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segunda-feira, 2 de agosto de 2010

VINICIUS DE MORAES


Vinicius e muito mais
Eric Nepomuceno
Jornal do Brasil . 13/12/2005

A foto está lá, ocupando a metade da primeira página do segundo caderno de um conhecido matutino carioca, na edição de quarta-feira, 30 de novembro. Nela aparece tocando violão, de camisa negra e usando óculos escuros, Vinicius de Moraes. Na mão esquerda que busca um acorde, o leve brilho de uma aliança talvez dourada. Há quatro senhores de terno, há três moças. Dois dos homens olham para Vinicius, duas das moças também. Os olhos da outra, sentada no chão, parecem perdidos em algum devaneio. O terceiro homem, sentado aos pés de Vinicius, tem os olhos semicerrados, como quem ouve com atenção. O rosto do quarto homem está encoberto pelas letras amarelas do título.

Uma mesinha de centro mostra dez copos vazios ou quase, duas garrafas de ''água de mesa'', dois pratos usados, um maço de cigarros L&M.

A legenda da foto fala de ''um tempo de casas abertas, celebração da vida e da arte'', e por aí vai, sem levar a nada ou chegar a lugar nenhum, insinuando a atmosfera que envolvia um Rio de Janeiro cordial e generoso, embalando a bossa nova em berços vários.

Basta, porém, olhar com um mínimo de atenção para reparar que Vinicius está um tanto mais velho do que nos primórdios da bossa nova, tempo das reuniões que rompiam madrugadas do Rio em alguma casa generosa e aberta. A foto deve ser do final dos anos 60, ou começo dos 70. É estranho, então, que os outros homens estejam de terno e gravata. Naquela altura da vida de Vinicius e do Rio, ninguém se vestiria assim.

Esse olhar minimamente atento mostrará também que o encontro não aconteceu no Rio: ninguém chama água mineral de ''água de mesa'', que é o que se lê no rótulo das garrafas. Então, além dos ternos e gravatas extemporâneos, há esse outro indício de que se trata de alguma cidade estrangeira.

Mas é ao reparar nos homens da foto que surge a verdadeira curiosidade desse encontro. Sentado numa poltrona, o rosto apoiado na mão esquerda, quem contempla Vinicius é o poeta uruguaio Horácio Ferrer. Ele escreveu letras para canções como Balada para un loco e Chiquilín de Bachín, além da esplêndida opereta Maria de Buenos Aires. No canto direito da foto, sentado no chão, os cabelos cuidadosamente penteados, a gravata sóbria, o olhar levemente posto entre Vinicius e o nada, quem ouve com atenção é o autor das melodias que receberam as letras de Ferrer, um argentino que revolucionou a música e se chamava Astor Piazzolla.

Certa noite de Buenos Aires, Piazzolla se apresentava com seu quinteto num recital. Amelita Baltar cantava as canções que ele tinha escrito com Ferrer. De repente, depois dos aplausos e rompendo um silêncio de missa que antecedia a próxima canção, Piazzolla ouviu uma voz gritando em português: ''Que maravilha! Filho da puta! Filho da puta!''. E em seguida, de pé na frente do palco, o homem dos gritos desandou a aplaudir. Piazzolla ficou pasmo, até perceber que o homem era Vinicius de Moraes, que ele não conhecia pessoalmente.

Aquela homenagem única de Vinicius a Piazzolla aconteceu antes da foto. O mestre argentino jamais se esqueceu da primeira vez que viu o poeta brasileiro. O que a foto mostra são dois homens que com sua arte viraram a vida pelo avesso. Não é uma reunião de época, não é uma imagem de casas abertas: é bom saber - e lembrar - que é o registro do encontro de duas grandezas únicas. E das quais somos todos herdeiros, sabendo ou não.



Bendito vagabundo
Zuenir Ventura
No Mínimo . 02/12/2003

Eu ainda estava sob o impacto do que acabara de assistir em Campo Grande, Mato Grosso do Sul - a apresentação de um extraordinário violonista chamado Marcelo Loureiro - quando dois jovens me abordaram na saída perguntando se eu por acaso havia conhecido Vinicius de Moraes. Respondi que sim, e eles então pediram que eu contasse algumas histórias do poeta. Era um pouco de curiosidade, mas também um pouco de dúvida: “será que ele conheceu mesmo?”.

Enquanto íamos caminhando, tentei me lembrar de algum caso interessante, mas quase todos os que me vinham à cabeça eram impróprios para menores. Até que me lembrei de um episódio ocorrido no Festival de Cannes, que eu não digo o ano para não permitir a identificação das personagens envolvidas. Depois de uma sessão de cinema, fomos parar no cassino, um grupo de brasileiros comandados por Vinicius e sua mulher de então, uma das nove que ele teve.

Distantes do grupo, nós dois estávamos sentados em bancos altos tomando uísque no balcão do bar, quando se deu o incidente. De costas para a cena, ouvi primeiro um estalo seco, quase metálico; depois, os gritos femininos: “sua p..., p... é você”. Antes de me virar, vi a cara de susto do poeta e seu apelo: “me ajuda, Zuenirzinho”. A sua capacidade de reduzir tudo a um diminutivo era tanta que até em meu nome, que não se presta a esse acréscimo carinhoso, ele conseguia botar um zinho.

Virei-me rápido, saí correndo atrás dele, mas ao chegarmos à roda que então se formara, as duas damas já tinham sido devidamente apartadas e estavam contidas pela turma do deixa-disso. Soubemos então o que acontecera: num ímpeto de ciúme, a mulher do poeta agredira com um estridente tapa uma outra jovem brasileira que fora conosco ao cassino. Quando voltamos para os nossos banquinhos, devo ter olhado com suspeita para Vinicius, porque sua reação foi imediata: “não olha assim pra mim não, Zuenirzinho, dessa vez eu estou inocente!”.

Não faz muito tempo encontrei a agressora. Não foi a primeira vez, mas só então tomei coragem de perguntar sobre aquela distante saia-justa: quis saber se ela não tinha exagerado no surto, se havia mesmo razão para tanto ciúme, se não sentira vergonha do vexame naquela festiva madrugada de Cannes. Confessou que, claro, ficava constrangida até hoje quando se lembrava do incidente, mas ainda acha que teve razão. Quando lhe contei a declaração de inocência que eu ouvira, ela riu: “em matéria de mulher, você não sabe do que era capaz o Vinicius”.

Por uma dessas coincidências que muitos dizem não existir, cheguei de Campo Grande no dia em que Miúcha ia lançar o seu excelente CD “Vinicius & Vinicius”, cantando as músicas que Vinicius fez sem parceiros, sozinho, como autor de melodia e letra. Havia na Modern Soud de Copacabana algo que lembrava o poetinha não apenas pelas filhas e amigos presentes, mas também pelo clima do lugar, uma mistura de loja de disco e de bar-restaurante que hoje ele poderia freqüentar (aliás, uma das presenças mais animadas e animadoras da festa era Maria Amélia. Aos 94 anos, ela foi lá prestigiar a filha e homenagear aquele que foi um dos melhores amigos dela e do marido, Sérgio Buarque de Hollanda. No final, em pé no meio-fio com sua bengalinha, fazia sinal para um táxi).

Não sei se Vinicius teria igual disposição com 90 anos, que é com quanto ele estaria agora. Com restrições, acho que ele não sobreviveria. Preferi ficar me lembrando do boêmio incurável que nunca teve vergonha ou culpa de beber; ao contrário, exibia em público o seu vício, levando o copo de uísque para onde fosse, inclusive para o palco, como um violão. Ele foi o artista que tirou a bebida da clandestinidade.

Na biografia amorosa que escreveu sobre o amigo, o poeta Geraldinho Carneiro lembra os versos que o cronista José Carlos Oliveira fez para serem cantados com a cândida melodia de “Nessa rua, nessa rua tem um bosque”:

“Se eu tivesse, se eu tivesse muitos vícios
O meu nome deveria ser Vinicius
Se esses vícios fossem muito imorais
Eu seria o Vinicius de Moraes.”

Na verdade, mais do que imoral, Vinicius foi amoral, no sentido de que ele mesmo elaborava seus códigos de conduta, se é que tinha algum. Poucas pessoas viveram a vida com tanta liberdade, despudor e prazer. E poucos poetas foram tão sensuais, tão capazes de cantar o amor carnal com tanto lirismo. Seus sonetos sobre o tema podem figurar numa antologia ao lado dos de Camões.

Acho que foi o próprio Geraldinho que disse uma vez que Vinicius tinha a coragem de rimar amor e flor e ainda assim fazer boa poesia. Me lembrei disso ouvindo Miúcha, cuja voz está cada vez mais delicada e parece feita para cantar os amores e desamores do amigo. Que outro poeta teria coragem de incluir em sua “Serenata do adeus” esses versos de um romantismo tão descabelado: “Ah, mulher, estrela a refulgir,/Parte, mas antes de partir/ Rasga o meu coração,/ Crava as garras no meu peito em dor/ E esvai em sangue todo o amor,/ Toda a desilusão”.

Geraldinho lembra que detratores como o marechal Costa e Silva e apologistas como Toquinho e Chico Buarque chamaram Vinicius de vagabundo. “Tudo bem. Na falta de melhor morada, Vinicius fez do entre-lugar da boemia a sua pátria de eleição.” Bendito vagabundo.


Vinicius de Moraes: poeta e letrista
Susana Moraes
Do samba-canção à tropicália . 18/10/2003

Este é um depoimento com algumas considerações sobre a trajetória de Vinicius e as diversas combinações que deram a ele um papel tão importante na cultura brasileira e especialmente na sua música popular. Participei de perto de muitos pedaços dessa trajetória, em primeiro lugar, porque sou sua filha mais velha, e depois, por temperamento e eleição. Já adulta, e em diferentes épocas, fui ficando amiga de alguns dos seus parceiros, sobretudo do Tom. Hoje em dia, com 62 anos verifico que tive e tenho mais amigos músicos do que de qualquer outra profissão inclusive cinema que é o que eu de vez em quando faço. Isso para dizer que Vinicius, a Bossa Nova, a Música Popular Brasileira e afins são temas de infindas conversas noite adentro com músicos e gente ligada em música de várias praias.

O que sempre me interessou nessa riqueza que é a nossa música popular fica bem exemplificado na pessoa de Vinicius pelas origens. Vinicius de Moraes nasceu filho da pequena classe media carioca. Pelo lado do pai, de uma pequena classe média culta ­ escritores, professores, um folclorista, um que fez um dicionário, uns Moraes pobres oriundos, dizem, de sangues mais ou menos azulados suecos e alemães. O meu avô Clodoaldo, pai de Vinicius, era 25 anos mais velho do minha avó e tinha sido seu professor de violino. Era um homem fino, delicado, boníssimo, pequeno funcionário público, latinista, poeta de gaveta pós-parnasiano, amigo de Olavo Bilac. Tocava violino, piano, sabia música. Já pelo lado de minha avó Lydia, uma família um pouco mais abastada e completamente inculta. Sidney Magal é primo de Vinicius e meu por conseqüência, de segundo grau. Isso é o lado dos Santos Cruz. Incultos mas muito animados, boêmios, namoradores, tocadores de violão e cavaquinho. Tudo de ouvido, tudo swing. Sempre tinha seresta. O tio Niboca, irmão mais moço da minha avó, quase da idade de Vinicius e durante a adolescência seu amigo inseparável além de tocar violão e cavaquinho fazia de vez em quando umas
canções e até teve uma, ³Diz que tem², gravada por Carmen Miranda. Também tinha o tio Henriquinho, delegado, que numa história famosa na família foi pego pelo chefe de polícia na sua sala da delegacia tocando violão e bebendo com as putas que deveriam estar presas.

Então as tradições da casa dos meus avós eram essas: minha avó tocava bem piano e cantava com uma voz alta muito afinadinha. Nos domingos depois de um almoço carioca caprichado Dona Lydia sentava no piano e aí rolavam os choros, as valsas e as modinhas. Vinicius tocava mal violão com desenvoltura e sempre aparecia com novidade, um sambinha engraçado ou uma balada inglesa, alguma coisa que ninguém conhecia. Suas escolhas tinham humor e mesmo as canções mais sentimentais ele cantava com um sorrisinho nos lábios. Isso foi acontecendo em Botafogo, na Ilha do Governador e depois na Gávea, onde eu nasci. Isso foi a formação musical básica de Vinicius.

Vou cortar agora para alguns anos depois, quando já morávamos em Los Angeles. Vinicius foi para lá como diplomata, era seu primeiro posto Los Angeles e ali, por volta de 1944 ou 1945 ele se apaixonou por jazz. Nessa época, além de diplomata, ele escrevia eu acho que para o Diário de Notícias, para um desses jornais da época, crônicas de cinema e crônicas sobre jazz. Lá em Los Angeles, travou amizade com um sujeito chamado Neshui Ertegun, que mais tarde criou a Atlantic Records, um selo importante só de jazz. Neshui também era apaixonado e tinha uma lojinha onde vendia os discos, muito freqüentada por músicos. A música na nossa casa nos Estados Unidos era basicamente jazz e essa paixão de Vinicius se desenvolveu. Eu tinha uns 6, 7 anos e tem algumas improvisacões de Charlie Parker que até hoje sei de cor, nota por nota. Lembro de irmos algumas vezes a New Orleans, uma vez especialmente para ouvir Jelly Roll Morton, de quem ele se tornou amigo. É claro que também se ouvia Música Popular Americana, Gershwin, Frank Sinatra mas basicamente era jazz.

Nessa época alguns músicos brasileiros que moravam em Los Angeles também foram através de Vinicius se aproximando do jazz inclusive os músicos do Bando da Lua que trabalhavam com Carmen Miranda. Carmen freqüentava a nossa casa e com ela, Aluísio de Oliveira, que era o arranjador, compositor bissexto e namorado dela durante um tempo. Aluísio foi se interessando por jazz cada vez mais e muitos anos depois, de volta ao Brasil fundou o selo Elenco onde produziu uma série de discos de Bossa Nova.

Quando Vinicius voltou para o Brasil, no começo dos anos 50 essa mistura de informaões se encontrou com informações parecidas de Tom Jobim, de João Gilberto e de alguns outros jovens compositores. Todos tinham ligações profundas com Música Popular Brasileira e também tinham ouvido Chet Baker. O primeiro encontro foi com Tom na peça Orfeu da Conceição. Nesse primeiro momento as músicas ainda não se caracterizam pela batida de João Gilberto, isso veio logo depois, mas já tem a combinação do ³popular² com a cultura ³erudita². Nisso Orfeu da Conceição é exemplar, uma peça de teatro escrita em versos baseada no mito grego de Orfeu mas ambientada no morro carioca representada por negros. São vertentes que se encontraram num determinado momento histórico, politico e cultural dos anos 50. Antes de eu conhecer pessoalmente João Gilberto, com 15, 16 anos, Vinicius disse assim: ³ apareceu aí um cara que toca um violão genial, um músico completamente original, ele vai acompanhar Elizete no disco² ­ o disco era Canção do Amor Demais. Ele ficou deslumbrado com João Gilberto desde o primeiro minuto.

Acredito que uma das coisas importantes na relação de Vinicius com Tom e João Gilberto, além dos talentos individuais e identificações, era o fato de ele ser um poeta publicado, reconhecido dentro da literatura brasileira e latino-americana. Isso dava uma espécie de aval para o que estava sendo produzido. Pela primeira vez, acho que no mundo, isso é, no mundo ocidental, um poeta sério passou sistematicamente a escrever letras de música, dedicar-se principalmente a isso. Tom era de uma família de professores, ficava impressionado com o fato de Vinicius falar línguas, ter estudado em Oxford.

No primeiro instante a Bossa Nova, e Vinicius em particular foram muito criticados. De um lado por uma ala da ³literatura séria² que achava aquilo um rebaixamento lamentável do seu talento poético e de outro lado pela turma da pureza musical, das raízes intocáveis. Essa corrente é forte, empedernida e atravessa os tempos. Pixinguinha na sua época foi criticado porque gostava de jazz depois naturalmente a Bossa Nova pela sua apropriação da música popular americana seguido da Tropicália pela sua absorção do rock, dos instrumentos eletrificados e à valorização de manisfestações populares consideradas deselegantes. Essa vontade conservadora de querer que as coisas parem no tempo, puras, sem misturas. Mas o resultado dessas misturas foi uma obra universal e uma imagem dos brasileiros para si mesmos e para todo o mundo completamente nova. Esses sons e essas letras eram tão sofisticados quanto Cole Porter ou Duke Elington e qualquer um podia ver isso. A Bossa Nova é, de certa forma e em grande escala, a concretização de 22: jantamos os gringos para abrir um espaço interno maior. Como diz Antonio Cicero raízes são importantíssimas mas o que faz diferença são as antenas. Para a minha geração foi como encontrar sua própria dicção. Olha, a primeira vez que eu ouvi João Gilberto cantar eu pensei assim: é isso aí.

Bem, isso aí é só um pedacinho dessa história.

in Do samba-canção à tropicália. Org.
Paulo Sérgio Duarte e Santuza Cambraia Naves,
Ed. Relume-Dumará: Rio de Janeiro, 2003.



Vinicius@paixão
Flávio Pinheiro
Nomínimo . 18/10/2003

Vinicius de Moraes foi muitos. Tivesse sido um só e seria, como disse Sergio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), apenas Vinicio de Moral. Foi poeta, diplomata, letrista e pedra filosofal da Bossa Nova, crítico de cinema bissexto, dramaturgo eventual, cidadão do mundo. E trágico, transcendental, materialista, cínico, divertidíssimo, boêmio e apaixonado por multidões de mulheres, inclusive as feiinhas, para quem pedia afeto e piedade. De manhã escurecia, de noite ardia.

Vinicius chegou ao mundo junto com o temporal que varreu a madrugada de 19 de outubro de 1913. Faria 90 anos no domingo. Morreu aos 66 em 1980 não como o maior poeta brasileiro, que não foi, mas como o mais amado. “Com o ar de quem conversa ocasionalmente...Vinicius vai transformando tudo em estilo, um espaço poético vasto e arejado. E criando alguns dos poemas mais belos e necessários do nosso tempo",” disse ninguém menos que Antonio Candido, o mais importante e respeitado estudioso de literatura do país.

Na efeméride dos 90 anos há dois marcos que se entrelaçam. Há dias está no ar o site www.viniciusdemoraes.com.br, corajosa iniciativa da família em geral e de Susana, filha mais velha do poeta, em particular. Toda a obra de Vinicius está no site – poesia, prosa, crítica de cinema, letras de música, biografia, tudo – coisa bem rara na Internet brasileira. Se ainda restar alguma dúvida sobre a devoção à Vinicius basta clicar em “Recados”. É tanta gente grata à palavras perfeitas e versos inesquecíveis, alguns divinamente musicados, que marcaram suas vidas.

Quem abrir no site pode concorrer também ao concurso de sonetos com prêmios diferentes para estudantes e poetas de todas as cepas. O júri é de peso: Heloisa Buarque de Holanda, Antonio Cícero, Eucanaã Ferraz, Paulo Henriques Britto e Glauco Matoso.

O site consumiu meses de trabalho. Susana dá crédito ao que chama de “curadoria chinesa” do poeta Eucanaã Ferraz. Eucanaã restaurou os títulos originais de livros, o que Vinicius mesmo revogara quando aceitou mudanças de nomes propostas por Afrânio Coutinho na organização de suas obras completas na Aguillar. “Ninguém se perde”, garante Eucanaã, “porque há menções no site aos títulos reformados”. Até de amigos, Eucanaã ouviu que o site oficializava a pirataria. “É exatamente o contrário”, reage. Vinicius está todo exposto na Internet com absoluta transparência, à prova de piratarias.

Junto com Antonio Cícero, poeta e letrista, Eucanaã organizou para a Companhia das Letras uma nova antologia poética de Vinicius. Os dois tiveram a audácia de mexer na Antologia feita pelo próprio Vinicius com palpites de Manuel Bandeira.

Esta versão da antologia acaba em 1954. Demarca fronteiras entre o Vinicius transcendental, místico, de arrebatamentos metafísicos e o Vinícius próximo do mundo material “com a difícil mas consistente repulsa ao idealismo dos primeiros anos”. Cícero e Eucanaã acharam isso pouco. Vinicius depois disso multiplicou-se. Graças ao corte temporal, a antologia tinha poesias demais da primeira fase. Suprimiram algumas. Acrescentaram outras. Chegaram a 128.

Na Nova Antologia Poética, que a Companhia das Letras está programando para publicar em novembro, estão as essenciais. Mário de Andrade achava “Ternura” deliciosa (Eu te peço perdão por te amar de repente/Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos/ Das horas que passei à sombra dos teus gestos/Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos/Das noites que vivi acalentando). Mas implicava com uma certa mania por antíteses "cheirosamente fáceis" de Vinicius e achava de mau gosto “a brincadeirinha sem menor interesse essencial” que fecha “O Amor nos Três Pavimentos”. Eis a brincadeirinha: Pra te adormecer/Até um gurizinho, se você deixar/Eu dou pra você.

Mário, porém, já percebia em Vinicius um grande poeta, jamais infenso a críticas. Como dizem Cícero e Eucanaã os católicos não perdoaram Vinicius pela perda da fé; “a esquerda militante desconfiava de seu aparente hedonismo ‘festivo’; os membros da geração de 45, sem confessá-lo, abominavam-no por elaborar sonetos infinitamente mais memoráveis que os deles; os vanguardistas, por empregar formas fixas; os conservadores, por não se ater a estas; os elitistas, por ter se tornado popular, etc”.

O sucesso de Vinicius na música instaurou paradoxos. Carlos Drummond de Andrade invejava-lhe a simplicidade, a enorme capacidade de comunicar-se com corações apaixonados ou aflitos. Mas houve quem dissesse que na música Vinicius entregou-se a profusão. Produzia demais. Sem lirismo perdeu concisão. Seu ceticismo açucarou. Suas licenças afetivas roçaram no pegajoso.

Também na música Vinicius teve várias facetas. Foi melancólico e grave com Edu Lobo e Francis Hime. Terno, inocente e militante com Carlos Lyra. Alegre e negro com Baden Powell. Lúdico e folclórico com Toquinho. Pungente e simples com Chico Buarque. Tudo com Tom Jobim. Garota de Ipanema, ainda mais aguada nos versos de Norman Gimbel do que nos de Vinicius, é a segunda música mais executada nos Estados Unidos. Só perde para Yesterday dos beatles Lennon & McCartney.

Vinicius foi cidadão do mundo. Beijou a mão da inexpugnável Greta Garbo. Ficou amigo de Orson Welles. Embriagou-se com Pablo Neruda, de quem não conseguia despedir-se. Numa festa em Hollywood foi apresentado por Carmen Miranda a uma jovem e cintilante morena. Ela já tinha percebido que ele não desgrudara os olhos dela e disse: "I'm very beautiful. But morally I stink". (Sou muito bonita. Mas moralmente cheiro mal). Era Ava Gardner antes de enlouquecer Frank Sinatra.

Definir Vinicius não é fácil. Manuel Bandeira disse que ele “tem o fôlego dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos (sem refugar, como estes, as sutilezas barrocas) e, finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos”.

Do Vinicius sobretudo divertido cuidou Paulo Mendes Campos que em 1988 fez para uma empresa de engenharia um livro que seria distribuído como brinde. Chamava-se “Murais de Vinicius”, elegia escrita em retalhos de memória que entrou na reedição da obra de PMC. Vinicius conheceu Paulo em 1943 em Belo Horizonte, e numa noite no parque parque municipal o poeta carioca “cantou diversas vezes Stormy Weather debaixo de luar torrencial”.

Em inacreditável pelada na praia de Copacabana com Di Cavalcanti como goleiro de um dos times e Augusto Frederico Schmidt como centro-avante parado do outro, Menisco de Moraes com dois minutos de jogo simulou contusão para se juntar ao mulherio da platéia.

A história de Manduca merece figurar em qualquer antologia de humor de alça de caixão. Vinicius morava na Gávea, atendeu o telefone e do outro lado da linha uma voz chorosa contava a morte de Manduca. Era a mãe dele. Dizia: “o senhor era o maior amigo que ele teve”. Manduca era uma lembrança vaga dos primeiros anos de colégio mas Vinicius decidiu ir ao velório dele numa rua perdida em Madureira. Percebeu ao chegar que era esperado. Todos os olhares sobre ele, já famoso. Foi até a borda do caixão e atolado disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça: “Agüenta a mão aí, bichão”. “No fim da frase já sentia a monstruosidade de seu pronunciamento, esperando em vão que o chão se abrisse e ele também desaparecesse”, completa Paulinho.

Nos "Murais...", PMC compila brevíssimo dicionário de citações do amigo. “Dentre os instrumentos criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua”, é uma das frases. Outra, autobiográfica: “Se Clodoaldo Pereira da Silva Moraes e eu trocamos dez palavras durante a sua vida foi muito. Bom dia, como vai, até a volta – às vezes nem isso. Há pessoas com quem as palavras são desnecessárias. Nós nos entendíamos e amávamos mundanamente, meu pai e eu”.

E seu lema: “A maior solidão é do ser não ama. A maior solidão é do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana”. É Paulo quem pergunta: “Existirá na língua portuguesa outra fascinação tão global pela mulher?” E não se trata apenas da capacidade de descrever a beleza em todas as suas curvaturas, de exortar a feminilidade, mas também de entender suas fraquezas. Talvez em “Desespero da Piedade” ele diga tudo.

Outro amigo, Otto Lara Rezende leva Vinicius a sério para falar do poeta que reabilitou o soneto. “Metro e rima variam, porém, segundo as exigências do tema, ou segundo os caprichos do poeta que é, no soneto ou fora dele, uma malabarista que não recua diante do salto mortal”, ele disse. Do trapézio, Vinicius de Moraes não refugava.

VINICIANDO

Quando Vinicius morreu Marcelo Camelo, vocalista e compositor de Los Hermanos, tinha dois anos. Tem poucas e vagas lembranças de suas letras, mas algumas fortes como "A felicidade", uma das primeiras composições com Tom Jobim. Tristeza não tem fim/Felicidade sim. "Esse primeiro verso é um acontecimento, não?" Vai mais adiante. "E a relação que ele faz com o Carnaval e, sobretudo, com a trajetória da pluma (A felicidade é como a pluma/Que o vento vai levando pelo ar/Voa tão leve/Mas tem a vida breve/Precisa que haja vento sem parar). Tem conteúdo e forma. A poesia que nasce no significado e que por isso não é vaidosa. A estética não sobrepuja o significado porque ele é maior, mais forte...e é muito singelo".

Trata-se aqui de cada um falar de seu Vinicius, poeta e letrista. Das poesias e letras serão citados, na maioria das vezes, apenas trechos para não atravancar a leitura. Quem quiser ler as versões completas deve clicar no pé da página nos nomes das poesias e letras. No dia 31 de julho na abertura da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), uma das lentes do óculos saltou da órbita e Chico Buarque teve que ler seu Vinicius com uma lente só. Primeiro leu "Trecho", desavença de amor entre o Celo e a Flauta (Quem foi, perguntou o Celo/Que me desobedeceu?/Quem foi que entrou no meu reino/E em meu ouro remexeu). Depois, recitou "A Volta da mulher morena" com seu chorrilho de imprecações(Cortai os peitos da mulher morena...Daí morte cruel a mulher morena!). E ainda cantou "Medo de amar", que é só de Vinicius (Você não compreendeu que o ciúme é um mal de raiz/E que ter medo de amar não faz ninguém feliz). Delírio na platéia.

Na mesma noite, Antonio Cícero fez comovente leitura de Pátria Minha (A minha pátria não é florão, nem ostenta/Lábaro não; a minha pátria é desolação/De caminhos, a minha pátria é terra sedenta/E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular/Que bebe nuvem, come terra/E urina mar) Depois, Suzana Moares escandiu "Soneto do Corifeu" (São demais os perigos desta vida/Para quem tem paixão, principalmente/Quando uma lua surge de repente/E se deixa no céu, como esquecida). E outro clássico, "Poética (I)".

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
- Meu tempo é quando.

O poeta gaúcho Fabrício Carpinejar, cujo último livro "Caixa de sapatos" foi lançado recentemente, também adora "Poética". E diz por que:

"Esse poema é belo belo, como diria Manuel Bandeira. Traz a sutileza dos contrários, uma poética da vivência antes mesmo de ser um modo de usar a literatura. O vocábulo é extremamente simples, mas carregado de inversões, como a peercepção de que o excesso de luz faz anoitecer. Uma das principais marcas do poeta é a lascívia igual diante da vida e da morte. Seu extremo de viver e comunicar a vida carregava a preparação de uma despedida. Predomina o acento grave do pensamento, de uma verdade autobiográfica, de uma confissão inadiável, ponderada, ao mesmo tempo testamento e estranhamento. Ele nunca permite a filosofia (a visão de mundo) sufocar a imagem. A imagem é o próprio verbo. Seus versos têm sobrancelhas que se afastam dos olhos a cada pincelada. É uma peça contida, de movimento circular, que poderia constar sem fazer feio numa antologia do inglês W.H.Auden".

Verdade autobiográfica é também o que levou o jornalista e escritor José Castello, autor de "Vinicius de Moraes – O Poeta da Paixão", biografia do poeta publicada em 1994, a escolher "Carta aos 'puros'" (Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros/E em cujos olhos queima um lento fogo frio/Vós de nervos de nylon e de músculos duros/Capazes de não rir durante anos a fio). "Carta aos puros", diz Castello que também é colaborador de NoMínimo, "não é considerado, em geral, um dos grandes poemas de Vinicius de Morais. Ainda assim, é um dos mais importantes que ele escreveu. Está para a obra de Vinicius assim como Psicologia da composição está para a de João Cabral de Melo Neto. Trata-se de um poema síntese de sua teoria poética. Num século dominado pela poesia asséptica dos formalistas, Vinicius a ela se contrapõe fazendo a defesa de uma poesia comprometida, contaminada mesmo, pela existência".

Paulo Henriques Britto, poeta ("Trovar Claro" e "Macau", são seus dois últimos livros) e tradutor de Elizabeth Bishop, Thomas Pynchon e tantos outros, ainda na adolescência surpreendeu-se com o "Soneto de intimidade", que Vinicius escreveu em 1938.

Nas tardes de fazenda há muito azul demais.
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora
Mastigando um capim, o peito nu de fora
No pijama irreal de há três anos atrás.

Desço o rio no vau dos pequenos canais
Para ir beber na fonte a água fria e sonora
E se encontro no mato o rubro de uma amora
Vou cuspindo-lhe o sangue em tomo dos currais.

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

Seguida de um olhar não sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma

"Era diferente não apenas dos outros sonetos de Vinicius como também de tudo que eu já lera antes", diz Paulo Henriques. "A conjunção da forma clássica rigorosa com uma temática 'baixa' era uma novidade para mim, e viria a ter grande importância na minha formação poética. Muitos anos depois quando estava estudando e traduzindo a obra da poeta norte-americana Elizabeth Bishop, descobri que ela havia feito uma excelente versão em inglês deste soneto. Imagino que ele a tenha fascinado pelo mesmo motivo que me fascinou: também Bishop é uma poeta que gosta de utilizar formas tradicionalmente associadas aos temas elevados para tratar de temas cotidianos e humildes".

O cotidiano fez de Vinicius um poeta-cronista. Carmen L.Oliveira, autora de "Flores raras e banalíssimas" e "Trilhos e quintais", adora "Balada das duas mocinhas de Botafogo". "A mãe asmática, largada do marido, e as irmãs de lábios inconhos e olhos findos assomam, nítidas e insalubres, na 'Balada das duas mocinhas de Botafogo'. O poema é um exemplo fascinante de intervenção da poesia na narrativa. Por dom ou labor, o poeta sabe inteirar-se da palavra mais certa, a um tempo insólita e exata, sem rebuços nem asperezas, para que sua história, com pontaria lírica, possa evocar e pungir".

Pontaria, exatidão. Eucanaã Ferraz, cujo livro de poesias "Desassombro" é finalista do prêmio Portugal Telecom, gosta muito da geométrica precisão de "Azul Branco" que repete "concha e cavalo marinho" e "azul e branco" como motes perpétuos da azulejaria que forra o prédio do Ministério da Educação. "A leveza do edifício e sua sintaxe elegante, a um só tempo sofisticada e simples, ressurgem nos versos, que tomam para si aquelas mesmas qualidades formais. Se nos lembrarmos dos volumes limpos, puros e da articulação dos corpos transversos a se mostrarem claramente aos olhos dos passantes, reconheceremos o quanto o poema de Vinicius traduz em escrita esta arquitetura aquática. As imagens de 'Azul e branco' apóiam-se, entre outras coisas, no jogo entre música e silêncio, céu e mar, noite e aurora, sugerindo a fluidez 'feminina' dos espaços. Vinicius alcançou aqui, sem dúvida, um momento alto de sua poética".

Vinicius é sempre evocação, mesmo em mundos tão diferentes quanto os de Paulinho Moska ou Leoni e de Nei Lopes. Leoni, responsável pelos primeiros grandes sucessos do Kid Abelha adoraria ter escrito "Janelas abertas" (Eu poderia ficar sempre assim/Como uma casa sombria/Uma casa vazia/Sem luz nem calor). Paulinho Moska leva no peito o que considera seu alimento até hoje – a definição de amor do verso final de "Soneto de fidelidade" (Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure), partitura de trocentas cantadas ontem, hoje, sempre.

O Vinicius de que se gosta nem sempre é o melhor, mas o que fala mais fundo. É assim com Aldir Blanc, compositor e escritor. Sua letra favorita é de “Bom dia, tristeza” fruto de parceria improvável entre Vinicius e Adoniran Barbosa. “Sei que não é a melhor, mas é a que me atinge no meio da cara e me joga na serragem do pé-sujo”.

Autor de sambas clássicos como "Senhora Liberdade", "Coisa da Antiga" ou "Gostoso Veneno", Nei Lopes nunca foi muito chegado em Vinicius. Acha a proclamação "o branco mais preto do Brasil!" coisa de "tenda dos milagres". "Eu tinha uns 16 anos e estava realmente apaixonado pela primeira vez. Era correspondido. Já fazia uns versinhos. E 'Eu não existo sem você' era tudo o que eu queria dizer". Vinicius baixou de novo em sua cabeça, um pouco mais tarde. "Eu tinha 22, era militante do CACO e do CPC (o Centro Popular de Cultura da UNE), andava meio desbundado por causa da Redentora e estava querendo me apaixonar de novo. E aí, tome 'Primavera' de Vinicius! Com cuba-libre e os primeiros cigarros com filtro".

Com cuba-libre, chope, caipirinha ou refrigerante, com ou sem serragem no chão, 23 anos depois de sua morte, Vinicius de Moraes ainda entoa paixões.




Altas Intensidades
Francisco Bosco
Revista Cult (nr. 73) . 01/10/2003

Ética e estética nas letras de música de Vinicius de Moraes

I

Há uma força que atravessa, de cabo a rabo, o conjunto das letras de música de Vinicius. Ou melhor, as letras surgem dessa força e procuram transformar-se nela, tornando-se a sua verdade. De que força se está falando, todos que ouvimos suas letras o sabemos bem: trata-se da força do amor. Mas não é isso, ainda. É preciso perguntar de onde vem essa força, de que por sua vez as letras vêm.

Para Vinicius, a experiência do amor é trágica. O que responde por essa tragicidade? O fato de que, para ele, o amor acaba: o amor é uma intensidade que queima, consome-se e consuma-se, esvaziando-se fatalmente. O que fazer, então, diante dessa experiência? Aqui começa a força: Vinicius fez um pacto com as altas intensidades, e dispôs-se a pagar seu preço, igualmente alto. Pois se o amor é uma alta intensidade que, no tempo, esvazia-se, só lhe restava aceitar essa dinâmica e acatar o fim do amor - o que significava abrir novamente a possibilidade de um novo amor, da vivência de uma nova intensidade alta, e assim sucessivamente.

A força de Vinicius - de suas letras e de sua vida, pois ético e estético estão aqui indissociavelmente ligados - vem daí, desse pacto com o que para ele se apresentava como alta intensidade. Essa, às vezes, pode - e deve - ser negativa; faz parte do preço. Pois é preciso trazer à tona, nesse pacto tão exigente, a categoria de sacrifício: todas as perdas, toda a interrupção, tudo aquilo de que é preciso desfazer-se para manter-se fiel às altas intensidades. Todos os lutos. A força é da ordem de uma firmeza ética. No pacote do pacto vêm a luminosidade e a obscuridade, os recomeços e os términos - os extremos das altas intensidades. Ou ainda: altas intensidades só têm extremos, não há meio-termo.

II

Vamos contar essa estória de outra maneira; em parceria, em “canto e contraponto”, como se faz na música.

Comecemos por aqui: “Perto da dor de saber / Que o meu céu não existe / Que tudo que nasce / Tem sempre um triste fim / Até meu carinho, até nosso amor”. (Andam dizendo - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A experiência trágica do amor, portanto: tudo que nasce termina, e não há “céu”, não há abrigo onde se proteger dessa verdade. E quando o amor acaba, “É inútil fingir / Não te quero enganar / É preciso dizer adeus”. (É preciso dizer adeus - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso, mas é duríssimo, “Porque o amor é a coisa mais triste / Quando se desfaz”. (Amor em paz - Tom Jobim e Vinicius de Moraes).

E, no entanto, o pacto com as altas intensidades - as quais talvez Vinicius chamasse dessa maneira: a felicidade. “A felicidade é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar / Voa tão leve / Mas tem a vida breve / Precisa que haja vento sem parar”. (A felicidade - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). A felicidade é efêmera, como as altas intensidades. Precisa haver uma força que a mantenha no ar, ou melhor, que volte a erguê-la do chão, por onde deverá passar, sempre. A experiência do chão é terrível, mas é preciso suportá-la, pois o temor pode botar tudo a perder: “Mas o amor sabe um segredo / O medo pode matar o seu coração”. (Água de beber - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). É preciso enfrentar o sacrifício, “Por que a vida só se dá / Pra quem se deu”. (Como dizia o poeta - Toquinho e Vinicius de Moraes).

Nos momentos de iluminação amorosa, no interior da alta intensidade, ocorrem vislumbres do infinito, promessas de repouso e solução: “A esperança divina de amar em paz” (Se todos fossem iguais a você - Tom Jobim e Vinicius de Moraes). Pouco importa que a esses momentos sucedam novamente as dúvidas e os términos; isso é apenas o preço - alto, mas o preço. O que importa é que “A vida é a arte do encontro / Embora haja tanto desencontro pela vida”. (Samba da benção - Baden Powell e Vinicius de Moraes).

III

Vivemos em um tempo de déficit de subjetividade. O que isso quer dizer? Que há um empobrecimento na experimentação de formas de vida. Os grandes mitos da sociedade hoje são, quase sempre, figuras cuja presença no imaginário das pessoas se deve a um aparato aurático produzido pela repetição infinita de sua imagem nos meios de comunicação de massa. Para além ou aquém dessa aura midiática, pouco resta.
Assim, os ícones do espetáculo não se apresentam como referências para experimentações de formas de vida, e a arte - embora, a meu ver, viva um momento histórico vigoroso - não se apresenta, observando em termos de tendências gerais, como uma convergência do ético com o estético.

Vinicius faz parte de uma linhagem de artistas que continuam, sob suas diversas condições históricas, o projeto romântico de unir arte e vida. No ato de escrever esteve em jogo, para ele, a aventura de escrever a própria vida. Era um artista que criava formas de vida, e que, como todo artista, engajou-se na luta de tentar dar vida às suas formas (os poemas, as letras, as peças de teatro, etc).

Em um momento como esse, em que experimentações de formas de subjetivação ao nível dos afetos, da produção de relações, são desencorajadas pela sociedade do consumo e do espetáculo, os valores que Vinicius faz circular na cultura (em suas letras, mas também em todo o rastro de signos que disseminou em sua passagem) tornam-se, mais do que desejáveis, urgentes: o amor, a amizade, a invenção de formas de vida, a exploração corajosa do amplo território da imanência. A vida.

Francisco Bosco é escritor, letrista e ensaísta. Doutorando em Ciência da Literatura pela UFRJ. Publicou “Invisível Rutilante” (Poemas - Ed. Francisco Alves, 1999) e é co-autor, junto a João Bosco, do projeto lítero-musical “Malabaristas do Sinal Vermelho” (Sony Music, 2003), entre outros.




A musa das imagens
Sérgio Augusto
O Globo . 08/07/2003

Muito se ouvirá falar, nos próximos meses, em Vinicius de Moraes. Tantas serão as homenagens, edições e reedições que os seus 90 anos correm o risco de ganhar feições centenárias. Antes que ninguém agüente ler mais nada sobre o poeta, presto-lhe aqui, com nove meses de antecedência, um modesto preito com jeito de ajuste de contas.

Acima, o poeta, Tati e os dois filhos do casal, Pedrinho e Suzana, em Los Angeles, fim dos anos 40: nessa época, era ela que escrevia os artigos do marido

Que contas? Digamos que eu me sinta em dívida com Vinicius. Não só pelo que ele fez, mas sobretudo pelo que eu lhe fiz. Ou melhor, pelo que eu não lhe fiz. Escolhido por Luiz Schwarcz para escrever a biografia do poeta, já lá se vão 13 anos, acabei jogando a toalha, após meses de espera por um patrocínio que nunca se materializava. Não vou dizer que me arrependo da desistência nem que ela tenha desagradado o poeta, que lá do Céu deve ter dado graças a Deus pelo upgrade a que fez jus em matéria de biógrafo. Em meu lugar entrou José Castello e em 1994 a Cia. das Letras lançou O Poeta da Paixão. Duvido, sinceramente, que pudesse fazer melhor, mas de uma coisa estou certo: na minha biografia haveria um pouco mais de cinema (além de cinéfilo e vice-cônsul em Los Angeles, Vinicius foi crítico e até censor de filmes) e muito mais Tati de Moraes.

Tati foi a primeira mulher de Vinicius. Conheceram-se em 1938, na casa do arquiteto e pintor Carlos Leão, cunhado dela. Moça fina, bonita à beça, culta e inteligentíssima, Tati, nascida Beatriz Azevedo de Mello, era tudo aquilo que Vinicius merecia na vida, segundo Portinari, o Santo Antônio daquela união. Embora não conhecesse, àquela altura, nenhum dos poemas de Vinicius, apenas sua assinatura, pois esta aparecia sempre no rodapé dos certificados da Censura cinematográfica projetados antes de cada filme, Tati enrabichou-se pelo poeta carioca em questão de segundos.

Musa dos intelectuais modernistas de São Paulo, seu precoce prestígio pode ser atestado por duas barretadas literárias. Foi em sua homenagem que Monteiro Lobato batizou de Tati o peixinho vermelho de As Reinações de Narizinho e não é outra a Tatizinha que, acoplada a Augusto Meyer e Tarsila, desponta nas últimas estrofes de Cobra Norato, de Raul Bopp. Claro que Vinicius a homenageou mais vezes e em outra voltagem afetiva. O Soneto de Fidelidade, por exemplo, foi escrito para ela, no Estoril, às vésperas da Segunda Guerra Mundial.

Fui amigo de Tati, não de Vinicius. Caprichos do destino. Devia ter uns 16 anos quando li pela primeira vez seus comentários cinematográficos no Última Hora. Por ser a crítica de cinema, naquela época, um feudo masculino, pensei que Tati fosse não uma garota, como a de Aníbal Machado, só que adulta, mas, pelo modo como se desmanchava por certos atores, uma bicha enrustida. Ali pelos 19, engatinhando no ofício, conheci toda a verdade. Numa sessão matinal na cabine da United Artists, Gilberto Souto, fazendo, como de hábito, as honras da casa, me apresentou a uma senhora miudinha e de voz rouca, que parecia já ter nascido com um cigarro aceso entre os dedos. Como então Tati de Moraes não era homem e muito menos uma bicha enrustida.

Começaria ali uma amizade que só perderia intensidade depois de sua aposentadoria como crítica. Quando iniciei minha pesquisa sobre a vida e obra de Vinicius, tratei logo de agendar o que todos assumiam impossível: uma entrevista com Tati. Ela sempre se recusara a falar sobre Vinicius. “Mas para você, e só para você, ela disse que conta tudo”, confidenciou-me aquele que na época era seu maior amigo e comparsa de viagens e traduções, Newton Goldman. Regalia igual ninguém mais teria.

Desse desperdício, sim, eu me arrependo – e muito. Quantas histórias maravilhosas de sua conturbada vida com Vinicius Tati me teria contado. As outras que me desculpem, mas ela foi a mais importante figura feminina na vida do poeta. Nenhuma mexeu tanto e tão profundamente com a cabeça dele. O escritor americano Waldo Frank não foi o único responsável pela guinada ideológica radical de Vinicius. Em 1942 o poeta já não era tão de direita como nos tempos em que seguia à risca o evangelho de Octavio de Faria. Quatro anos de convivência com Tati o haviam empurrado lentamente para a esquerda.

Era Tati que estava ao lado de Vinicius quando o cinema entrou mais a sério na vida dele. Foi com ela que ele morou em Hollywood, justamente no período em que o já citado e saudosíssimo Gilberto Souto lá vivia como correspondente. E foi com a ajuda dela que conseguiu entrar para a diplomacia. Afogado nos estudos para o concurso para o Itamaraty, sem tempo para ver os filmes que deveria criticar, Vinicius pediu a Tati que fosse ao cinema em seu lugar e depois escrevesse as críticas. Também usou Mario Vieira de Mello como ghost critic, mas Tati, segundo consta, desencumbiu-se mais vezes da tarefa e menos transtornos causou ao titular da coluna. Intransigente desafeto do cinema hollywoodiano, Mello acabou indispondo Vinicius com todas as distribuidoras de filmes americanos no Brasil.

O cinema pegou o poeta antes mesmo de ele abrir seu primeiro berreiro, numa chuvosa noite de outubro de 1913. Seu nome de batismo, Marcus Vinitius, foi uma homenagem ao soldado romano de Quo Vadis?, best seller de Henryk Sienkiewicz que no ano anterior fora levado à tela pelo italiano Enrico Guazzoni. Uma de suas brincadeiras de infância prediletas era projetar cenas de luta sobre um lençol estendido na parede da sala. O ingresso cobrado à família custeava as idas ao Guanabara, cinema de verdade que ficava na esquina de sua rua, no bairro carioca de Botafogo.

A descoberta do “cinema como arte” só surgiria na Faculdade de Direito, por estímulo do colega de curso, Octavio de Faria. Filiou-se ao Chaplin Club, o primeiro cineclube brasileiro, fundado por Faria, Plínio Sussekind Rocha e Almir Castro, assimilando várias idiossincrasias daquele grupo, nenhuma tão grave quanto a renitente birra de todos eles contra o cinema falado. “O som é uma experiência, brilhante, não há dúvida, num filme como Aleluia, como Cidadão Kane, como Tempos Modernos, esporadicamente. Mas é uma ênfase, uma superfetação” – escreveria em 1942. Quinze anos já haviam se passado desde a chegada do sonoro e Vinicius continuava fiel ao truísmo de que os filmes silenciosos eram o supra-sumo da pureza, da verdadeira arte cinematográfica.

Sua primeira aproximação do cinema em bases profissionais deu-se, infelizmente, pela via errada. Substituiu Prudente de Moraes, neto, como representante do Ministério da Educação na Censura. Cinco anos mais tarde, um emprego que parecia ter caído do céu: uma coluna diária de cinema. Só que no jornal inadequado: A Manhã, dirigido pelo poeta Cassiano Ricardo, linha-auxiliar do Estado Novo. Se não precisasse tanto de aumentar sua renda para sustentar mulher (Tati) e uma filha (Susana), teria esperado por oferta mais palatável. Estreou em agosto de 1941, com um solene arrazoado sobre o cinema como “meio de expressão total em seu poder transmissor e sua capacidade de emoção”. Ficou na gazeta governista até fevereiro de 1944, quando, por pressão das distribuidoras de filmes americanos, foi demitido.

Voltaria à crítica nas páginas de O Jornal (em 1944), do Diário Carioca (1945), da revista Diretrizes e, no começo dos anos 50, no mesmo Última Hora em que, mais tarde, Tati se iniciaria no métier com sua própria assinatura. Na metade desse caminho, Vinicius e Tati (mais Susana e Pedrinho) viveram em Hollywood, freqüentando festas de artistas e, com maior assiduidade, as que Carmen Miranda organizava. Foi no jardim de Carmen que o nosso vice-cônsul em Los Angeles teve o seu inesquecível encontro com uma jovem lindíssima, que foi logo lhe dizendo, assim sem mais nem menos, que era uma formosura por fora e a mais feia das criaturas por dentro. “Quem é aquela deusa louca?”, perguntou Vinicius à anfitriã. “Uma atriz em início de carreira”, respondeu Carmen. Ninguém menos que Ava Gardner.

Em suas memórias, Aloysio de Oliveira lembra, com indisfarçável saudade, das reuniões na casa cor-de-rosa, quase na esquina de Pico Boulevard com La Brea, onde os Moraes moravam. Seus principais habitués, além de Aloysio, eram os correspondentes Gilberto Souto e Alex Viany, cuja mulher, Elza, se tornaria a maior amiga de Tati. Dos jogos de salão da turma, o mais divertido, para Aloysio e Gilberto, era o das “traduções malucas” que inventavam para os títulos dos filmes americanos do momento. Eles se divertiam traduzindo The Snake Pit (Na Cova das Serpentes) para “A Cobra Apitou” e Ruthless (literalmente, “implacável”, “desumano”) para “Sem Ruth”. (Ruthless foi lançado aqui com o título de O Insaciável.)

Vinicius não foi nem pretendia ser um grande crítico. Fazia crônicas deliciosas e cheias de metáforas alimentícias (determinados filmes, atores, atrizes e personagens lhe lembravam frutas, legumes e até refeições completas), sendo que muitas vezes usou o cinema como mero pretexto para divagações sobre outros assuntos. De uma feita gastou toda a coluna para falar do enfado que os filmes em cartaz lhe provocavam e sua preferência por passear de bicicleta pela praia do Leblon, na companhia de Rubem Braga. Foi em 1943 e a crônica está na pág. 38 de O Cinema de Meus Olhos, coletânea das críticas do poeta, reunidas por Carlos Augusto Calil e editadas pela Cia. das Letras em 1991.

Considerava-se, acima de tudo, um fã. E como todo fã que se preza, tinha uma visão mística do cinema, que chegou a definir como “os olhos do primeiro homem em êxtase contínuo”. Considerava heresia alguém sair no meio de um filme e dormir durante a projeção. E ai de quem se sentasse depois da décima fila: cinéfilo autêntico não era. Detestava flashbacks, torcia o nariz para diretores sofisticados e presepeiros, não perdia uma chance de pichar o cinema americano. Cometeu graves injustiças (com John Ford, por exemplo), mas soube enxergar o gênio de Val Lewton à primeira vista. Alternava platitudes do tipo “a história é bem levada até certo ponto” e divagações poético-filosóficas eventualmente afetadas e confusas. Embora se permitisse alguns paralelismos intelectualizados – comparou Hitchcock a Mallarmé e Carol Reed a Paul Valéry –, raramente se aventurava no campo teórico.

Para Paulo Emilio Salles Gomes, Vinicius não sabia pôr um argumento depois do outro, ligá-los, tirar uma conclusão. Mas seu acervo de insights é considerável. Muita gente percebeu que Orson Welles filmava interiores como um expressionista alemão, mas só Vinicius parece ter sacado que ele filmava paisagens como um cineasta russo. Aliás, quando Welles veio ao Brasil, em 1942, o futuro parceiro de Tom Jobim o seguiu como Alcebíades ia atrás de Sócrates, em permanente estado de graça.

Vinicius deixou páginas memoráveis sobre as atrizes de sua preferência. Idolatrava Marlene Dietrich (que não lhe deu bola em Hollywood), Greta Garbo, Paulette Goddard e Ingrid Bergman (que encontrou por acaso numa banca de jornais de Los Angeles). Moleque, não resistia a uma brincadeira nem a trocadilhos. Gozou a insossa Jane Powell em versos; criticou uma fita de Tarzan, do jeito tatibitate como o “rei da selva” falava na tela e outra sobre o filho de Robin Hood como se fosse um garoto de cinco anos. Vez por outra, em sua coluna, publicava cartas de amor às estrelas que mais falavam à sua libido. Também como crítico, o poeta se deixava sempre dominar pela paixão.



A anunciação

Virgem! filha minha
De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?
Minha mãe querida
Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...


Montevidéu, 01.11.1958

in Para viver um grande amor (crônicas e poemas)
in Poesia completa e prosa: "A lua de Montevidéu"




A arca de Noé

Sete em cores, de repente
O arco-íris se desata
Na água límpida e contente
Do ribeirinho da mata.

O sol, ao véu transparente
Da chuva de ouro e de prata
Resplandece resplendente
No céu, no chão, na cascata.

E abre-se a porta da Arca
De par em par: surgem francas
A alegria e as barbas brancas
Do prudente patriarca

Noé, o inventor da uva
E que, por justo e temente
Jeová, clementemente
Salvou da praga da chuva.

Tão verde se alteia a serra
Pelas planuras vizinhas
Que diz Noé: "Boa terra
Para plantar minhas vinhas!"

E sai levando a família
A ver; enquanto, em bonança
Colorida maravilha
Brilha o arco da aliança.

Ora vai, na porta aberta
De repente, vacilante
Surge lenta, longa e incerta
Uma tromba de elefante.

E logo após, no buraco
De uma janela, aparece
Uma cara de macaco
Que espia e desaparece.

Enquanto, entre as altas vigas
Das janelinhas do sótão
Duas girafas amigas
De fora as cabeças botam.

Grita uma arara, e se escuta
De dentro um miado e um zurro
Late um cachorro em disputa
Com um gato, escouceia um burro.

A Arca desconjuntada
Parece que vai ruir
Aos pulos da bicharada
Toda querendo sair.

Vai! Não vai! Quem vai primeiro?
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.

Enquanto, em grande atropelo
Junto à porta de saída
Lutam os bichos de pêlo
Pela terra prometida.

"Os bosques são todos meus!"
Ruge soberbo o leão
"Também sou filho de Deus!"
Um protesta; e o tigre – "Não!"

Afinal, e não sem custo
Em longa fila, aos casais
Uns com raiva, outros com susto
Vão saindo os animais.

Os maiores vêm à frente
Trazendo a cabeça erguida
E os fracos, humildemente
Vêm atrás, como na vida.

Conduzidos por Noé
Ei-los em terra benquista
Que passam, passam até
Onde a vista não avista.

Na serra o arco-íris se esvai...
E... desde que houve essa história
Quando o véu da noite cai
Na terra, e os astros em glória

Enchem o céu de seus caprichos
É doce ouvir na calada
A fala mansa dos bichos
Na terra repovoada.




in Poesia completa e prosa: "Poemas infantis"
in Poesia completa e prosa: "Cancioneiro"



A ausente

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...




in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "N