesmo em quem não ama. O poeta para cantar esse amor, se dirige a uma “Senhora” que segue os padrões do Renascimento (versos 9 a 11). Mas para o poeta saber cantar um modelo de “Senhora” tão elevado, falta-lhe “saber, engenho e arte” (versos 12 a 14), ou seja, ele é importante para falar do amor, diante do Amor. Ainda que o poeta se esforce em cantar o amor de todos os modos, sua poesia será sempre insuficiente para cantar a composição do gesto de sua Senhora. Nos dois quartetos é apresentado um hino de amor, concebido como energia que anima a tudo que vive. Nos dois tercetos ocorre a celebração da mulher amada, a sua idealização como “Senhora”, que é muito superior à capacidade do poeta cantor. O poeta pretende, como diz no primeiro terceto, conter a expressão do sofrimento despertado pelo desprezo honesto (merecido) do olhar de sua inacessível Senhora. Mas, no último terceto, reconhece a limitação de sua poesia, pois lhe falta saber (conhecimento), engenho (habilidade) e arte (inspiração), para poder exprimir a composição alta e milagrosa do gesto da Senhora, mulher idealizada, perfeita e inatingível. Para entender melhor os tercetos, observe a sua colocação em ordem direta. Primeiro terceto - “Também, Senhora, contentar-me-ei dizendo a menor parte do desprezo honesto de vossa vista branda e rigorosa” Segundo terceto – “Porém, para cantar a composição alta e milagrosa de vosso gesto, aqui falta(m) saber, engenho e arte.”   Transforma-se o Amador na Coisa Amada  Transforma-se o amador na coisa amada,  Por virtude do muito imaginar;  Não tenho logo mais que desejar,  Pois em mim tenho a parte desejada.  Se nela está minha alma transformada,  Que mais deseja o corpo de alcançar?  Em si somente pode descansar,  Pois consigo tal alma está liada.  Mas esta linda e pura semidéia,  Que, como o acidente em seu sujeito,  Assim como a alma minha se conforma,  Está no pensamento como idéia;  O vivo e puro amor de que sou feito,  Como a matéria simples busca a forma. Vocabulário liada – ligada, unida semideia – feminino de semideus, semideusa Comentários sobre o poema O soneto apresenta a concepção platônica do Amor, pois o poeta idealiza e imagina a amada, que já tem em si mesmo (versos 1 e 2), co o um ideal que está presente no sentimento amoroso do próprio poeta (versos 3 e 4). Aquele que ama se transforma na amada, de tanto idealizá-la. Dessa forma, não tem mais o que desejar, pois já tem em si mesmo o ser que deseja (versos 5 a 8). “transforma-se o amador na coisa amada” – com a transformação daquele que ama na coisa amada, faz com que passem (amor e coisa amada) a ser uma só alma. Dessa forma o Amor ultrapassa a dimensão do desejo físico, estando ligado ao espírito. Nessa poesia a mulher também aparece idealizada, inacessível, é a “semidéia”, sendo colocada em um plano superior ao do poeta. Camões concilia a ideia (amor platônico) em forma. Através do pensamento, o apaixonado (amador) se transforma na “cousa amada” (mulher). O racionalismo é evidente na contenção da emoção e do sentimento, que é policiado pela razão, que evita todo o derramamento sentimental desnecessário. O poeta atenua os impulsos do seu eu (sentimento), por uma visão impessoal e universal, que busca o bem, a beleza e a verdade como valores absolutos. O que interessa para o poeta é o Amor e a mulher de forma geral e não particularizados. O amor motiva todas as transformações, da mesma forma que a matéria busca dar forma às coisas (v. 9 a 14) A idealização da mulher não fica bem nítida, pois nele temos o apelo carnal. Neste soneto Camões procura atingir o entendimento dos conceitos do Bem e da Beleza, através da consumação do amor, mas a amada é, ao mesmo tempo, corpo e alma, pois o poeta deseja a plenitude do amor, não apenas o amor idealizado. Os dois quartetos configuram a concepção platônica do Amor. O poeta idealiza e imagina tanto a amada, que já a tem em si mesmo, como ideal, que se corporifica no seu sentimento amoroso e ganha realidade dentro do próprio poeta. Aquele que ama se transforma na amada, de tanto idealizá-la; logo não tem mais o que desejar, pois já tem em si mesmo a ideia do ser que deseja. A incisiva interrogação dos versos 5 e 6 antecipa a afirmação dos versos 7 e 8. Nos tercetos, a ideia platônica da Beleza e do Bem, que a amada desperta em seu espírito, converte-se em uma matéria indefinida, que só objetivando-se numa forma plena e femininamente humana, se consuma em corpo e alma (“como a matéria simples busca a forma”). A partir desse ponto sugiro alguns poemas para vocês lerem e analisarem.   Julga-me a gente toda por perdido Julga-me a gente toda por perdido Vendo-me tão entregue a meu cuidado Andar sempre dos homens apartado E dos tatos humanos esquecido. Mas eu, que tenho o mundo conhecido E quase que sobre ele ando dobrando, Tenho por baixo, rústico, enganado, Quem não é com meu mal engrandecido. Vão revolvendo a terra, o mar e o vento, Busque riquezas, honras a outra gente, Vencendo ferro, fogo, frio e calma; Que eu só, em humilde estado, me contento De trazer esculpido eternamente Vosso fermoso gesto dentro n´alma. ____________________________________________________________________________ Aquela triste e leda madrugada  Aquela triste e leda madrugada,  cheia toda de mágoa e de piedade,  enquanto houver no mundo saudade  quero que seja sempre celebrada.  Ela só, quando amena e marchetada  saía, dando ao mundo claridade,  viu apartar-se d'uma outra vontade,  que nunca poderá ver-se apartada.  Ela só viu as lágrimas em fio  que d'uns e d'outros olhos derivadas  s'acrescentaram em grande e largo rio.  Ela viu as palavras magoadas  que puderam tornar o fogo frio,  e dar descanso às almas condenadas. ____________________________________________________________________________  Doces lembranças da passada glória  Doces lembranças da passada glória,  que me tirou Fortuna roubadora,  deixai-me repousar em paz uma hora,  que comigo ganhais pouca vitória.  Impressa tenho n'alma larga história  deste passado bem que nunca fora;  ou fora, e não passara; mas já agora  em mim não pode haver mais que a memória.  Vivo em lembranças, mouro d'esquecido,  de quem sempre devera ser lembrado,  se lhe lembrara estado tão contente.  Oh! quem tornar pudera a ser nascido!  Soubera-me lograr do bem passado,  se conhecer soubera o mal presente. ____________________________________________________________________________ Com o Tempo o Prado Seco Reverdece  Com o tempo o prado seco reverdece,  Com o tempo cai a folha ao bosque umbroso,  Com o tempo para o rio caudaloso,  Com o tempo o campo pobre se enriquece,  Com o tempo um louro morre, outro floresce,  Com o tempo um é sereno, outro invernoso,  Com o tempo foge o mal duro e penoso,  Com o tempo torna o bem já quando esquece,  Com o tempo faz mudança a sorte avara,  Com o tempo se aniquila um grande estado,  Com o tempo torna a ser mais eminente.  Com o tempo tudo anda, e tudo pára,  Mas só aquele tempo que é passado  Com o tempo se não faz tempo presente. ____________________________________________________________________________ Cara minha inimiga, em cuja mão Cara minha inimiga, em cuja mão  Pôs meus contentamentos a ventura,  Faltou-te a ti na terra sepultura,  Porque me falte a mim consolação.  Eternamente  as águas lograrão  A tua peregrina formosura,  Mas enquanto me a mim a vida dura  Sempre viva em minh’alma te acharão.  E se os meus rudos versos podem tanto  Que possam prometer-te longa história  Daquele amor tão puro e verdadeiro,  Celebrada serás  sempre em meu canto  Porque enquanto no mundo houver memória  Será minha escritura teu letreiro ____________________________________________________________________________ Enquanto quis Fortuna que tivesse Enquanto quis Fortuna que tivesse Esperança de algum contentamento, O gosto de um suave pensamento Me fez que seus efeitos escrevesse. Porém, temendo Amor que aviso desse Minha escritura a algum juízo isento, Escureceu-me o engenho co tormento, Para que seus enganos não dissesse. Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos A diversas vontades! Quando lerdes Num breve livro casos tão diversos, Verdades puras são, e não defeitos... E sabei que, segundo o amor tiverdes, Tereis o entendimento de meus versos! ____________________________________________________________________________ O céu, a terra, o vento sossegado... O céu, a terra, o vento sossegado... As ondas, que se estendem pela areia... Os peixes, que no mar o sono enfreia... O nocturno silêncio repousado... O pescador Aônio, que, deitado onde co’o  vento a água se meneia, chorando, o nome amado em vão nomeia, que não pode ser mais que nomeado: - Ondas (dizia), antes que Amor me mate, tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo me fizestes à morte estar sujeita. Ninguém responde; o mar de longe bate; Move-se brandamente o arvoredo; Lava-lhe o vento a voz, que ao vento deita. ____________________________________________________________________________ Quando de minhas mágoas a comprida Quando de minhas mágoas a comprida maginação os olhos me adormece, em sonhos aquela alma me aparece que para mim foi sonho nesta vida. Lá numa soidade, onde estendida a vista pelo campo desfalece, corro para ela; e ela então parece que mais de mim se alonga, compelida Brado: Não me fujais, sombra benina! Ela, os olhos em mim com um brado pejo, como quem diz que já não pode ser, torna a fugir-me. E eu gritando: “Dina...” antes que diga “mene”, acordo, e vejo que nem um breve engano posso ter. ____________________________________________________________________________ Sempre a Razão vencida foi de Amor Sempre a Razão vencida foi de Amor; mas, porque assim o pedia o coração, quis Amor ser vencido da Razão. Ora que caso pode haver maior! Novo modode morte e nova dor! Estranheza de grande admiração: que perde suas forças a afeição, por que não perca a pena a seu rigor. Pois nunca houve franqueza no querer, mas antes muito mais se esforça assim um contrário com outro, por vencer. Mas a Razão, que a luta vence, enfim, não creio que é Razão; mas há-de ser inclinação que eu tenho contra mim. ____________________________________________________________________________ Ah, minha Dinamene, assim deixaste Ah, minha Dinamene, assim deixaste quem não deixara nunca de querer-te! Ah! Ninfa minha, já não posso ver-te, tão asinha esta vida desprezaste! Como já para sempre te apartaste de quem tão longe estava de perder-te? Puderam estas ondas defender-te que não visses quem tanto magoaste? Nem falar-te somente a dura morte me deixou, que tão cedo o negro manto em teus olhos deitado consentiste! Oh mar, oh céu, oh minha escura sorte! Que pena sentirei, que valha tanto, que ainda tenho por pouco o viver triste? Tu, só tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.  
MANUEL BANDEIRA                 MANUEL BANDEIRA  
Vou-me embora pra Pasárgada   Vou-me embora pra PasárgadaLá sou amigo do reiLá tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconseqüente Que Joana a Louca da Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d`água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar –Lá sou amigo do rei –Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. Vocabulário Contraparente: parente muito afastado; parente afim. Alcalóide: substância química encontrada nas plantas que, entre outros fins, serve para a fabricação de drogas. Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho (1886-1968) compõe, juntamente com Oswald e Mário de Andrade, a tríade maior da primeira fase modernista, responsável pela divulgação e pela solidificação do movimento em nosso país. O poeta nasceu em Recife, fez os estudos secundários no Rio de Janeiro e iniciou o curso de Arquitetura em São Paulo, mas foi obrigado a abandoná-lo em virtude de uma crise de tuberculose que nele se manifestara em 1904. Trata-se em várias cidades do país e na Suíça ( no sanatório de Clavadel), entre 1916 e 1917, onde conhece o jovem e mais tarde famoso escritor dadaísta e surrealista francês Paul Éluard, internado na mesma clínica. Éluard coloca Bandeira a par das inovações artísticas que vinham ocorrendo na Europa e discute com o nosso poeta as possibilidades do verso livre na poesia. Esse aspecto técnico já fazia parte das preocupações de Bandeira, que hoje é considerado o mestre do verso livre no Brasil. Em virtude da I Guerra Mundial, Bandeira interrompe seu tratamento e retorna ao Brasil. Daí por diante e até 50 anos, viveu em estado de quase invalidez, juntando o montepio de seu pai com o que lhe rendiam as críticas de arte e as esporádicas colaborações em jornais. Foi professor de Literatura do Colégio Pedro II e de Literatura Hispano-Americana da Faculdade Nacional de Filosofia no Rio de Janeiro( hoje, UFRJ). Em 1940, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras. Solteirão convicto, fez de sua casa um centro de reuniões boêmias até o fim da vida. Além de poeta e cronista, foi tradutor de Shakespeare, Schiller, Omar Khayajan, Goethe etc. Os temas mais comuns de sua obra, marcada pela experiência da doença e do isolamento advindo dela, são, entre outros, a paixão pela vida, a morte, o amor e o erotismo, a solidão, a angústia existencial, o cotidiano e a infância. Embora pressentisse a chegada da morte a qualquer instante e vivesse cada dia apaixonadamente, como se fosse o último, Bandeira viveu 82 anos, e sua obra é um rico testemunho da poesia brasileira do século XX, envolvendo criações que vão de um pós-Parnasianismo e de um pós-Simbolismo às experiências concretistas das décadas de 1950 e 1960. Poeta do coloquial e do prosaico, Bandeira sabia enxergar mais além. E seu trabalho com a linguagem, no sentido de buscar sempre o estritamente necessário para a comunicação, tem como resultado uma poesia que caminha para o despojamento, desde sua estréia em 1917, com Cinza das horas. Em Carnaval(1919), explica Sérgio Buarque de Holanda: ´´sua voz faz-se satirizante com ´Os sapos`, poema que seria uma espécie de hino nacional dos modernistas``. O prosaísmo de Bandeira começa a emergir com mais frequência em Ritmo dissoluto (1924). Mas é com Libertinagem (1930) que se pode ver a consolidação de sua poesia (definitivamente modernista). Nela encontramos a renovação da linguagem, a fuga do ´´belo``tradicional em poesia, a incorporação da linguagem coloquial e popular e a temática do dia-a-dia. Alguns poemas desse livro são fundamentais para se entender a trajetória poética de Bandeira, como por exemplo, ´´Vou-me embora pra Pasárgada``. Este poema incorporou-se de tal forma à alma nacional, que em todos os momentos, seja de superação de uma angústia individual, seja de desejo coletivo de um mundo com brilho e sem mediocridade, evoca uma sugestão de tal grandeza que já se tornou um arquétipo do povo. Em sua autobiografia lírica – Itinerário de Pasárgada – Manuel Bandeira afirma ter lido esse nome num autor grego, identificando uma cidade da antiga Pérsia fundada por Ciro, o antigo: “Quando eu tinha os meus 15 anos e traduzia na classe de grego do Pedro II a ‘Ciropédia’, fiquei encantado com esse nome de uma cidadezinha fundada por Ciro, o Antigo, nas montanhas do sul da Pérsia, para lá passar os verões (...) Esse nome de Pasárgada, que significa´ campo dos persas` ou ´tesouro dos persas`, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delicias, como o de ´L`invitation au Voyage`de Baudelaire .Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo , num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensação do tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: "Vou-me embora pra Pasárgada!" Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas fracassei (...) Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da "vida besta". Desta vez o poema saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim." Em “Vou-me embora pra Pasárgada”, Manuel Bandeira transfigura poeticamente a famosa cidade fundada por Ciro, utilizando-a como metáfora da felicidade. O coloquialismo, os versos em redondilha maior (verso de 7 sílabas poéticas distribuídas em 5 estrofes ) e a repetição do verso "Vou-me embora`` remetem-nos à poesia popular. É interessante ressaltar que a simples leitura do texto já nos convence de que se trata de um poema filiado ao Modernismo. Observe o emprego de certas expressões da cultura popular (´´brabo``, ´´pra``, ´´no tempo de eu menino``) e a ausência da pontuação tradicional. Logo na 1.ª estrofe, observamos, em outra perspectiva, a recuperação da temática romântica do escapismo. O eu lírico demonstra o seu desejo de buscar um lugar imaginário e ideal para viver como forma de fuga do plano real, com a finalidade de libertar-se das limitações da vida presente. Há uma relação entre esse ´´desejo`` e a biografia do poeta. Pode-se dizer que Manuel Bandeira, sendo um rapaz muito doente, não pode gozar a vida como desejaria. Através da poesia, porém, ele cria um mundo de sonhos, a sua Pasárgada, onde tudo se transformam em realidade. A opressão, a solidão e a doença conduziram-no à busca da evasão, à procura do lugar ideal, onde praticamente tudo seria possível, principalmente quando se é ´´amigo do rei``. Pasárgada é a criação de um espaço mágico, onde a simples vontade torna-se lei (´´Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei``), e corresponde ao desejo de ter em sonho o que não se pode ter na vida real. É como uma espécie de compensação das frustrações da vida quotidiana. A negação do mundo concreto e a idealização de uma realidade melhor, lembra indiretamente a postura de alguns escritores do Romantismo. Aliás, a oposição entre os advérbios de lugar aqui e lá (antítese), em torno da qual se constrói o poema, também faz lembrar a ´´Canção do exílio``, do romântico Gonçalves Dias. Dentro desta perspectiva, aqui refere-se à realidade concreta do poeta( tempo e espaço); lá identifica o sonho, a utopia do eu lírico que, negando este mundo chato e mofino, percorre vastidões da fantasia, ainda que seja para cair na loucura, pois, como afirmava Voltaire, ´´quem quiser fundar alguma coisa de grande deve começar por ser completamente louco``. Pasárgada é um mundo suprarreal, que existe apenas na imaginação e, para inventá-lo, é necessário quebrar as amarras da lógica e da razão e deixar-se levar pela utopia. Na 2.ª estrofe, o non sense, isto é, a falta de lógica( a loucura, o irracionalismo) aparece principalmente no verso ´´Que Joana a louca de Espanha/ Rainha e falsa demente/ Vem a ser contraparente/ Da nora que nunca tive``. Em Pasárgada, os loucos e alienados podem assumir suas contradições e fantasias, o que reafirma o caráter excepcional desse reino imaginário. O fato do poeta misturar os personagens da História, demonstra um requinte de ironia dentro da sua poesia. No estudo da obra de Bandeira, o dado biográfico é marcante. Muita coisa de sua vida ficou truncada pela doença, como ele próprio diz: ´´Tuberculose era chamada, na minha época, de a doença que não perdoa... `` Mas em Pasárgada ´´a existência é uma aventura`` (metáfora).  Na 3.ª estrofe, o eu lírico, devidamente refugiado no mágico Éden imaginário, projeta uma série de ações insignificantes(´´andar de bicicleta``, ´´subir em pau-de-sebo``,´´nadar no mar``etc.), mas que compõem o cotidiano de um menino sadio( tradução de sensações jamais experimentadas). É o retorno psicológico à infância, referida aqui como marca de um tempo feliz e de liberdade . A lendária figura da mãe-d`água surge como opção para lhe contar histórias, exercendo o papel de Rosa, mulata clara que serviu de ama-seca a Bandeira e a seus irmãos quando meninos. Em ´´Itinerário de Pasárgada, o poeta comenta: ´´Quando estávamos a noitinha no mais aceso das rodas de brinquedo, era hora de dormir, vinha ela e dizia peremptória: Leite e cama! E íamos como carneirinhos para o leite e para a cama. Mas havia, antes do sono, as histórias, que Rosa sabia contar tão bem...`` Na 4.ª estrofe, o eu lírico, inconformado com o real concreto, enumera um conjunto de vantagens que esta ´´outra civilização``oferece: o sexo livre (namorar prostitutas à vontade), consumir alcalóides, telefone sem o auxílio da telefonista e método seguro de anticoncepção. Enfim, Pasárgada é um lugar moderno( progresso e tecnologia); uma nova percepção do tempo e do espaço, uma nova permeabilidade para uma revisão do mundo material. Pasárgada é o reino da permissividade, sem interdições de qualquer ordem. A intimidade com o dono do poder (´´Lá sou amigo do rei``)coloca o eu lírico a salvo dos problemas imediatos da vida prática, ao mesmo tempo que lhe permite a expansão plena de seus instintos e ambições ( não há proibições, regras de lógica e de moral). Nesse poema, Bandeira busca a utopia, a evasão, o lugar onde possa realizar-se, onde fuja da morte . Em Pasárgada o “eu lírico” se confunde, se mistura com o próprio poeta. Protegendo-se nela, através do eu lírico, o poeta, na 5.ª estrofe, evita a vontade de se matar( provavelmente por uma depressão; por um desânimo causado pela doença). Pasárgada surge como um delicioso refúgio, onde o prazer e a liberdade se tornam infinitos e os desequilíbrios da vida adquirem uma nova conotação. É curioso registrar que neste ´´jardim das delícias`` não há a menor referência à ideia de paraíso enquanto exaltação da flora e da fauna, mitos edênicos tradicionais. A cidade real de Pasárgada foi fundada por Ciro quase quinhentos anos antes de Cristo, para ser a capital do Império Persa. Suas ruínas ainda podem ser visitadas, no Irã, a aproximadamente 70 quilômetros da não menos famosa Persépolis. No entanto, como o afirma o próprio poeta... “Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e não como forma imperfeita neste mundo de aparência, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim, a minha Pasárgada. ”  Nelson Souzza  





CAMÕES :

O canto X


O canto X não foge à norma estabelecida. [9] É mesmo o canto em que mais longo se estende o excurso pelas doze oitavas finais. A primeira, dirigida à Musa, é o que se poderia chamar uma desinvocação, pois que, ao invés de chamá-la em seu auxílio, o Poeta diz-lhe: "No'mais, Musa, no'mais" (X, 145), no momento climático de desalento e desilusão. Nas seguintes, é ao rei que se dirige, concitando-o a olhar: "Olhai que sois (e vede as outras gentes) / Senhor só de vassalos excelentes." (X, 146) ; "Olhai que ledos vão, por várias vias, / [...] / Dando os corpos a fomes e vigias, [...] / A perigos incógnitos do mundo, / A naufrágios, a pexes, ao profundo!" (X, 147). Esses vassalos estão, "Por vos servir, a tudo aparelhados" (X,148). O aconselhamento prossegue com imperativos: "favorecei", repetido (X, 149 e 150); "tende em muita estima" (X, 151).

         Se, pouco antes, dissera dos portugueses que estão, "Por vos servir, a tudo aparelhados", dirá agora: "Pera servir-vos, braço às armas feito; / Pera cantar-vos, mente às Musas dada" (X, 155). Armas e engenho, põe-nos à disposição do rei, para lutar ao seu lado e para cantá-lo, se "Dina empresa tomar de ser cantada" (X, 155).
A  variedade  de  narradores não dá ao leitor uma múltipla visão dos fatos, uma visão estereoscópica, como diria Todorov [10] , porquanto o Narrador1 os utiliza como processos retóricos, disfarçando-se por trás deles: é a sua própria visão que se acentua, sem se alargar. Em relação ao amor, por exemplo, vemos uma mesma compreensão e simpatia no Narrador2, ao desculpar D. Fernando, e na Ninfa da Ilha dos Amores, achando severo o castigo que seria aplicado em Rui Dias porque "a fraca humanidade e Amor desculpa" (X, 46). Esses sentimentos são o eco do juízo que faz do amor o Narrador1: "Milhor é exp'rimentá-lo que julgá-lo, / Mas julgue-o quem não pode exp'rimentá-lo" (IX, 83).
Se estamos certa de que, grosso modo, não há divergência entre as visões dos narradores, não o estamos menos de que, ao longo do poema, a visão do Poeta permanece a mesma quando se volta para os problemas humanos em geral, mas sofre profunda modificação quando enfoca a ideologia vigente. Aqui, faz-se necessário explicitar o que entendemos por ideologia vigente no Portugal em que se cria o poema: é uma ideologia mista de feudalismo e humanismo, que se completam e contradizem, aquele mais arraigado, este ainda inovador, ambos plasmando o Mesmo do autor (usamos o termo como Foucault). [11]
Um notável crítico de Camões, António José Saraiva, apresenta o Poeta "entre a ideologia feudal e a cultura humanística" [12] , sem nessa altura chamar a esta ideologia. Não temos dúvida em fazê-lo, pois que "les pensées dominantes ne sont rien de plus que l'expression idéologique des rapports matériels dominants conçus sous forme de pensées" [13] e que a ideologia é um sistema de representações, teoria que pretende trazer um saber rigoroso, no domínio político, moral, filosófico, religioso [14] . Assim, teríamos Camões submetido a três diversos pensamentos dominantes: o que condiciona a narrativa épica às regras do gênero e as duas ideologias acima citadas.
Obedecendo às regras, irá iniciar sua narrativa in medias res [15] , com a viagem - seu fio condutor - avançada, bem próxima de Melinde, onde o herói terá de narrar os antecedentes da sua aventura. E Camões, consciente de que a conquista do mar é resultante de séculos de preparação das virtudes que enrijam o homem, faz de Vasco da Gama o narrador de toda a história de Portugal e não apenas de uns breves antecedentes do feito, como acontece com os heróis de Homero e Vergílio. Isso era o que prometera na Proposição onde, em vez de um varão, encontram-se os "barões assinalados" - navegantes, primeiro, e em seguida soldados, colonizadores, reis, enfim todos que ganharam a imortalidade. É de notar-se que ele se preocupou com a veracidade da história, ao fazer dela matéria do poema, quando poderia ter seguido a Aristóteles, que escrevia: "la obra propia del poeta no es tanto narrar las cosas que realmente han sucedido, cuanto contar aquellas cosas que podrian haber sucedido, y las cosas que son posibles, según una verosimilitud o una necessidad" [16] . Tal preocupação se explica, porém, porque a verdade do que narra é uma das qualidades básicas do poema, ressaltada pelo Poeta na Dedicatória:
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas.
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas (I, 11),
e reafirmada por Vasco da Gama ao rei de Melinde:
A verdade que eu conto, nua e pura,
Vence toda grandíloca escritura. (V, 89)
A verdade dirá respeito à história propriamente dita, mas também à viagem: naquela, são apresentadas sobretudo façanhas bélicas cujos heróis são os cavaleiros, representantes de uma sociedade feudal; nesta, a superação da própria condição humana ("mais do que prometia a força humana", I, 1) pelo homem, centro do universo, numa concepção humanística.
No nível do narrado, pois, o autor se prende às ideologias, mas o fato de repousar sobre um ideológico duplo, não uno, já cria uma certa ambigüidade que enriquece o poema. No nível do comentado - os excursos - pode-se em parte considerar [17] que o Poeta também se prende à estrutura feudal, revelando-se solidário com as responsabilidades da nobreza ou defendendo o povo, como qualquer cavaleiro o faria, e se revela humanista quando considera que o poema épico vale muito mais que os feitos militares, ou quando dá conselhos ao rei ou aos ministros. Só em parte aceitamos a posição ideológica do Poeta nos excursos que, como dissemos atrás, são algumas vezes inseridos nas narrativas secundárias ou em um discurso como o do Velho do Restelo. Muitos deles, embora basicamente ideológicos, deixam de sê-lo pela sua própria inserção na epopéia para questioná-la, o que provoca uma inversão de posições. A matéria épica era indiscutível: ali estava para ser celebrada e não contestada.
É este o momento de retomarmos o nosso ponto de partida: a relutância em aceitar que os excursos do Poeta só informassem sobre o ser dos actantes. Na verdade informam também, e largamente, sobre o ser do Poeta (não se esqueça de que o que aqui chamamos Poeta é o locutor não narrador). Vejamos como: na Proposição e Dedicatória, partes essenciais da epopéia tradicional, não há inovação, senão alongamento; nelas, como na Dedicatória que acrescentou, o Poeta é altamente laudatório e está penetrado da euforia do canto. Outras invocações, porém, se farão necessárias ao longo do poema, a cada nova dificuldade que se apresenta - Vergílio fizera assim. Depois da primeira, às Tágides pátrias:
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente (I, 4),
virá, à entrada da história narrada por Vasco da Gama, a segunda, a Calíope:
Agora tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama:
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal que tanto te ama. (III, 1).
Pela terceira vez, o Poeta pedirá ajuda, e já agora às Ninfas do Tejo e do Mondego, para que o inspirem na descrição das bandeiras, feita por Paulo da Gama ao Catual (novamente a história portuguesa). O tom, entretanto, é outro. O imperativo de ordem - "Dai-me agora um som alto e sublimado", "Agora tu, Calíope, me ensina" - desapareceu. Em lugar dele, o pedido:
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo,
Que o meu fraco batel se alague cedo. (VII, 78).
E, em vez de passar diretamente ao contexto épico - as bandeiras -, detém-se o Poeta no relato das suas desventuras, queixando-se do destino:
Olhai que há tanto tempo que cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos,
Agora o mar, agora exp'rimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cánace que à morte se condena,
Nua mão sempre a espada e noutra a pena;
 
Agora com pobreza avorrecida
Por hospícios alheios degradado;
Agora da esperança já adquirida
De novo mais que nunca derribado;
Agora às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se
Que pera o Rei Judaico acrescentar-se. (VII, 79-80)
Não só do destino, mas da ingratidão dos homens - e homens altos o bastante para lhe poder dar o que recusaram:
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem.
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram
Com que em tão duro estado me deitaram. (VII, 81).
A queixa se acentua, torna-se mais agressiva:
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assi sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória
Que merecerem ter eterna glória. (VII, 82)
e o Poeta afirma sua posição independente de cantor do justo e do direito, acusando os hipócritas, os interesseiros, os opressores do povo.
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Anteposer seu próprio interesse,
Imigo da divina e humana lei.
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;
 
[...]
 
Nem quem acha que é justo e que é dereito
Guardar-se a lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende, e cuida que é prudente,
Pera taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa. (VII, 84-6).
Ao iniciar-se o último canto, a Ninfa da Ilha dos Amores e Tethys vão profetizar as coisas da Índia (mais uma vez - a última! - a história de Portugal) e novamente o Poeta, diante da grandeza do assunto, pede inspiração a Calíope. A depressão que apresentara na invocação anterior parece ceder depois do longo desabafo e da confiança expressa na sua última estrofe:
Apolo e as Musas que me acompanharam
Me dobrarão a fúria concedida. (VII, 87).
Agora a tristeza é mais profunda, e o cantor quer apenas desobrigar-se da missão; o próprio engenho, que o enchia de esperança no limiar do poema, já não lhe dá confiança:
Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
 
Vão os anos decendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha
Das Musas, co que quero à nação minha. (X, 8-9).
Duas vezes recorrera às Ninfas pátrias, promovidas a musas; duas vezes a Calíope, inspiradora da epopéia. Com entusiasmo e alor, primeiro; depois, com desconfiança e cansaço. E sua última palavra à Musa (não esta ou aquelas, apenas Musa) é a dizer-lhe que basta, que é o momento de calar. Diz-lhe aquele mesmo "no'mais" com que se dirigiu à canção, em "Vinde cá, meu tão certo secretário"; nesta, porque iria "falando, / Sem o sentir, mil anos"; na epopéia, porque perdeu o estímulo para cantar:
No'mais, Musa, no'mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cubiça e na rudeza
De ua austera, apagada e vil tristeza. (X, 145).
Quer calar-se o Poeta: sua voz não tem mais "um som alto e sublimado", está "enrouquecida"; a cítara que cobiçara de Homero é "lira destemperada". Pouco antes, vendo que perdia o gosto de escrever (X, 8), ainda procurava cumprir o dever que se atribuía para com a pátria; agora a vê "metida / No gosto da cubiça e na rudeza / De ua austera, apagada e vil tristeza".
Através das invocações, onde fica bem clara a enunciação pela presença dos pronomes da 1a pessoa do singular, pela tensão entre o emissor e o receptor, pelas referências do sujeito a seu enunciado [18] , pode-se traçar uma linha descendente da enunciação que, confundindo-se na origem com a do enunciado, vai-se descolando dela até ao momento do calar-se: "No'mais, Musa, no'mais". É bem verdade que, ao calar este canto, o Poeta abre a possibilidade de novo canto, se nova empresa o merecer. A nova empresa, a que o Poeta concita o jovem rei, é a guerra na África do Norte e essa sua atitude final viria confirmar-lhe a adesão a "o triunfo de um sector arruinado ou insatisfeito da nobreza" [19] .
Confrontemos rapidamente a Dedicatória e o Epílogo. Na primeira, o jovem rei é qualificado como a
[...] bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade (I, 6),
"novo temor da maura lança" (Ib.), "Maravilha fatal da nossa idade" (Ib.), "poderoso Rei" (I, 8), "Sublime Rei" (I, 15); seu
      [...] alto Império
O Sol logo em nascendo vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando dece o deixa derradeiro (I, 8),
e o Poeta diz que não se atreve a cantá-lo ("não me atrevo a tanto", I, 15). No Epílogo, a fala é quase tão extensa quanto a da Dedicatória, mas o que o rei ouve não são louvores, mas conselhos de bem governar e, por fim, o oferecimento do canto se "o vosso peito / Dina empresa tomar de ser cantada" (X, 155). Equilibrado em sua estrutura, o poema começa por uma Proposição do que vai ser cantado, porque já se realizou, e termina por uma proposição hipotética do que, se se realizar, será cantado. Como já assinalamos, Camões tem consciência de que é mais importante o poema que o feito heróico, e o fecho d'Os Lusíadas o acentua: os versos finais unem a ambos, mas a última palavra é para o valor do poema. Na repetição do processo se patenteia a dependência do fato histórico em relação à arte, pois que só essa lhe dá a dimensão de eternidade. O não compreender a importância da arte desmerece o homem e disso o Poeta acusa o próprio Vasco da Gama, no momento em que este acaba de fazer sua extensa narrativa:
[...] ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga,
Nem as filhas do Tejo que deixassem
As telas d'ouro fino e que o cantassem (V, 99).
Essa crítica ao herói-síntese do poema é tanto mais grave quanto, nas estrofes anteriores, o Narrador1, cessada a voz do Gama, depois de acentuar o encanto e admiração de que ficaram tomados os melindanos ao ouvir tais verdades, passa a palavra ao Poeta para que este, tomando (como sempre faz) o exemplo dos antigos, diga que
Enfim, não houve forte capitão
Que não fosse também douto e ciente
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
D'algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
 
Por isso, e não por falta de Natura,
Não há também Virgílios nem Homeros:
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Enéias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão Austeros,
Tão rudos e de ingenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso. (V, 97-98)
Mais amplamente direcionada é a crítica feita pela voz do Velho do Restelo que se faz ouvir, num episódio de grande beleza, sobre o qual, todavia, os críticos não estão de acordo: na verdade, não é fácil aceitar, no poema épico, cujo núcleo narrativo é a viagem marítima, que, no exato momento em que ela se vai iniciar, uma voz se levante e a condene, numa extensa fala que ninguém contesta e que tem a reforçá-la, a torná-la mais válida e tocante, o duplo lamento das mães e das esposas: "Por que de mi te vás, ó filho caro, / A fazer o funéreo enterramento / Onde sejas de pexes mantimento?" (IV, 90) e
[...] Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição, tão doce, nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento? (IV, 91).
Mães e esposas são acompanhadas de velhos e meninos nas lágrimas com que banham a areia: sua fraqueza e o abandono em que são deixados apóiam as palavras do "velho de aspeito venerando" (IV, 94).
Para a maioria dos comentadores do poema, o Velho sintetizaria os juízos daquela parte do povo português que se opunha aos descobrimentos, e o Prof. Hernâni Cidade  acentua que a repreensão vai mais longe, a "todos os anelos de ultrapassar quaisquer vedados términos" [20] e, apontando para a contradição entre "o autor do discurso que condena a largada e o autor das oitavas que exaltam a dilatação, que a tornava necessária, da Fé e do Império" [21] , conclui que
[...] o Poeta se mostra o homem que, no fim do século, depois de todas as experiências pessoais e das registradas na História trágico-marítima, não pode ter, em face da empresa, das suas conseqüências históricas, do seu significado humano, o orgulho optimista do momento em que ela foi iniciada [22] .
Para Saraiva,
Camões inventou esta personagem para emitir certas sentenças, para firmar certa ideologia característica da sua formação humanista [....] O Velho do Restelo é o próprio Camões erguendo-se acima do encadeamento histórico e medindo à luz dos valores do humanismo europeu os acontecimentos por que se apaixona o vulgo e de que ele mesmo se faz cantor [23] .
Assim, pois, para estes dois ilustres camonistas o Velho é o próprio Camões. É também o que achamos, corroborando essa aproximação pelo confronto entre a qualificação atribuída ao Velho e a que o Poeta se atribui e aos que mais devem merecer do rei, no canto X. Além de alguma coisa do aspecto e atitude exterior do Velho do Restelo, só nos diz o narrador que "Cum saber só d'experiências feito / Tais palavras tirou do experto peito" (IV, 94); pois nos conselhos que dá a D. Sebastião no Epílogo do poema, vemos: "Os mais exp'rimentados levantai-os, / Se com a experiência têm bondade" (X, 149); logo adiante:
Tomai conselhos só d'exp'rimentados,
Que virão largos anos, largos meses,
Que posto que em cientes muito cabe,
Mais em particular o experto sabe. (X, 152).
Experiência é o que lhe não falta, inclusive a da "disciplina militar prestante" (X, 153) e, embora se diga "humilde, baxo e rudo, / De vós não conhecido nem sonhado" (X, 154), afirma, sem falsa modéstia:
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente. (X, 154).
Em outros pontos d'Os Lusíadas encontramos o louvor da experiência como qualidade básica, capaz de pôr em xeque a própria ciência, como nos versos que encerram o episódio da tromba marinha: "Vejam agora os sábios na escritura / Que segredos são estes de Natura" (V, 22), ou nesses que acabamos de citar: "posto que em cientes muito cabe, / Mais em particular o experto sabe".
A experiência, denominador comum, revelaria o assumir o Poeta a fala do seu personagem, e nisso fica nossa concordância. Quanto aos motivos da criação do personagem, aceitamos com reservas o que diz Saraiva, ao pôr em relevo o aspecto humanístico do Poeta, "não lhe faltando sequer o desdém pelo vulgo" [24] que ele vê na depreciação da "aura popular" ou do "povo néscio". Podemos estar errada, mas não entendemos popular como do povo, se este for apenas uma classe social, mas do povo como coletividade global, onde a fama se espalha; vejamos o texto:
Ó glória de mandar! Ó vã cubiça
Desta vaidade a que chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se chama! (IV, 95).
Procedendo como atrás, buscamos outros empregos do adjetivo no poema [25] ; só o encontramos mais duas vezes: falando de Afonso VI, de Leão e Castela, o Poeta começa por louvá-lo pela guerra aos sarracenos, também louvando os que, de toda parte, vêm lutar sob sua bandeira:
Muitos, pera na guerra esclarecer-se
Vinham a ele e à morte oferecer-se.
 
E com um amor intrínseco acendidos
Da Fé, mais que das honras populares (III, 23-4);
mais adiante, referindo-se à atuação de Nun'Álvares na batalha de Aljubarrota, mostra como reagiram todos ao calor de sua exortação:
Removem o temor frio, importuno,
Que gelados lhe tinha os corações.
[...]
 
Das gentes populares uns aprovam
A guerra com que a pátria se sostinha;
Uns as armas alimpam e renovam,
Que a ferrugem da paz gastadas tinha;
Capacetes estofam, peitos provam;
Arma-se cada um como convinha;
Outros fazem vestidos de mil cores
Com letras e tenções de seus amores. (IV, 21-2)
Estes últimos sãos os componentes da Ala dos Namorados, jovens fidalgos que lutaram bravamente ao lado de Nun'Álvares e que Camões inclui entre uns e outros "Das gentes populares".
Outro adjetivo cuja interpretação contestamos é néscio, em que não vemos o desdém do humanista; o Velho, invectivando duramente o desejo de fama que é a perdição dos homens, diz: "Chamam-te Fama e Glória soberana, / Nomes com quem se o povo néscio engana!" (IV, 96). Também o Adamastor, sabendo-se cruelmente ludibriado por Thetis, usa o adjetivo referido a si mesmo: "Já néscio, já da guerra desistindo" (V, 55). O povo e o gigante, igualmente néscios, igualmente enganados. Ainda é chamado néscio, por Baco, o povo humano (em VIII, 49, v. 8, sem nenhuma referência a classe), porque está sendo atraído à nova lei de Cristo, o que, no conceito do deus do vinho, significa que é facilmente ludibriável. Nos três exemplos, pois, o significado "que não sabe", "ignorante", está associado a "que está" ou "pode ser enganado".
Até aqui viemos "cometendo / O duvidoso mar num lenho leve" (I, 27), a desviar-nos - ainda que pouco - das rotas já percorridas. É tempo de fixar a nossa, esclarecendo os desvios que foram sendo assinalados, e justificando-os, se ainda o não foram.
O primeiro desvio alongou o caminho a percorrer, para mais plenamente conhecer o poema, indo além do conhecimento dos actantes (quase sempre no nível do enunciado) para o do Poeta (no nível da enunciação). As outras mudanças de direção se fizeram em relação ao pensamento de Cidade e Saraiva: do primeiro nos afastamos um quase nada, quando, em passagem que citamos a propósito do Velho do Restelo, diz que, "em face da empresa, das suas conseqüências históricas, do seu significado humano", o Poeta "não pode ter o orgulho optimista do momento em que ela foi iniciada", e isso porque encontramos muitas vezes no poema, na fala do Poeta ou na de seus narradores ou personagens, a manifestação plena desse orgulho da empresa marítima. De Saraiva nos distanciamos um pouco mais: não aceitando o desdém humanístico de Camões "pelo vulgo" (como já vimos), nem que Camões cante uma matéria "com a qual de modo algum se identifica" [26] (por motivo semelhante ao que acabamos de expor, referindo-nos a Hernâni Cidade), nem tampouco que o "reservar constantemente a sua liberdade de juízo" [27] deva-o o Poeta ao fato de ser um humanista [28] . Falta-nos justificar esta última divergência e esperamos que, fazendo-o, esclareçamos conclusivamente o ponto de vista que foi sendo apresentado ao longo de toda a exposição.

A liberdade de juízo que Camões patenteia na epopéia lhe vem, em parte, de sua qualidade de humanista, mas também, e sobretudo, da de homem inserido numa época de crise, capaz de avaliar a grandeza do esforço realizado, identificando-se com ele no que encerra de afirmativo do homem superador da própria condição, mas capaz também de enxergar-lhe o outro lado, o que irrompe dos relatos da história trágico-marítima; capaz de sentir que o grande momento de Portugal já passou, mas existiu, em toda a plenitude da empresa que utilizou o homem integral - o da ciência, da técnica e da ação. Essa liberdade de juízo, porém, poderia não ter sido conservada pelo Poeta que criava uma epopéia - narrativa de feitos positivamente apresentados, sem questionamento, destinada à exaltação de um povo. E aqui está uma das razões da grandeza do poema que, à medida que se faz, questiona não somente o contexto que utiliza, mas o próprio enunciado que consagra este contexto. A matéria épica, apesar da visão crítica do Poeta, apesar das tremendas acusações do Velho do Restelo, permanece válida mas não indiscutida: há pelo menos duas verdades possíveis.
Serão, por isso, Os Lusíadas menos epopéia que a Odisséia ou a Eneida? Nem menos, nem mais. Os Lusíadas são a epopéia de novos tempos, tempos contraditórios. Alimentado de tais contradições, o poema adquire modernidade e se afirma como a única epopéia representativa do Renascimento europeu.
[1] JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Les Editions de Minuit, 1963, p. 214.
[1] ARISTÓTELES. Poética. In: Obras. Madrid: Aguilar, 1967, p. 102.
[1] Embora o Orlando furioso (assim como o Orlando enamorado, de Boiardo)
[1] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572.
[1] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: Portugália, 1968, p. 13.
[1] SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147.
[1] NOIRAY, André. La philosophie, 2e. éd. Paris: Centre d'études et promotion de la lecture, 1969, p. 265.
[1] HORACE. Art poétique. In: Oeuvres, texte latin, 13e. éd. Paris: Hachette, s.d., p. 599, v. 148.
DUBOIS, J. "Enoncé et énontiation". In: Langages (13), Mars, 1969. Paris: Didier/Larousse, pp. 100-110.
[1] CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico, 2. ed. melhorada. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.
Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, feito sob a orientação de A. G. Cunha; edição do Instituto Nacional do Livro, 3 vol., Rio de Janeiro, 1966.



[1] Anazildo Vasconcelos da Silva que, em 1972, cursava o Mestrado em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde a autora ministrava a disciplina "Camões épico e lírico", em homenagem ao quarto centenário da publicação d'Os Lusíadas.
[2] JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Les Editions de Minuit, 1963, p. 214.
[3] ARISTÓTELES. Poética. In: Obras. Madrid: Aguilar, 1967, p. 102.
[4] Embora o Orlando furioso (assim como o Orlando enamorado, de Boiardo) seja mais um romance de cavalaria do que propriamente um poema épico, citamo-lo aqui porque é considerado como uma das epopéias do Renascimento.
[5] Quanto à ortografia aqui usada, cf. Prefácio: "Critérios de transcrição".
[6] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572. Todas as cita- ções d'Os Lusíadas seguem a lição da edição princeps, com atualização da ortografia, segundo critérios expostos na Prefácio.
 
[7] O "eu" não está aqui explícito, mas, como diz Benveniste, implícito no "tu".
[8] CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Lisboa, em casa de Antonio Gonçalves, Impressor, 1572. Todas as citações d'Os Lusíadas seguem a lição da edição princeps, com atualização da ortografia, segundo critérios expostos na Prefácio.
[9] Mais adiante (p. 13 ???) referimo-nos ao dolorido excurso que vai de X, 8, v. 5 a 9.
[10] TODOROV, Tzvetan. "Les catégories du récit littéraire". In: Communications (8). Paris: Seuil, 1966, p. 142.
[11] FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Lisboa: 



Portugália, 1968, p. 13.
[12] SARAIVA, António José. Luís de Camões. Lisboa: Europa-América, 1959, p. 147.
[13] Os pensamentos dominantes não são senão a expressão ideológica das relações materiais dominantes concebidas sob a forma de pensamentos.
[14] NOIRAY, André. La philosophie, 2e. éd. Paris: Centre d'études et promotion de la lecture, 1969, p. 265.
[15] HORACE. Art poétique. In: Oeuvres, texte latin, 13e. éd. Paris: Hachette, s.d., p. 599, v. 148.
[16] ARISTÓTELES. Op. cit., p. 85.
[17] SARAIVA. Op. cit., p. 147 ss.
[18] DUBOIS, J. "Enoncé et énontiation". In: Langages (13), Mars, 1969. Paris: Didier/Larousse, pp. 100-110.
[19] SARAIVA. Op. cit., p. 142.
[20] CIDADE, Hernâni. Luís de Camões II: o épico, 2. ed. melhorada. Lisboa: Revista da Faculdade de Letras, 1953, p. 125.
[21] Ibidem.
[22] Ibidem, p. 126.
[23] SARAIVA. Op. cit., p. 125.
[24] Ibidem, p. 124.
[25] Para este tipo de pesquisa, torna-se indispensável a consulta ao Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas, feito sob a orientação de A. G. Cunha; edição do Instituto Nacional do Livro, 3 vol., Rio de Janeiro, 1966.
[26] SARAIVA. Op. cit., p. 125.

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Semelhanças essenciais: 






o desejo de superar e a consciência do valor da poesia 



@ É comum a Pessoa e a Camões o desejo de superar –

Ä Camões quer superar os ‘antigos’ substituindo a ficção pela verdade;

Ä Pessoa quer superar Camões e conferir novo ânimo à Pátria


@ É comum a Pessoa e a Camões a afirmação do valor supremo da poesia –

Ä Camões sabe que só o canto dos poetas

 transforma os homens em seres imortais

(só o poeta liberta da lei do Esquecimento;

por isso, o rei D. Sebastião deve ‘baixar-se’ e contemplar a ‘pintura’ de Camões…);

Ä Pessoa sabe que só a criação de mitos (tarefa do poeta)

assegura a vitalidade da Pátria, porque a poesia é o Império vivo.


















Estudo léxico-informático de 10canções de Camões


José Barbosa Machado
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

O estudo de textos literários através de ferramentas informáticas remonta ao início da própria informática, que se situa nos anos 40 e evoluiu nas décadas seguintes, atingindo um importante desenvolvimento nos anos 90. Uma das ideias iniciais era a junção da estatística, da lexicografia e da informática, criando ferramentas rápidas que pudessem tratar grandes quantidades de informação com o mínimo de erros. Um dos mais destacados investigadores nesta área foi Charles Müller que, desde os anos 60, veio publicando vários estudos, de que se destacam, Essais de Statistique Lexicale (1964), Étude de Statistique Lexicale (1967) e Initiation aux Méthodes de la Statistique Linguistique (1973).
Dois outros autores são Louis Gilbert, que publicou em 1963 um ensaio sobre a utilização da estatística em lexicologia aplicada», e Pierre Guiraud, que publicou 1960 duas obras fundamentais: Les Caractères Statistiques du Vocabulaire. Essai de Méthodologie e Problèmes et Méthodes de la Statistique Linguistique.
Em Portugal, Maria Helena Mira Mateus foi uma das primeiras autoras a falar da importância desta metodologia para o estudo dos textos portugueses, sendo Augusto Aires Nascimento um dos primeiros a aplicá-la na prática. Em 1977, publicou os dados estatísticos relativos a três textos medievais portugueses: De Ministerio Armorum, Vita S. Martini Saurensis e Vita Sancti Fructuosi. Em 1995, Olinda Santana fez o estudo estatístico-lexical das Éclogas de Bernardim Ribeiro. Em 1997, Deolinda Rodrigues Cabrera fez a análise estatística do texto medieval da Vita Sancti Theotonii e da sua tradução portuguesa numa vertente léxico-comparatista.
A evolução informática e o aperfeiçoamento e simplificação dos sistemas operativos resultou na facilidade de utilização das ferramentas. Os linguistas e os estudiosos da literatura deixaram de se dirigir aos engenheiros informáticos para pedirem que lhes fosse facultada determinada rotina lógica ou script que lhes resolvesse um problema do âmbito exclusivamente metodológico do seu trabalho, para eles próprios criarem as suas ferramentas.
É o caso de muitos dos programas de análise estatística de textos que surgiram recentemente e que foram realizados por linguistas. Refiro-me a três: um americano, o Concordancer, que é sem dúvida o mais intuitivo e o mais fácil de utilizar, mas o mais lento e o que ocupa mais espaço em disco (cerca de 100 MB para 30 páginas de texto analisado); um inglês, o Wordsmith, que é o mais completo; e um português, o Lexicon. Foi deste último que nos servimos para elaborar o estudo que passamos a apresentar. Servimo-nos deste por três razões: porque aceita a acentuação portuguesa, o que não acontece com nenhum outro que conhecemos; porque identifica automaticamente a classe gramatical a que pertence cada palavra; e porque fomos nós próprios que o criámos.
O nosso objectivo foi estudar as dez canções de Camões do ponto de vista léxico-informático, sendo necessário, para isso, termos uma listagem fidedigna de todas as palavras que surgem no texto, o número de ocorrências de cada uma delas, ou seja, o número de vezes em que aparecem, e a classe gramatical a que pertencem.
Passamos a descrever o método de trabalho: extraímos o texto das canções, que se encontrava no CD-ROM Vida e Obra de Luís de Camões publicado pela Porto Editora em 1999, e guardámo-lo em dez ficheiros diferentes em texto simples ou não formatado, um por cada canção.
De seguida, executámos o programa Lexicon e procedemos à listagem individual das palavras de cada uma das canções, de que resultou um conjunto de dados que viríamos posteriormente a completar e que apresentamos no quadro seguinte:
Quadro 1
Canção
Nº estrofes
Nº versos
Finda
Nº sílabas
Nº palavras
Ocorrências
Canção I
7
13 X 6
3 versos
6, 10
492
246
Canção II
7
15 X 6
3 versos
6, 10
427
256
Canção III
6
13 X 5
3 versos
6, 10
325
188
Canção IV
8
16 X 7
3 versos
6, 10
727
371
Canção V
6
14 X 5
5 versos
6, 10
420
249
Canção VI
4
13 X 3
8 versos
6, 10
278
176
Canção VII
9
15 X 8
3 versos
6, 10
709
389
Canção VIII
9
13 X 8
3 versos
6, 10
494
277
Canção IX
7
15 X 6
5 versos
6, 10
556
310
Canção X
13
20 X 12
9 versos
6, 10
1504
686
Totais
-
-
-
-
5932
1793

Na coluna correspondente ao número de versos, o primeiro valor representa o número de versos e o segundo o número de estrofes. Assim, 13 X 6 designa 13 versos distribuídos por 6 estrofes. A finda, que é a última estrofe de cada canção, foi contabilizada à parte, uma vez que varia no número de versos.
Os versos nas dez canções ora têm seis sílabas, ora têm dez sílabas. Predominam, no entanto, os versos decassilábicos.
Os dados extraídos do Lexicon correspondem apenas às últimas duas colunas: o número de palavras e o número de ocorrências existentes em cada canção. Os dados relativos às estrofes, ao número de versos, à finda (ou estrofe que serve de conclusão a cada canção) e ao número de sílabas, contabilizámo-los manualmente. O total das ocorrências é o resultado, não da soma dos valores de cada canção, mas da soma das ocorrências de todas as canções em conjunto.
Se fizermos uma leitura horizontal dos dados, verificamos que os valores mais elevados nas duas últimas colunas são, em geral, proporcionais ao tamanho das canções. Por exemplo, a Canção X é, em extensão, a maior de todas, quer em número de estrofes, quer em número de versos, reflectindo uma maior frequência de palavras e um maior número de ocorrências. Inversamente, a Canção VI é a mais pequena de todas, sendo a mais reduzida em número de estrofes, versos, palavras e ocorrências.
Verificamos ainda que o total do número de palavras e o total de ocorrências em todas as canções varia em menos de metade (por exemplo: 492 / 246).
Quanto às classes gramaticais – retiradas a partir do número de ocorrências e não contando por isso as formas repetidas –, estão distribuídas de acordo com o seguinte quadro:
Quadro 2





Classes gramaticais
Totais
Percentagem
Verbos
817
45,6%
Substantivos
444
24,8%
Adjectivos
274
15,3%
Advérbios
63
3,5%
Nomes próprios
20
1,1%
Pronomes
101
5,6%
Preposições
39
2,2%
Conjunções
20
1,1%
Artigos
7
0,4%
Numerais
5
0,3%
Interjeições
3
0,2%
TOTAL
1793
100%

Sendo o verbo na língua portuguesa o motor da frase, não é de estranhar que esta classe gramatical tenha maior predominância em relação às restantes. Se pensarmos ainda que a temática das canções é autobiográfica e o poeta descreve poeticamente estados de espírito quer no presente, quer no passado, tendo por isso necessidade de utilizar com frequência as formas verbais, facilmente encontramos explicação para uma frequência tão elevada de formas verbais em relação às outras formas gramaticais.
Dentro dos verbos, verifica-se uma ocorrência reduzida do modo conjuntivo (95 ocorrências), do modo condicional (11 ocorrências), do modo imperativo (7 ocorrências) e do modo infinitivo (122 ocorrências), tendo o poeta privilegiado o modo indicativo (402 ocorrências). As restantes formas pertencem ao particípio passado, que, ora aparece em tempos compostos, ora tem a função de adjectivo.
No modo indicativo, mais de metade das formas pertence ao presente (209 ocorrências), podendo a partir daí colocar-se a hipótese, a comprovar através do estudo extra-gramatical, que, do ponto de vista temporal, a voz do sujeito da enunciação das canções fala de uma situação presente. Os tempos indicativos do pretérito estão assim distribuídos: o pretérito perfeito tem 76 ocorrências, o pretérito imperfeito 79 ocorrências, o pretérito mais-que-perfeito 20 ocorrências, o que, somando, dá 175 formas diferentes, número inferior às formas do presente do indicativo.
O futuro imperfeito tem dezoito ocorrências e grande parte das formas pertence a verbos sensitivos e declarativos: gritarei, queixarei, direi, dirás, dirá, sentirei, sentirão, verás, verá, dando a ideia de que as considerações do poeta se projectarão no futuro.
Depois do verbo, surge o nome ou substantivo. Camões serviu-se basicamente de dois subdomínios: os nomes abstractos que remetem para o campo do sentimento: alegria, amor, afeição, desejo, desgosto, desesperação, etc.; e os nomes concretos que surgem em momentos descritivos, pertencentes ao campo da Natureza: aves, flores, arvoredos, gados, orvalho, vento, etc.
Os adjectivos são, curiosamente, de utilização bastante reduzida relativamente aos verbos e aos substantivos. Também estes podem subdividir-se em dois campos semânticos: os que se referem à descrição da Natureza que rodeia o poeta (fresca, suaves, brandas, cristalinas, etc.); e os que se referem a sentimentos em relação a si próprio, em relação às coisas, ou em relação aos outros (gentil, graciosa, honesto, infelice, tímido, vingativo, justos, saudosos, etc.).
Os advérbios têm uma frequência reduzida. Dentro destes, apenas dezasseis são advérbios de modo que, no plano da significação, remetem para a melancolia, uma das temáticas do Camões maneirista: suavemente, sutilmente, mansamente, docemente, brandamente, vamente, enganosamente, etc.
Surgem vinte nomes próprios, sete deles relativos à geografia: Abássia (o mesmo que Abissínia, região junto ao Mar Vermelho), Arábia, Cabo, Oriente, Félix (monte), Austro (o sul) e Mondego (o rio); os restantes relevam da mitologia greco-latina: Aqueloo, Berenice, Eco, Febo, Flora, Ixião, Marte, Minino (ou Cupido), Progne, Sísifo, Tântalo e Tício.
Alguns deles aparecem mais do que uma vez. É o caso de Aurora, de Marte, do Minino e do Oriente.
Quadro 3


Palavra
Ocorrência
Palavra
Ocorrência
Abássia
1
Flora
1
Aqueloo
1
Ixião
1
Arábia
1
Marte
2
Aurora
2
Minino
4
Austro
1
Mondego
1
Berenice
1
Oriente
2
Cabo
1
Progne
1
Eco
1
Sísifo
1
Febo
1
Tântalo
1
Félix
1
Tício
1

Quanto às restantes classes gramaticais, destacamos apenas os pronomes, especialmente os da primeira pessoa do singular. O pronome pessoal me é o mais frequente, com 103 ocorrências, seguindo-se eu com 29, mim com 21, meu com 34, minha com 19 e meus com 9. Os restantes são em número muito mais reduzido, depreendendo-se daqui que a voz enunciadora é a do próprio sujeito poético, como sucede com grande parte da poesia lírica.
Nada do que vimos até ao momento leva a concluir da qualidade literária das várias canções. A qualidade literária, ao contrário do que alguns investigadores desta área possam afirmar, não é objectivamente mensurável. Depende de gostos literários, de modas, de convenções. Quando muito, um estudo estatístico pode levar a uma conclusão mais rigorosa que nunca poderá depender exclusivamente dos dados estatísticos.
No quadro seguinte apresentamos a diferenciação vocabular no que diz respeito às ocorrências no texto de cada canção. As palavras que ocorrem apenas uma vez são mais frequentes do que aqueles que ocorrem duas ou mais vezes, podendo concluir-se que o poeta utilizou um vocabulário bastante variado.






Quadro 4


Canção
Nº de ocorrências
Uma vez
Duas vezes ou mais
Canção I
246
179
67
Canção II
256
208
48
Canção III
188
150
38
Canção IV
371
277
94
Canção V
249
190
59
Canção VI
176
131
45
Canção VII
389
290
99
Canção VIII
277
207
70
Canção IX
310
243
67
Canção X
686
497
189

Notam-se algumas diferenças entre as várias canções, podendo concluir-se da muita ou pouca variedade do vocabulário utilizado pelo poeta em cada uma delas. Quanto maior for o número de palavras que ocorrem apenas uma vez e quanto menor for o número daquelas que ocorrem duas vezes ou mais, tanto maior é a variedade vocabular. Assim, poderemos dizer que a Canção I tem um vocabulário menos variado do que a Canção II; a Canção III tem um vocabulário mais variado do que a Canção VI; etc.
Terminamos o nosso estudo dando um exemplo de como constituir um campo lexical a partir dos dados elaborados pelo Lexicon das 10 canções de Camões. Seleccionámos o campo relacionado com amor / amar. Criámos em seguida um filtro na base de dados que  nos listou as seguintes formas:

Palavra
Ocorrências
Classe
Subclasse
ama
2
Verbo / Nome
Presente do indicativo
amada
2
Verbo
Particípio
amado
1
Verbo
Particípio
amar
1
Verbo
Infinitivo
amaríssimo
1
Adjectivo

amar-vos
1
Verbo
Infinitivo
Amor
32
Nome

amores
2
Nome

amoroso
1
Adjectivo

amorosos
1
Adjectivo

namorada
1
Verbo
Particípio
namorados
1
Verbo
Particípio
namoro
1
Verbo
Presente do indicativo

A primeira forma, ama, surge uma vez como pertencente ao verbo amar e outra como nome comum («Foi minha ama üa fera»). Sendo etimologicamente problemática a origem desta palavra, não a poderemos considerar como pertencente ao campo lexical de amor / amar. Os programas informáticos obviamente não conseguem distinguir estas particularidades, pelo menos por enquanto.
A língua felizmente não se reduz a fórmulas matemáticas que se possam aplicar com regras exactas e que dão resultados exactos. As variantes, as modalizações, a constante recriação lexical e semântica dificultam a exactidão matemática e impõem desvios estatísticos. É por isso que, apesar de considerarmos a utilização das ferramentas informáticas necessárias, por pouparem tempo e trabalho ao investigador, além de darem resultados mais fiáveis, não deixamos de pensar que é necessária a intervenção e a reflexão humanas posteriores. De outro modo deixaria de ter cabimento a investigação científica.
Esperemos que Camões não dê muitas voltas no túmulo, onde quer que ele esteja, ao ver o que lhe andamos a fazer aos versos que tanto lhe custaram a escandir.




BIBLIOGRAFIA

CABRERA, Deolinda Rodrigues (1997), Estudo Lexical da Tradução Portuguesa Quatrocentista da Vida de São Teotónio, Braga, Faculdade de Filosofia.
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