Auto da Barca do Inferno
Análise da obra de Gil Vicente
PERSONAGENS
Fidalgo: representa a nobreza, que chega com um pajem, uma roupagem exagerada e uma cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados. Ao Fidalgo, nada lhe valem as ―compras‖ de indulgências, ou orações encomendadas. A crítica à nobreza é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e a prática da tirania.Onzeneiro: o segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro, usuário que ao chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra. Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar, mas acaba cedendo às exigências do julgamento.
Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o aventar e as formas. Engana na vida e procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios.Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Acompanhado de sua amante, o Frade acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos, mas contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se observar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé.Brísida Vaz: misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. Personagem interessante que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.Judeu: entra acompanhado de seu bode. Deplorado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros, converteram-se ao cristianismo, sendo tachados cristãos novos.Corregedor e o Procurador: ambos representantes do judiciário. Juiz e advogado deviam ser exemplos de bom comportamento e acabam sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas.
Enforcado: chega ao batel, acredita ter o perdão garantido: seu julgamento terreno e posterior condenação à morte o teriam redimido de seus pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno.
Cavaleiros: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo
Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso.Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o aventar e as formas. Engana na vida e procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios.Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Acompanhado de sua amante, o Frade acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos, mas contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se observar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé.Brísida Vaz: misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. Personagem interessante que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.Judeu: entra acompanhado de seu bode. Deplorado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros, converteram-se ao cristianismo, sendo tachados cristãos novos.Corregedor e o Procurador: ambos representantes do judiciário. Juiz e advogado deviam ser exemplos de bom comportamento e acabam sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas.
Enforcado: chega ao batel, acredita ter o perdão garantido: seu julgamento terreno e posterior condenação à morte o teriam redimido de seus pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno.
Cavaleiros: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo
Auto da Barca do Inferno Análise da obra de Gil Vicente , detalhe de quadro português anônimo de 1520 Antes de mais nada, "auto" é uma designação genérica para peça, pequena representação teatral. Originário na Idade Média, tinha de início caráter religioso; depois tornou-se popular, para distração do povo. Foi Gil Vicente (1465-c. 1537) que introduziu esse tipo de teatro em Portugal. O "Auto da Barca do Inferno" (c. 1517) representa o juízo final católico de forma satírica e com forte apelo moral. O cenário é uma espécie de porto, onde se encontram duas barcas: uma com destino ao inferno, comandada pelo diabo, e a outra, com destino ao paraíso, comandada por um anjo. Ambos os comandantes aguardam os mortos, que são as almas que seguirão ao paraíso ou ao inferno. Resumo do enredo Os mortos começam a chegar. Um fidalgo é o primeiro. Ele representa a nobreza, e é condenado ao inferno por seus pecados, tirania e luxúria. O diabo ordena ao fidalgo que embarque. Mas ele, arrogante, julga-se merecedor do paraíso, pois deixou muita gente rezando por ele. Recusado pelo anjo, encaminha-se, frustrado, para a barca do inferno; mas tenta convencer o diabo a deixá-lo a rever sua amada, pois esta "sente muito" sua falta. O diabo destrói seu argumento, afirmando que ela o estava enganando. Um agiota chega a seguir. Ele também é condenado ao inferno por ganância e avareza. Tenta convencer o anjo a ir para o céu, mas não consegue. Também pede ao diabo que o deixe voltar para pegar a riqueza que acumulou, mas é impedido e acaba na barca do inferno. O terceiro indivíduo a chegar é o parvo (um tolo, ingênuo). O diabo tenta convencê-lo a entrar na barca do inferno; quando o parvo descobre qual é o destino dela, vai falar com o anjo. Este, agraciando-o por sua humildade, permite-lhe entrar na barca do céu. Mais personagens A alma seguinte é a de um sapateiro, com todos os seus instrumentos de trabalho. Durante sua vida enganou muitas pessoas, e tenta enganar também o diabo. Como não consegue, recorre ao anjo, que o condena como alguém que roubou do povo. O frade é o quinto a chegar... com sua amante. Chega cantarolando. Sente-se ofendido quando o diabo o convida a entrar na barca do inferno, pois, sendo representante religioso, crê que teria perdão. Foi, porém, condenado ao inferno por falso moralismo religioso. Brísida Vaz, feiticeira e alcoviteira, é recebida pelo diabo, que lhe diz que seu o maior bem são "seiscentos virgos postiços". Virgo é hímen, representa a virgindade. Compreendemos que essa mulher prostituiu muitas meninas virgens, e "postiço" nos faz acreditar que enganara seiscentos homens, dizendo que tais meninas eram virgens. Brísida Vaz tenta convencer o anjo a levá-la na barca do céu inutilmente. Ela é condenada por prostituição e feitiçaria. Judeus e "cristãos novos" A seguir, é a vez do judeu, que chega acompanhado por um bode. Encaminha-se direto ao diabo, pedindo para embarcar, mas até o diabo recusa-se a levá-lo. Ele tenta subornar o diabo, porém este, com a desculpa de não transportar bodes, o aconselha a procurar outra barca. O judeu fala então com o anjo, porém não consegue aproximar-se dele: é impedido, acusado de não aceitar o cristianismo. Por fim, o diabo aceita levar o judeu e seu bode, mas não dentro de sua barca, e, sim, rebocados. Tal trecho faz-nos pensar em preconceito anti-semita. É necessário entender, porém, que durante o reinado de dom Manuel, de 1495-1521, muitos judeus foram expulsos de Portugal, e os que ficaram, tiveram que se converter ao cristianismo, sendo perseguidos e chamados de "cristãos novos". Ou seja, Gil Vicente segue, nesta obra, o espírito da época. Representantes do judiciário O corregedor e o procurador, representantes do judiciário, chegam, a seguir, trazendo livros e processos. Quando convidados pelo diabo para embarcarem, começam a tecer suas defesas e encaminham-se ao anjo. Na barca do céu, o anjo os impede de entrar: são condenados à barca do inferno por manipularem a justiça em benefício próprio. Ambos farão companhia à Brísida Vaz, revelando certa familiaridade com a cafetina - o que nos faz crer em trocas de serviços entre eles e ela... O próximo a chegar é o enforcado, que acredita ter perdão para seus pecados, pois em vida foi julgado e enforcado. Mas também é condenado a ir ao inferno por corrupção. Por fim, chegam à barca quatro cavaleiros que lutaram e morreram defendendo o cristianismo. Estes são recebidos pelo anjo e perdoados imediatamente. O bem e o mal Como você percebeu, todos os personagens que têm como destino o inferno possuem algumas características comuns, chegam trazendo consigo objetos terrenos, representando seu apego à vida; por isso, tentam voltar. E os personagens a quem se oferece o céu são cristãos e puros. Você pode perceber que o mundo aqui ironizado pelo autor é maniqueísta: o bem e o mal; o bom e o ruim são metades de um mundo moral simplificado.
ATIVIDADES COMENTADAS
1) Na seguinte cena do Auto da Barca do Inferno, o Corregedor e o Procurador dirigem-se à Barca da Glória, depois de se recusarem a entrar na Barca do Inferno:
Corregedor Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
Anjo Ó pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Corregedor Ó! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
Joane (Parvo) Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et perniz perdiguitorum
e mijais nos campanairos!
Corregedor Ó! Não nos sejais contrairos,
Pois nom temos outra ponte!
Joane (Parvo) Beleguinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
pera: para
habeatis: tende
homens dos breviairos: homens de leis
Rapinastis coelhorum/Et perniz perdiguitorum:
Recebem coelhos e pernas de perdiz
como suborno
Beleguinis ubi sunt?: Onde estão os oficiais de justiça?
Ego latinus macairos: Eu falo latim macarrônico
(Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 107-109.)
a) De que pecado o Parvo acusa o homem de leis (Corregedor)? Este é o único pecado de que ele é acusado napeça?
O Corregedor é acusado de corrupção na passagem em que o Parvo se refere ao fato de ele receber subornos, “presentes”, “propinas”, “agrados”, “pequenos mimos” tais como coelhos e pernas de perdizes. Além disso, o Corregedor é acusado, na peça, de ser desrespeitoso (mijar nos campanários), injusto com relação aos desfavorecidos, preguiçoso e adúltero, pecados pelos quais é condenado a seguir com o Diabo na Barca do Inferno.
ANALISANDO:
Além de identificar o pecado de suborno praticado pelo Corregedor, apontar
também o outro pecado do qual a personagem citada foi acusada durante a peça.
o primeiro pecado: suborno. No que diz respeito ao outro pecado,: desrespeito aos mandamentos da igreja, heresia, adultério (por usufruir dos serviços de BrísidaVaz), injustiça, desonestidade, falta de ética, falta de profissionalismo, ou sinônimos. O principal é que se perceba que o Corregedor foi acusado na peça de Gil Vicente de vários deslizes cometidos no exercício de sua função e em sua conduta moral como um todo., no entanto, entender que a resposta para a segunda parte do item a deverá ser positiva (sim, suborno é o único pecado do qual o Corregedor foi acusado na peça .
b) Com que propósito o latim é empregado pelo Corregedor? E pelo Parvo?
Por se tratar de língua da tradição dos bacharéis, o latim é empregado pelo Corregedor como símbolo de distinção e prestígio, tal como a vara e os processos que ele carrega nas mãos. Na verdade, no contexto em que os termos latinos são empregados indistintamente pelo Corregedor como sinal de afetação, arrogância,superioridade e status social, pode-se observar uma certa ironia por parte de Gil Vicente, a qual se explicitará na fala do Parvo. O Parvo se expressa em latim para ridicularizar e ironizar a postura dos magistrados. Chega a admitir essa intenção, ao afirmar que seu latim é macarrônico.
ANALISANDO
No item b, deverá ficar claro na resposta que a intenção do Corregedor é demonstrar sua
condição de homem de leis – o latim visto como língua do direito – e que, por isso, ele deveria ser tratado de maneira diferenciada pelo Anjo e ser conduzido à barca que se dirigia ao Paraíso. O Parvo, por sua vez, usa o latim a fim de satirizar o Corregedor e sua tentativa de mostrar-se superior através da linguagem. Foi um equívoco bastante comum é identificar o latim como língua oficial da igreja, afirmando que o Corregedor estaria usando tal idioma de modo a convencer o Anjo – através daquela que seria sua linguagem própria – a levá-lo para a Barca da Glória. Esse tipo de resposta, embora muito recorrente, não se mostra adequado, uma vez que em nenhum momento o latim é usado pelo Anjo na peça como língua de autoridade da igreja. E, no momento em que o Parvo aparece deturpando a língua latina – chamado por ele mesmo de “latim macarrônico” –, fica claro que a razão para o uso dessa linguagem nada tem a ver com uma crítica ou exaltação específica à religião, mas sim com uma clara ironia contra aqueles que tentam usar essa língua como forma de distinção e poder.
Características
1) Na seguinte cena do Auto da Barca do Inferno, o Corregedor e o Procurador dirigem-se à Barca da Glória, depois de se recusarem a entrar na Barca do Inferno:
Corregedor Ó arrais dos gloriosos,
passai-nos neste batel!
Anjo Ó pragas pera papel,
pera as almas odiosos!
Como vindes preciosos,
sendo filhos da ciência!
Corregedor Ó! habeatis clemência
e passai-nos como vossos!
Joane (Parvo) Hou, homens dos breviairos,
rapinastis coelhorum
et perniz perdiguitorum
e mijais nos campanairos!
Corregedor Ó! Não nos sejais contrairos,
Pois nom temos outra ponte!
Joane (Parvo) Beleguinis ubi sunt?
Ego latinus macairos.
pera: para
habeatis: tende
homens dos breviairos: homens de leis
Rapinastis coelhorum/Et perniz perdiguitorum:
Recebem coelhos e pernas de perdiz
como suborno
Beleguinis ubi sunt?: Onde estão os oficiais de justiça?
Ego latinus macairos: Eu falo latim macarrônico
(Gil Vicente, Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996, p. 107-109.)
a) De que pecado o Parvo acusa o homem de leis (Corregedor)? Este é o único pecado de que ele é acusado napeça?
O Corregedor é acusado de corrupção na passagem em que o Parvo se refere ao fato de ele receber subornos, “presentes”, “propinas”, “agrados”, “pequenos mimos” tais como coelhos e pernas de perdizes. Além disso, o Corregedor é acusado, na peça, de ser desrespeitoso (mijar nos campanários), injusto com relação aos desfavorecidos, preguiçoso e adúltero, pecados pelos quais é condenado a seguir com o Diabo na Barca do Inferno.
ANALISANDO:
Além de identificar o pecado de suborno praticado pelo Corregedor, apontar
também o outro pecado do qual a personagem citada foi acusada durante a peça.
o primeiro pecado: suborno. No que diz respeito ao outro pecado,: desrespeito aos mandamentos da igreja, heresia, adultério (por usufruir dos serviços de BrísidaVaz), injustiça, desonestidade, falta de ética, falta de profissionalismo, ou sinônimos. O principal é que se perceba que o Corregedor foi acusado na peça de Gil Vicente de vários deslizes cometidos no exercício de sua função e em sua conduta moral como um todo., no entanto, entender que a resposta para a segunda parte do item a deverá ser positiva (sim, suborno é o único pecado do qual o Corregedor foi acusado na peça .
b) Com que propósito o latim é empregado pelo Corregedor? E pelo Parvo?
Por se tratar de língua da tradição dos bacharéis, o latim é empregado pelo Corregedor como símbolo de distinção e prestígio, tal como a vara e os processos que ele carrega nas mãos. Na verdade, no contexto em que os termos latinos são empregados indistintamente pelo Corregedor como sinal de afetação, arrogância,superioridade e status social, pode-se observar uma certa ironia por parte de Gil Vicente, a qual se explicitará na fala do Parvo. O Parvo se expressa em latim para ridicularizar e ironizar a postura dos magistrados. Chega a admitir essa intenção, ao afirmar que seu latim é macarrônico.
ANALISANDO
No item b, deverá ficar claro na resposta que a intenção do Corregedor é demonstrar sua
condição de homem de leis – o latim visto como língua do direito – e que, por isso, ele deveria ser tratado de maneira diferenciada pelo Anjo e ser conduzido à barca que se dirigia ao Paraíso. O Parvo, por sua vez, usa o latim a fim de satirizar o Corregedor e sua tentativa de mostrar-se superior através da linguagem. Foi um equívoco bastante comum é identificar o latim como língua oficial da igreja, afirmando que o Corregedor estaria usando tal idioma de modo a convencer o Anjo – através daquela que seria sua linguagem própria – a levá-lo para a Barca da Glória. Esse tipo de resposta, embora muito recorrente, não se mostra adequado, uma vez que em nenhum momento o latim é usado pelo Anjo na peça como língua de autoridade da igreja. E, no momento em que o Parvo aparece deturpando a língua latina – chamado por ele mesmo de “latim macarrônico” –, fica claro que a razão para o uso dessa linguagem nada tem a ver com uma crítica ou exaltação específica à religião, mas sim com uma clara ironia contra aqueles que tentam usar essa língua como forma de distinção e poder.
Características
O "Auto da Barca do Inferno" faz parte de uma trilogia (Autos da Barca "da Glória", "do Inferno" e "do Purgatório"). Escrito em versos de sete sílabas poéticas, possui apenas um ato, dividido em várias cenas. A linguagem entre os personagens é coloquial - e é através das falas que podemos classificar a condição social de cada um dos personagens. Valores de duas épocas Escrita na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, a obra oscila entre os seus valores morais de duas épocas: ao mesmo tempo que há um severa crítica à sociedade, típica da Idade Moderna, a obra também está religiosamente voltada para a figura de Deus, o que é uma característica medieval. A sátira social é implacável e coloca em prática um lema, que é "rindo, corrigem-se os defeitos da sociedade". A obra tem, portanto, valor educativo muito forte. A sátira vicentina serve para nos mostrar, tocando nas feridas sociais de seu tempo, que havia um mundo melhor, em que todos eram melhores. Mas é um mundo perdido, infelizmente. Ou seja, a mensagem final, por trás dos risos, é um tanto pessimista. Idade Média "Idade das trevas", período medieval durou dez séculos Brasão mostra cavaleiro andante, símbolo medieval no imaginário popular A Idade Média e os temas medievais são usados até hoje em histórias reais ou fantásticas que chegaram até nós. Assim, os contos de fada, com suas princesas, castelos, dragões e reis, são geralmente ambientadas na Idade Média. Ainda ouvimos falar também da bravura dos cavaleiros das Cruzadas, que atravessaram o Oriente Médio e a Europa para lutar contra os infiéis. Muitos rituais católicos têm origem medieval. Enfim, a Idade Média é uma fonte de histórias infantis, de lendas, filmes, jogos e videogames. Mas ela se compôs fundamentalmente de fatos reais. Por isso, devemos separar a realidade da imaginação. As pessoas, hoje em dia, têm uma visão idealizada desse passado, que foi recriado no imaginário da humanidade durante os últimos séculos. Por exemplo, muitos contos de fada foram escritos por autores românticos do século 19, tendo como base histórias do folclore que eram contadas por diversos povos ao longo dos séculos. Desse modo, os autores românticos inventaram um passado medieval cercado de ricos castelos e belas princesas. Isso estava dentro de um ideal artístico, que, no entanto, estava longe de espelhar a realidade da maioria da população que vivia naquele período. Idade "média" por quê? Mas o que devemos entender, afinal de contas, quando dizemos "Idade Média"?
"IDADE MÉDIA"
Esse termo refere-se a uma divisão do tempo que engloba praticamente 1.000 anos de história do continente europeu. Essa classificação para o período - "Média" - foi uma forma de os homens dos séculos 14 e 15, dos reinos italianos, mostrarem que eram inovadores, modernos, transformadores. Esses homens - pintores, artistas e pensadores do chamado Renascimento - achavam que estavam rompendo com um período culturalmente atrasado do mundo ocidental, dominado pelo pensamento da Igreja católica. Assim, os renascentistas classificavam-se como "modernos" e acreditavam que estavam fazendo renascer o esplendor das culturas grega e romana da Antigüidade. Entre a Idade Moderna e a Idade Antiga havia, portanto uma idade intermediária, que ficava no meio, sendo a média entre esses dois períodos. Assim nasceu o conceito de Idade Média. Essa classificação, na verdade, é uma simplificação preconceituosa, pois classifica uma cultura como inferior a outra e resume a história de diversos povos que viviam na Europa como uma só história. De qualquer forma, o estudo desse período é extremamente importante, para podermos entender diversos aspectos da história do mundo ocidental. Roma, Ocidente e Oriente A Idade Média tem como marcos de seu começo e seu fim duas datas que se referem ao Império Romano. Seu início é marcado pela tomada de Roma pelos germanos: a derrubada do Império Romano do Ocidente ocorreu no ano de 476. O fim da era medieval é dado pelo ataque de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, tomada pelos turcos em 1453. Alta e Baixa Idade Média Para compreender melhor esse vasto período, costuma usar-se uma subdivisão temporal entre Alta e Baixa Idade Média. A Alta Idade Média é o primeiro momento, quando ocorreu formação de diversas sociedades na Europa e se passou entre os séculos 5 e 10. Foi nesse período que se formaram os feudos, estabeleceram-se as relações de suserania e vassalagem, e o poder da Igreja Católica constituiu-se e fortaleceu-se. Já o período da Baixa Idade Média, sua segunda e última fase, foi aproximadamente do século 10 ao século 15. A partir dessa época, novas idéias e novas práticas foram surgindo e houve um processo de decadência das instituições feudais, que se formaram ao longo dos cinco séculos anteriores. Idéias equivocadas sobre a Idade Média No entanto, mais do que pensar em auge e decadência, nascimento e morte de uma época, é importante entender que todos os aspectos que formaram o pensamento e as práticas medievais estão longe de representar um cenário único, um panorama unitário. A idéia de Idade Média desde de muito tempo esteve associada a atraso, a uma época de "trevas" no conhecimento, de pouca liberdade e de restrita circulação de idéias.
Embora essa concepção não esteja totalmente errada, de maneira nenhuma podemos imaginar que foi somente isso que ocorreu no continente europeu durante os 1.000 anos de duração do período medieval. Por que não podemos dizer que a Idade Média foi uma época só de atraso para os povos europeus? Porque, embora impregnada pela mentalidade religiosa, a cultura floresceu, como comprova a arquitetura da época, com suas grandes catedrais. Da mesma maneira, no interior da Igreja, diversos pensadores se esforçaram para conciliar a religião cristã com a filosofia grega, em especial a de Aristóteles. Ao mesmo tempo, assentando-se sobre a organização social e jurídica do antigo Império Romano, a Igreja contribuiu para civilizar as tribos e reinos bárbaros. Ao mesmo tempo, se é fato que durante a Alta Idade Média a economia esteve praticamente centrada na agricultura, isso ocorria porque os feudos produziam grande parte dos produtos que necessitavam consumir e a circulação de pessoas era restrita numa Europa povoada por fortificações isoladas uma da outra. No entanto, nem sempre esse cenário correspondeu à Europa inteira. Além dos feudos Assim, nem todas as relações sociais e de produção estavam concentradas nos feudos, com os senhores e servos. A partir do século 10, os povos que não se encaixavam nesse esquema, que viviam de outras atividades, como comércio e negócios, começaram a morar no entorno dos feudos, nas áreas de passagem e de feiras. Enfim, não podemos mais continuar repetindo que a Idade Média (séculos 5 a 15) seja um período "de trevas", de falta de conhecimento e de opressão contra os povos. Repetir isso é complicado porque estaremos concordando com os artistas renascentistas, os "modernos", que tinham uma visão preconceituosa sobre o período medieval. Na verdade, a própria Idade Moderna (a partir do século 15) foi conseqüência de muitas conquistas medievais, como o renascimento comercial da Europa (século 11), obtido principalmente devido a ação das Cruzadas (séculos XI e XIII).
Cruzadas
Igreja promove expedições militares para conquistar Jerusalém Gravura medieval mostra cerco aos muçulmanos na cidade de Antioquia Entender o que foram as Cruzadas não é difícil se partirmos inicialmente do entendimento de seu próprio nome. Seu nome deriva da palavra "cruz", que indica o martírio de Jesus Cristo, carregando-a e sendo nela pregado, até morrer de maneira lenta e dolorosa. Durante a Idade Média, a Igreja transformou a cruz no símbolo do cristianismo. Assim, as Cruzadas foram expedições organizadas pela Igreja para levar o cristianismo para outros povos, que não seguiam essa religião. No entanto, para impor essa cruz, ou a fé em Cristo, para ou praticantes de outras religiões, não adiantava usar somente a palavra. Para povos que oferecessem resistência, a palavra seria de pouca serventia. Assim, a força armada era o principal elemento dessas expedições, que se denominavam também de "Guerra Santa". A principal justificativa das Cruzadas foi reconquistar territórios perdidos para os inimigos da fé católica, ao mesmo tempo trazendo novos povos e regiões ao domínio da Igreja. Assim, a primeira Cruzada partiu em 1096 para Jerusalém, no Oriente Médio, região do nascimento de Jesus, considerado lugar sagrado pelos cristãos. "Infiéis" na Terra Santa Jerusalém havia sido dominada pelos turcos, que eram praticantes do Islamismo e proibiram a presença cristã na chamada "Terra Santa". Essa primeira Cruzada durou três anos: percorreu grande parte do continente europeu e, atravessando parte do mar Mediterrâneo, chegou a Jerusalém por terra. Ao longo de mais de 200 anos, entre os séculos 11 e 13, foram realizadas oito Cruzadas. A mais longa durou seis anos e a mais curta, apenas um.
No decorrer desse período, as Cruzadas foram desfazendo o isolamento em que a Europa se metera na Alta Idade Média, e reativando cada vez mais o trânsito por mar, chegando, inclusive, a retomar o contato com o continente africano. Essas expedições em busca de novas terras atraíam milhares de pessoas. Havia um forte elemento religioso que motivava essas pessoas a virarem os "soldados de Deus". Ao atribuir às Cruzadas o caráter de "Guerra Santa" e considerá-las sagradas, a Igreja católica prometia aos seus soldados um lugar no Paraíso, depois de sua morte. Mas, além da justificativa religiosa, o interesse econômico de atacar outros povos, invadir suas cidades e saquear suas riquezas, era certamente algo interessante para os cavaleiros que marchavam nas Cruzadas. Uma Cruzada paralela Assim, mais do que empreendimentos exclusivamente espirituais, as Cruzadas foram financiadas tanto pela Igreja, como pelos nobres e por ricos comerciantes, como um negócio ou investimento. Por outro lado, uma legião de miseráveis acabou se juntando à primeira delas, e compôs uma Cruzada paralela, não oficial, que chegou a ser condenada pelo Papa. Isso ocorreu entre 1096 e 1099. Assim, essa primeira expedição oficial que rumava para Jerusalém, a fim de reconquistar a terra ocupada pelos turcos, foi copiada por uma expedição de pobres e miseráveis, que também queria seu lugar no céu, bem como riquezas na Terra. No entanto, essa "Cruzada paralela", organizada por Pedro, o Eremita, que conseguiu juntar 50 mil fiéis, foi aniquilada ao chegar em Constantinopla. Já a Cruzada oficial, financiada pela nobreza e comandada por Godofredo de Bouillon, contou com 100 mil homens soldados e terminou com um final feliz para os cruzados: eles conseguiram não só reconquistar Jerusalém, como também a tomar a terra dos turcos. Saladino e Ricardo Coração de Leão Quase 50 anos depois, Jerusalém foi reconquistada pelos turcos e a Igreja teve nova justificativa para empreender uma outra Cruzada. Assim, entre 1147 e 1149, ocorreu a Segunda Cruzada, financiada por nobres franceses e germânicos. No entanto, essa campanha resultou num grande fracasso para os europeus. Quatro décadas se passaram, quando se resolveu empreender mais uma expedição militar à Terra Santa, que, dessa vez, estava sob o domínio de um sultão árabe, Saladino. Essa Terceira Cruzada, ocorrida entre 1189 e 1192, mais do que ter financiamento dos nobres, teve a presença dos reis de três dos principais reinos daquele período: da França, com Felipe Augusto; da Inglaterra, com Ricardo Coração de Leão, e do reino germânico, com Frederico Barba Ruiva. Apesar disso, a expedição também foi derrotada militarmente. O Barba Ruiva morreu antes de chegar ao campo de combate, ainda que Ricardo Coração de Leão tenha conseguido um acordo com Saladino, o que permitiu aos cristãos pelo menos o direito de rezarem desarmados em Jerusalém. Venezianos e crianças As demais Cruzadas não foram expressivas pelo sucesso de sua missão religiosa, mas por outros motivos. Assim, a Quarta Cruzada, realizada entre 1201 e 1204, que foi financiada pelos comerciantes de Veneza, trouxe grandes benefícios a seus organizadores, pois submeteu povos da Grécia e os bizantinos aos tratados comerciais venezianos. Em 1212, houve uma Cruzada bastante curiosa, não reconhecida pela Igreja católica, organizada por um menino de 12 anos, chamado Estevão de Cloyes. Este garoto conseguiu juntar com ele mais 30 mil jovens, que acreditavam que o Mar Mediterrâneo se abriria para eles chegarem até o Oriente Médio. Muitos comerciantes e proprietários de navios se interessaram por essa Cruzada, prometendo transportar as crianças para a Terra Santa. Na verdade, o que fizeram foi vendê-los como escravos nas cidades pelas quais passavam. As últimas Cruzadas Todas as outras Cruzadas foram fracassos militares: tanto a Quinta, organizada entre 1217 e 1221, quanto a Sexta, realizada entre 1228 e 1229. Esta última foi condenada pelo Papa, pois seu líder, Frederico 2º, Imperador do Sacro Império Germânico passou por cima da autoridade papal, fazendo acordos diplomáticos com os egípcios. Finalmente, com quase 30 anos de distância uma da outra, a Sétima e a Oitava Cruzadas foram realizadas pelo rei francês Luiz 9º. Este rei, tratado com um santo pela Igreja católica, foi feito prisioneiro pelos seus inimigos durante a Sétima Cruzada (que durou 6 anos, entre 1248 a 1254). Na Oitava e última Cruzada, que durou apenas um ano, em 1270, o final da expedição foi ainda pior. A maior parte dos cruzados, inclusive Luiz 9º, acabou morrendo de peste antes de chegar à Terra Santa. Como pudemos ver, as Cruzadas envolveram interesses e crenças de diversos grupos sociais da Idade Média. Pobres, vagabundos, crianças sem perspectiva; nobres poderosos, influentes reis em busca de expansão de seus poderes; ricos comerciantes dispostos a estabelecerem novas rotas de comércio. Todos essas pessoas, com seus projetos e intenções fizeram parte das expedições religiosas e armadas, idealizadas pela Igreja católica para ampliar o domínio do cristianismo no mundo.
Gil Vicente teve diversas farsas e comédias proibidas pela Inquisição portuguesa Pouco se sabe sobre a vida de Gil Vicente, autor de Auto da Barca do Inferno.
Ele teria nascido por volta de 1465, em Guimarães ou em outro lugar na região da Beira. Casado duas vezes, teve cinco filhos, incluindo Paula e Luís Vicente, que organizou a primeira compilação das suas obras. No início do século 16, há referência a um Gil Vicente na corte, participando dos torneios poéticos. Em documentos da época, aparece outro Gil Vicente, ourives, a quem é atribuída a Custódia de Belém (1506), recipiente para exposição de hóstias feita com mais de 500 peças de ouro puro. Há ainda mais um Gil Vicente que foi "mestre da balança" da Casa da Moeda. Alguns autores defendem, sem provas, que os três seriam a mesma pessoa, embora a identificação do dramaturgo com o ourives seja mais viável, dada a abundância de termos técnicos de ourivesaria nos seus autos. Ao longo de mais de três décadas, Gil Vicente foi um dos principais animadores dos serões da corte, escrevendo, encenando e até representando mais de quarenta autos. O primeiro deles, o "Monólogo do Vaqueiro" (ou "Auto da Visitação"), data de 1502 e foi escrito e representado pelo próprio Gil Vicente na câmara da rainha, para comemorar o nascimento do príncipe dom João, futuro rei dom João 3o. O último, "Floresta de Enganos", foi escrito em 1536, ano que se presume seja o da sua morte.
Ele teria nascido por volta de 1465, em Guimarães ou em outro lugar na região da Beira. Casado duas vezes, teve cinco filhos, incluindo Paula e Luís Vicente, que organizou a primeira compilação das suas obras. No início do século 16, há referência a um Gil Vicente na corte, participando dos torneios poéticos. Em documentos da época, aparece outro Gil Vicente, ourives, a quem é atribuída a Custódia de Belém (1506), recipiente para exposição de hóstias feita com mais de 500 peças de ouro puro. Há ainda mais um Gil Vicente que foi "mestre da balança" da Casa da Moeda. Alguns autores defendem, sem provas, que os três seriam a mesma pessoa, embora a identificação do dramaturgo com o ourives seja mais viável, dada a abundância de termos técnicos de ourivesaria nos seus autos. Ao longo de mais de três décadas, Gil Vicente foi um dos principais animadores dos serões da corte, escrevendo, encenando e até representando mais de quarenta autos. O primeiro deles, o "Monólogo do Vaqueiro" (ou "Auto da Visitação"), data de 1502 e foi escrito e representado pelo próprio Gil Vicente na câmara da rainha, para comemorar o nascimento do príncipe dom João, futuro rei dom João 3o. O último, "Floresta de Enganos", foi escrito em 1536, ano que se presume seja o da sua morte.
O "Auto da Sibila Cassandra", escrito em 1513, introduz os deuses pagãos na trama e por isso é considerado por alguns como o marco inicial do Renascimento em Portugal. Alguns dos autos foram impressos sob a forma de folhetos e a primeira edição do conjunto das obras foi feita em 1562, organizada por Luís Vicente. Dessa primeira compilação não constam três dos autos escritos por Gil Vicente, provavelmente por terem sido proibidos pela Inquisição. Aliás, o índice dos livros proibidos, de 1551, incluía sete obras do autor. Gil Vicente foi considerado um autor de transição entre a Idade Média e o Renascimento. A estrutura das suas peças e muitos dos temas tratados foram desenvolvidos a partir do teatro medieval, defendendo, por exemplo, valores religiosos. No entanto, alguns apontam já para uma concepção humanista, assumindo posições críticas. Em 1531, em carta ao rei, Gil Vicente defendeu os cristãos-novos, a quem tinha sido atribuída a responsabilidade pelo terremoto de Santarém. Também no "Auto da Índia" apresentou uma visão antiépica da expansão ultramarina. Gil Vicente classificou suas peças dividindo-as em três grupos: obras de devoção, farsas e comédias. Seu filho, Luís Vicente acrescentou um quarto gênero, a tragicomédia.
Estudiosos recentes preferem considerar os seguintes tipos: autos de moralidade, autos cavaleirescos e pastoris, farsas, e alegorias de temas profanos. No entanto, é preciso lembrar que, por vezes, na mesma peça encontramos elementos característicos de vários desses gêneros. Gil Vicente vai muito além daquilo que, antes dele, se fazia em Portugal. Revela um gênio dramático capaz de encontrar soluções técnicas à medida das necessidades. Nesse sentido, ele pode ser encarado como o verdadeiro criador do teatro nacional. Por outro lado, a dimensão e a riqueza da sua obra constituem um retrato vivo da sociedade portuguesa, nas primeiras décadas do século 16, onde estão presentes todas as classes sociais, com os seus traços específicos, seus vícios e suas preocupações. Também no aspecto lingüístico o valor documental da sua obra é inestimável e constitui uma grande fonte de informação sobre o início do século 16 em Portugal. Feudalismo Servidão, impostos, taxas, suserania e vassalagem Camponeses trabalham na terra do senhor feudal Estudar o feudalismo é conhecer a fundo o modo como viviam as pessoas no período medieval. O feudalismo pode ser definido como um modo de produção, ou seja, a forma pela qual as pessoas faziam produtos necessários à sua sobrevivência. Também é entendido como um sistema de organização social, estabelecendo como as pessoas se relacionavam entre si e o lugar que cada uma delas deveria ocupar na comunidade. O feudalismo consolidou-se a partir do século 8 e teve seu período de maior desenvolvimento até o século 10. Depois disso, esse modelo de sociedade ainda sobreviveu em alguns reinos europeus até o século 15, no final da Idade Média. Mas, para entendermos como ele surgiu, é necessário voltarmos ao próprio início da época medieval. O fim do Império Romano O marco do início da Idade Média foi a desagregação do Império romano do Ocidente, sediado em Roma, no século 5. Esse Império estava passando por sucessivas crises econômicas, devido à falta de escravos, e seu prestígio político declinava, devido a seu enfraquecimento militar e às invasões de povos bárbaros aos seus domínios. Isolamento e proteção dos feudos Assim, povos como os germanos (do Norte da Europa), os hunos (da Ásia), os vândalos (da África), além de húngaros e vikings (da Europa oriental) estavam atacando diversos pontos dos domínios romanos. Em 476, Odoacro, rei de um desses povos invasores, derrubou o imperador de Roma. A partir de então, os diversos povos, antes conquistados por Roma, passaram a se organizar em reinos, condados e povoados isolados, para se protegerem dos ataques dos estrangeiros. Esse isolamento também se estendia à área econômica, levando-os a manter basicamente uma produção para consumo próprio. A população mais pobre, que vivia de trabalhos no campo, passou a submeter-se aos interesses dos poderosos de uma região, em troca de proteção contra esses ataques externos. Poder, no caso, significava a posse de armas e o comando de soldados. O estabelecimento dessa proteção dos mais poderosos aos pobres, em troca da lealdade, foi adotada pelos povos germanos, que foram dominando grande parte do extinto Império romano do ocidente. Com o passar dos séculos, os camponeses foram se tornando cada vez mais dependentes desses senhores. Assim, os trabalhadores do campo, além de entregarem os produtos que cultivavam aos seus protetores, passaram a dar-lhes suas terras e oferecerem seus serviços para outras atividades. Com isso, grande parte dos camponeses tornaram-se servos. Servidão: uma escravidão mais branda A servidão era uma espécie de escravidão mais branda, pois, ainda que os servos não fossem vendidos, estavam obrigados por toda a vida a entregarem produtos e prestarem serviços a seus senhores. Além disso, não eram proprietários das terras em que trabalhavam, pois estas lhes eram "emprestadas" pelos senhores. A servidão era transmitida dos pais para os filhos, assim como os títulos de nobreza também eram hereditários. Por sua vez, os nobres poderosos eram os chamados senhores feudais. Tinham esse nome em função do tipo de propriedade que possuíam, os feudos. Estes eram extensas propriedades de terras, mantidas isoladas para garantir a proteção das pessoas que ali viviam dos ataques de inimigos externos. Essas unidades eram supridas com uma produção de alimentos quase auto-suficiente, ou seja, produzida pelos próprios moradores, na medida de suas necessidades de consumo. No plano dessas relações servis, havia diversos tipos de impostos que os servos tinham que pagar aos seus senhores, incluindo também os serviços que prestavam a eles. Desse modo, no manso senhorial - que eram as terras do feudo de uso do senhor e representavam um terço da área total - os servos tinham que trabalhar vários dias por semana, numa prática chamada de corvéia. Impostos e taxas do feudo No manso servil - que eram as terras pertencentes ao feudo, de uso dos camponeses, mas não de sua propriedade - parte do que era produzido ia para o senhor feudal. Essa taxa ficou conhecida como talha. Como os senhores feudais não deixavam escapar nenhuma oportunidade de cobrança de taxas ou impostos, os servos também pagavam a banalidade, um imposto pelo uso dos fornos e moinhos que o senhor controlava. Havia também um pagamento relativo ao número de servos que moravam nos feudos, e era cobrado individualmente, "por cabeça" (ou em latim per capita): era a capitação. Por fim, o imposto da mão morta é uma demonstração cabal de até onde podia chegar a exploração dos senhores feudais sobre os servos, pois, além de herdar a servidão dos pais, quando estes morriam, os filhos ainda deveriam pagar mais essa taxa, para continuarem servindo ao mesmo senhor. Mas não eram somente servos e senhores feudais que viviam em função dos feudos. Havia também homens livres e vilões (moradores de vilas, ou pequenas povoações). Estes eram pessoas pobres, que, para terem direito de plantar e colher em suas terras, trabalhavam também no manso senhorial, pagando ao senhor a corvéia. Suserania e vassalagem Os vilões e homens livres contribuíam com um outro imposto, o censo, baseado no número de indivíduos que compunham essa população livre. A novidade do censo é que ele era o único pago em dinheiro, já que todos os outros tributos consistiam em serviços ou produtos agrários. Isso evidencia o quanto era pequena a circulação de moedas na Europa, durante esse período. Por fim, além do aspecto econômico dessas relações sociais, havia também práticas políticas e simbólicas dentro da sociedade medieval. Assim, os acordos entre os mais e os menos poderosos chamavam-se suserania e vassalagem. Dessa forma, os pobres tornavam-se vassalos dos senhores, que, por sua vez, eram chamados de suseranos. Essas relações de proteção e lealdade também ocorriam dentro da nobreza, quando um nobre mais pobre se tornava vassalo de um senhor mais rico e de maior prestígio. Havia vários ritos entre os nobres para celebrar esse pacto de fidelidade. No momento da assinatura do termo de doação de terras ou concessão de favores do suserano (senhor mais rico) ao vassalo (senhor mais pobre) um beijo entre os dois poderia selar o acordo, além de o vassalo ajoelhar-se perante o suserano. Podia-se receber também a investidura, que era um ramo de folhas ou outro objeto entregue pelo suserano ao vassalo. As investiduras funcionavam como símbolo das terras que a eles estavam sendo concedidas. Roma antiga - Introdução De Rômulo e Remo à República e ao Império Símbolo do poder: Senatus Populus Que Romanus (O Senado e o Povo Romano)
Para entender como Roma conseguiu adquirir tanta importância e poder é necessário conhecer sua história em mais detalhes.
A origem da sociedade romana não tem uma evidência concreta. Baseia-se numa lenda, que era uma maneira antiga de explicar fatos cuja memória se perdeu em tempos muito distantes. Assim, o poeta romano Virgílio alimentou a fantasia de seu povo ao contar que Roma teria sido fundada por dois irmãos: Rômulo e Remo. Os dois haviam sido abandonados pelo pai ao nascer e só sobreviveram por terem sido alimentados por uma loba. O fato é que os irmãos cresceram, vingaram-se do pai e receberam a missão de fundar uma cidade no local onde foram encontrados pelo animal. Essa lenda criou também a data exata do "nascimento" de Roma: os irmãos teriam fundado a cidade em 753 a.C. O próprio nome dessa localidade derivou do nome um deles (Rômulo), que acabou matando seu irmão Remo devido a disputas políticas. Como se pode ver, a origem de Roma foi inventada através de uma história que misturava o instinto animal (simbolizado pela loba que amamentou os irmãos), com o nascimento de algo novo (a cidade fundada num lugar deserto), retornando aos instintos agressivos no final (simbolizados na rivalidade entre os irmãos e no assassinato de um deles). Assim, essa origem imaginada serviu para os vários imperadores que a governaram justificarem o caráter agressivo e conquistador dessa sociedade romana. Patrícios e plebeus Se não temos dados concretos sobre sua fundação, podemos começar a contar a história de Roma, a partir da monarquia (753 a 509 a.C.). Nesse período, o meio de subsistência principal daquele povo era a agricultura. A sociedade romana dividia-se em quatro grupos, segundo a posição política, econômica e social de cada pessoa: havia patrícios, plebeus, clientes e escravos. A palavra "patrício" (do latim pater, pai) indicava o chefe da grande unidade familiar ou clã. Esses chefes, os patrícios, seriam descendentes dos fundadores lendários de Roma e possuíam as principais e maiores terras. Eles formavam a aristocracia, sendo que somente esse grupo tinha direitos políticos em Roma e formava, portanto, o governo. Já os plebeus eram descendentes de populações imigrantes, vindas principalmente de outras regiões da península Itálica, ou fruto dos contatos e conquistas romanas. Dedicavam-se ao comércio e ao artesanato. Eram livres, mas não tinham direitos políticos: não podiam participar do governo e estavam proibidos de casar com patrícios. Num outro patamar, vinham os clientes, também forasteiros, que trabalhavam diretamente para os patrícios, numa relação de proteção e submissão econômica. Assim, mantinham com os patrícios laços de clientela, que eram considerados sagrados, além de hereditários, ou seja, passados de pai para filho. Por fim, os escravos, que inicialmente eram aqueles que não podiam pagar suas dívidas e, portanto, tinham que se sujeitar ao trabalho forçado para sobreviver. Depois, com as guerras de conquista, a prisão dos vencidos gerou novos escravos, que acabaram se tornando a maioria da população. República e expansão As conquistas aos outros povos e regiões trouxeram o crescimento das atividades comerciais e das negociações em moeda. A riqueza se concentrou ainda mais nas mãos dos patrícios, que se apropriavam das novas terras. Isso tudo dividiu profundamente a sociedade romana entre ricos (aristocratas) e pobres (plebeus), além da grande massa de escravos que ia se formando. Também os membros do exército, enriquecidos pelas conquistas e saques, tornaram-se uma importante camada social. A expansão romana iniciou-se na República (509 a 27 a.C.), por meio das lutas contra os povos vizinhos para obterem escravos (séculos. 5 a 3 a.C.). Depois disso, expandiu-se para a Grécia (séc. 3 a.C.), Cartago (cidade africana que controlava o comércio marítimo no Mediterrâneo) e Macedônia (com a conquista da Grécia, havia formado um grande império), sendo estas duas cidades conquistadas no séc. 2 a.C. Na seqüência, o Egito, a Britânia (que corresponde aproximadamente à atual Grã-Bretanha) e algumas regiões da Europa e da Ásia foram conquistados no séc. 1 d.C. Desde sua origem, Roma fora governada por reis. Um deles foi expulso por tirania em 509 a.C. e o governo da República se estabeleceu, propondo uma nova divisão de poderes entre o Senado, os Magistrados e as Assembléias. Com as conquistas militares de novos territórios, os generais do Exército acumularam muitos poderes políticos e para deterem as revoltas dos povos dominados, resolveram concentrar o poder. Júlio César era um general que havia conquistado a Gália em 60 a.C. Depois disso, deu um golpe em Roma, atacando-a no ano de 49 a.C. e proclamando-se ditador perpétuo (ou seja, governaria com poderes ilimitados até a sua morte). Foi nesse mesmo ano que conseguiu dominar o Egito. No entanto, nem ele nem seu governo tiveram vida longa: foi assassinado pelos próprios romanos em 44 a.C. O Império Romano Com a morte de Júlio César, três líderes políticos governariam juntos. Um deles, Otávio, derrotou os outros e foi o primeiro imperador romano em 31 a.C., recebendo do Senado os títulos de Princeps (primeiro cidadão), Augustus (divino) e Imperator (supremo). Passou para a história com o nome de Augusto, embora essa denominação acompanhasse todos os imperadores que o sucederam. Roma teve 16 imperadores entre os séculos 1 e 3 d.C. A partir daí, começou a desagregação do Império e o descontrole por parte de Roma dos povos dominados. Entre os séculos 3 e 4 d.C., o imperador Dioclesiano dividiu o Império Romano numa parte ocidental e noutra oriental. Constantino, o imperador seguinte, tomou duas importantes medidas: reunificou seus domínios, tornando a capital do Império Romano Bizâncio (depois chamada de Constantinopla e, hoje, Istambul, na Turquia), localizada na parte oriental dos domínios romanos e legalizou a prática do cristianismo. Finalmente, Teodósio, um dos últimos imperadores, tornou o cristianismo religião oficial de todo o Império e dividiu-o novamente em duas partes, sendo as capitais Roma e Constantinopla. A primeira foi dominada pelos povos germanos em 476 e marcou o fim do Império Romano do Ocidente. A segunda foi dominada em 1453 pelos turcos e marcou o fim do Império Romano do Oriente. Quadro sintético História de Roma Períodos Datas Monarquia de 753 a.C. (data tradicional da fundação de Roma) a 509 a.C. (derrota dos Tarqüínios). República de 509 a.C. (proclamação da República) a 27 a.C. (Otaviano recebe o Senado o título de Augusto) Império de 27 a.C. a 476 d.C. (queda do Império romano do Ocidente)
Graciliano Ramos
Nascimento :27 de Outubro de 1892
Quebrangulo, AL
Morte : 20 de março de 1953 (60 anos)
Rio de Janeiro, RJ
Nacionalidade : Brasileiro
Ocupação : Romancista
Escola/tradição : Modernismo
Graciliano Ramos de Oliveira (Quebrangulo, 27 de outubro de 1892 — Rio de Janeiro, 20 de março de 1953) foi um romancista, cronista, contista, jornalista, político e memorialista brasileiro do século XX, mais conhecido por seu livro Vidas Secas (1938)
Biografia
Graciliano Ramos viveu os primeiros anos em diversas cidades do Nordeste brasileiro. Terminando o segundo grau em Maceió, seguiu para o Rio de Janeiro, onde passou um tempo trabalhando como jornalista. Voltou para o Nordeste em setembro de 1915, fixando-se junto ao pai, que era comerciante em Palmeira dos Índios, Alagoas. Neste mesmo ano casou-se com Maria Augusta de Barros, que morreu em 1920, deixando-lhe quatro filhos.
Foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios em 1927, tomando posse no ano seguinte. Ficou no cargo por dois anos, renunciando a 10 de abril de 1930. Segundo uma das auto-descrições, "(...) Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas." Os relatórios da prefeitura que escreveu nesse período chamaram a atenção de Augusto Frederico Schmidt, editor carioca que o animou a publicar Caetés (1933).
Entre 1930 e 1936 viveu em Maceió, trabalhando como diretor da Imprensa Oficial, professor e diretor da Instrução Pública do estado. Em 1934 havia publicado São Bernardo, e quando se preparava para publicar o próximo livro, foi preso em decorrência do pânico insuflado por Getúlio Vargas após a Intentona Comunista de 1935. Com ajuda de amigos, entre os quais José Lins do Rego, consegue publicar Angústia (1936), considerada por muitos críticos como sua melhor obra.
Em 1938 publicou Vidas Secas. Em seguida estabeleceu-se no Rio de Janeiro, como inspetor federal de ensino. Em 1945 ingressou no antigo Partido Comunista do Brasil - PCB (que nos anos sessenta dividiu-se em Partido Comunista Brasileiro - PCB - e Partido Comunista do Brasil - PCdoB), de orientação soviética e sob o comando de Luís Carlos Prestes; nos anos seguintes, realizaria algumas viagens a países europeus com a segunda esposa, Heloísa Medeiros Ramos, retratadas no livro Viagem (1954). Ainda em 1945, publicou Infância, relato autobiográfico.
Adoeceu gravemente em 1952. No começo de 1953 foi internado, mas acabou falecendo em 20 de março de 1953, aos 60 anos, vítima de câncer do pulmão.
O estilo formal de escrita e a caracterização do eu em constante conflito (até mesmo violento) com o mundo, a opressão e a dor seriam marcas de sua literatura. Graciliano foi indicado ao premio Brasil de literatura
Obras
Caetés (1933) (ganhador do prêmio Brasil de literatura);
Caetés é o primeiro romance de Graciliano Ramos. Foi publicado em 1933.
Romance em primeira pessoa. João Valério narra como vai sendo seduzido pelos ambientes aburguesados da cidade, como se envolve num caso de adultério com Maria Luisa, mulher de seu amigo e protetor, Adrião, e como se apodera, antropofagicamente, do cargo de Adrião após seu suicídio. João Valério fica fascinado pelo poder e não sabe o risco que corre diante de Maria, uma mulher possessiva, capaz de todas as coisas para conseguir o que quer. Ele acha que ela o ama, mas no fundo ela só quer tomar conta de tudo o que o marido Adrião deixou. Ela sente muita raiva de João, porque se não fosse ele, ela já teria conseguido. Entretanto, ela julga que ele é apenas mais uma pedra em seu caminho, que não irá trazer muitos problemas. "Isso é o que ela acha", pois João, embora venha de origem humilde, conhece muito bem a vida e as voltas que ela dá, por isso está sempre atento a tudo e a todos.
São Bernardo (1934);
Aborda a ascensão e a decadência de Paulo Honório, narrador da história, fazendeiro que conquista a propriedade que leva o nome do livro, uma fazenda em Viçosa.
Com uma linguagem renascentista, demonstra a angústia do personagem central, que a todo momento luta para escondê-la. No processo de adquirir tudo, de enriquecer, Paulo Honório acaba se desumanizando,e essa personalidade rude de Paulo Honório se arraiga a ele e se torna uma característica deste. Isso pode ser notado quando se diz que se arrepende das coisas que tinha feito, porém ele faria tudo de novo. A família de Honório se separa, pressionada pelo assassinato de Mendonça. Madalena, se vê sem saída e acaba morrendo (tudo leva a crer que ela se suicidou). O nome de seu filho é Enzo.
Personagens Pincipais
Paulo Honório: Homem já de idade, sobrancelhas cerradas e grisalhas, um tanto agressivo e violento, dá sua vida trabalhando na propriedade, São Bernardo, casa-se com Madalena, o que acaba sendo uma de suas grandes tristezas, porque acaba descobrindo que ela não é exatamente o tipo de companheira que queria. Tem alguns amigos em particular, mas sempre acaba na desconfiança, visão politica própria, sempre busca o que quer.
Madalena: Loura dos olhos claros, professora, criada pela tia D. Glória, a quem preza muito, casa-se com Paulo Honório e sai da cidade para morar em São Bernardo, moça entendida, conhecedora dos assuntos e sempre interessada, tem opinião própria e forte.
D. Glória: Tia de Madalena, acostumada a viver na cidade mas por cuidar da sobrinha desde sempre, decide morar com ela e o marido em São Bernardo. Já senhora, sempre viveu agitada, correndo de um lado para o outro para se sustentar e também a sobrinha, mas isso acaba quando vai para o campo.
Padilha: Antigo proprietário de São Bernardo, que herdara do pai, porém acabou perdendo para Paulo Honório devido à dividas. Viveu uma vida de economias indecentes e depois acaba dirigindo uma escola em São Bernardo. Torna-se chegado de Madalena, porém se acha um capacho da moça que o pede muitas coisas.
Ribeiro: Senhor já de idade, que vem da cidade para trabalhar com Paulo Honório. Teve uma vida respeitosa, porém perdeu tudo isso quando a cidade começou a se modernizar e já não precisavam mais dele. Sem dar opiniões nas conversas pessoais do patrão, torna-se amigo de D. Gloria.
Padre Silvestre: Um dos amigos de Paulo Honório, se envolve em política, mas quando se trata de patamares mais altos, a sua opinião é a mesma do jornal, e muita com frequência, até ele acaba sendo alvo de desconfiança de Paulo Honório.
Angústia (1936);
Angústia é um romance publicado por Graciliano Ramos em 1936. À época Graciliano estava preso pelo governo de Vargas e contou com ajuda de amigos, entre os quais José Lins do Rego, para a publicação.
A obra apresenta um narrador em primeira pessoa, Luís da Silva, funcionário público de 35 anos, solitário, desgostoso da vida e que acaba se envolvendo com sua vizinha, Marina. Com traços existencialistas, Luís mistura fatos do passado e do presente, narra num ritmo frenético como um grande monólogo interior.
Segundo o crítico Alfredo Bosi
"tudo nesse romance sufocante lembra o adjetivo “degradado” que se apõe ao universo do herói problemático; estamos no limite entre o romance de tensão crítica e o romance intimista. Foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano. Mas a sua descendência na prosa brasileira está viva até hoje".
O leitor de Angústia certamente lembrará de Crime e Castigo, de Dostoiévski, pois em ambos há as angústias de um crime, o medo de ser pego, a febre; em Angústia o crime é o clímax, enquanto em Crime e Castigo é o ponto de partida para a história, e a personagem consegue a redenção. Outra influência marcante é a dos naturalistas brasileiros, especialmente à Aluízio Azevedo, o determinismo e a animalização do homem. O narrador não quer ser um rato, luta contra isso; compara-se o tempo todo os homens aos bichos, porcos, formigas, ratos, e usa-se verbos de animais para as reações humanas.
Vidas Secas (1938);
Vidas Secas é um romance de Graciliano Ramos, escrito entre 1937 e 1938, publicado originalmente em 1938. O livro, narrado em terceira pessoa, aborda uma família de retirantes do sertão brasileiro condicionada a sua vida subumana, diante de problemas sociais como a seca, a pobreza, e a fome, e, consecutivamente, no caleidoscópio de sentimentos e emoções que essa sua condição lhe obriga a viver e a procurar meios de sobrevivência, criando, assim, uma ligação ainda muito forte com a situação social do Brasil hoje.
Durante o processo editorial do livro, Graciliano mostrou-se inteiramente cuidadoso com sua criação, frequentando a gráfica responsável pela elaboração do livro diversas vezes e examinando meticulosamente o material quando esse entrava no prelo, para ter a certeza que a revisão não interferiria em seu texto. Após sua publicação no Brasil em 1938, o livro circulou em território estrangeiro durante um bom tempo, sendo primeiramente lançado na Polônia e depois na Argentina, seguida por República Tcheca, Rússia, Itália, Portugal, França, Espanha e em outros.No Brasil, encontra-se em sua centésima sexta edição.
Por conta da consciência social que existe no conteúdo do livro, moldada através de uma estrutura dramática, o enredo tem sido analisado pelos críticos por meio da relação do homem com os meios naturais e sociais. De acordo com alguns especialistas, em Vidas Secas Graciliano contornou alguns estilos literários de sua época, o que lhe proporcionou pontos positivos no livro. Graciliano, por exemplo, foi cauteloso nas tradicionais ingerências do narrador opiniático e evitou o protesto ou o panfletarismo (que poderia usar, como outros autores da época, para criticar os aspectos sociais de seu país), o que certos críticos caracterizam como um "estilo seco, reduzido ao mínimo de palavras".
Vidas Secas figura entre os livros mais importantes da literatura brasileira, tendo ganhado, em 1962, o prêmio da Fundação William Faulkner (EUA) como livro representativo da Literatura Brasileira Contemporânea. Também conquistou um enorme público, tendo vendido até então mais de um milhão e meio de exemplares, enquanto é leitura obrigatória em vestibulares da USP, da PUC, da UFBA e da UFPA.
Estrutura
No que diz respeito à estrutura, o livro apresenta treze capítulos, dentre os quais alguns podem até ser lidos em outra ordem (romance desmontável), diferente da impressa no livro. Entretanto, alguns capítulos, como o primeiro, "mudança", e o último, "fuga", devem ser lidos nesta ordem. Esses dois capítulos reforçam a ideia de que toda a miséria que circunda os personagens de "Vidas Secas" representa um ciclo, em que, quando menos se espera, a situação se agrava e a família é obrigada a se retirar, repetidas e repetidas vezes.
A obra de Graciliano pode ser considerada um marco para a literatura brasileira, em especial o Modernismo Brasileiro, visto que há a implícita (e, em alguns casos, até explícita) crítica social a toda pobreza no sertão nordestino, que atinge uma boa parcela da população, e que, de fato, acaba por prejudicar todo o país, impedindo maiores desenvolvimentos. Há a tentativa, portanto, de se mostrar a desarticulação dessa região com o resto do país (um Brasil pobre dentro de todo o Brasil).
O próprio título da obra, se analisado corretamente, nos dará pistas importantes da mensagem que Graciliano quer passar: "Vidas" se opõe a "Secas" pois a primeira tem sentido de abundância, enquanto, a segunda, de vazio, de falta, configurando um paradoxo (ou "oxímoro", oposição de ideias resultando em uma construção de sentido ilógico). Além disso, denotativamente, o , e,adjetivo "secas" se refere a "vidas" dessa forma, teria o sentido de que a família sofre com a seca. Por outro lado, conotativamente, pode-se relacionar aquele adjetivo a uma vida privada, miserável.
Personagens de Vidas Secas
Fabiano, Sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia são os protagonistas do romance Vidas Secas – narrativa dos sertanejos retirantes da seca e seus dramas sociais, publicado por Graciliano Ramos em 1938.
O casal, Fabiano e Sinhá Vitória, representa o núcleo da trama: Fabiano mantém-se fiel a seus hábitos de vaqueiro - é uma extensão do animal, totalmente adaptado ao cavalo e à roupa de couro. No lado oposto, Sinhá Vitória também guarda o poder de adaptação às piores condições materiais, mas vive enaltecendo uma figura, para ela exemplar, o seu Tomás da bolandeira, um homem que sabia ler e tinha uma cama de couro. Para Fabiano o amigo é um vencido num meio em que apenas a parte animal é válida: "Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais".
Fabiano
Fabiano é uma pessoa que se ligou de maneira visceral ao meio. Ele se orgulha de sobreviver à seca e de fazer parte de uma paisagem que só admite os mais resistentes: ora exalta-se com secreta satisfação: ”Fabiano, você é um homem”; ora, se reconhece como a um animal: “Você é um bicho, Fabiano”, e o orgulho logo passa para a dúvida - quando pensa ser uma coisa da fazenda, um traste que possui apenas as perneiras, o gibão, o guarda-peito e o sapato de couro cru que, ao ser demitido, seria do vaqueiro que o substituísse.
Vaqueiro, rude, curto das idéias, sem instrução e sem capacidade de entendimento, Fabiano não tem planos e vive a procura de trabalho. Bebe muito e perde dinheiro no jogo. Sua auto-imagem varia de acordo com a situação e seu ânimo diante da dificuldade: quando se reconhece um homem e sente orgulho, Fabiano é a afirmação do indivíduo que se sobrepõe às dificuldades. Quando se reconhece um animal, ganha relevância o ser impessoal de existência desumana. Ao avistar Baleia – num momento de comunhão, envolvido na tragédia de pertencer à mesma realidade do animal, Fabiano conclui: “Você é um bicho, Baleia”.
Fabiano tenta, mas não consegue se comunicar. Como os animais, a família de Fabiano praticamente não tinha linguagem. Contando apenas com o instinto de sobrevivência, ele – um cabra vermelho, curtido pelo sol, é vencido por um soldado raquítico que desafia-o para uma partida de baralho. Humilhado, Fabiano chega a ser preso e não consegue se defender: a fragilidade de linguagem impede a possibilidade de divulgar a injustiça que sofrera e ele lamenta viver como um bicho, sem ter freqüentado a escola.
Sinhá Vitória
Sinhá Vitória, mulher de Fabiano, vive sua sina, sempre atenta aos sinais, estremece lembrando-se da seca, mas logo afasta a recordação, temendo que ela se realize, e reza baixinho. Esperta, sabe fazer conta, previne o marido sobre os trapaceiros e enganadores. Tem consciência da condição em que vivem, mas também tem planos e sonha. O maior dos seus sonhos é ter uma cama de couro, igual àquela de seu Tomás da bolandeira. Para o marido, um sonho impossível. "Cambembes podiam ter luxo?"
Além de cuidar dos filhos e da tapera, Sinhá Vitória ajuda o marido nas tarefas. Trabalha duro e, às vezes fica brava e briga com o marido, reclamando daquela vida embrutecida, sem ter sequer uma cama para dormir. "Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas." Briga com o marido, reclama que ele gasta muito com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano condena os sapatos de verniz que ela usava nas festas, "caros e inúteis" que a deixavam trôpega.
Por fim, quando nova seca se anuncia, Sinhá Vitória impele Fabiano a pensar no destino da família e, fazendo uma leitura da realidade, diz que os pássaros de arribação vão matar o gado. O marido fica intrigado. Como criaturas pequenas podem destruir animais como os bois, tão fortes quanto ele? Tentando impor o seu mundo até o fim, diz que os meninos iriam vaquejar como ele. Sinhá Vitória explode: "Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, (...) adorariam costumes diferentes".
No final, o desejo "vitorioso" de Sinhá Vitória: rumo à cidade grande, Fabiano imagina as dificuldades pelas quais passarão, mas também pensa os "meninos na escola, aprendendo coisas difíceis e necessárias".
Os meninos
Fabiano acha que eles devem assumir a forma de tatu – animal integrado à terra, com casco duro, protetor. Sinhá Vitória sonha com uma vida melhor para os filhos – possibilidade distante da identidade animal do marido, e pensa no homem que sabia ler e tinha uma cama de couro, mas que foi vencido pela seca. Queria para os filhos uma terra distante, um outro jeito de ser, outros costumes.
O menino mais novo admira os hábitos do pai quando ele cavalga totalmente adaptado ao cavalo - qual uma figura lendária, e tenta imitá-lo, absorvendo um pouco daquela grandeza que os tirava da vida resignada que levavam.
O menino mais velho, ao contrário, a lida de vaqueiro não o fascina. Ele deseja descobrir o sentido das palavras e recorre à mãe – porção mais “intelectual” da família, que freqüentemente o afasta, por não ter explicações para dar.
Os dois meninos, anônimos, vivem a brincar com Baleia em redor da tapera. Raramente procuram os pais, por receio de tomarem cascudos.
A primeira visita dos meninos à vila foi durante uma festa. Eles se assustaram com a variedade de coisas que existia no comércio bem sortido. Deslumbrados com a possibilidade de tudo aquilo ter um nome, uma existência. A dúvida do menino mais novo é se as coisas tinham nome e se os nomes eram uma criação humana ou divina. Ao serem excluídos da posse de objetos, os meninos são também excluídos da posse das palavras que os representam. Esta a maior pobreza, a falta da linguagem, por limitar as crianças a um mundo sem ultrapassagem pela imaginação.
Trepado na porteira do curral, o menino mais novo observa o pai tentando dominar uma égua brava. Feliz, planeja fazer algo grandioso um dia, quando crescer. Assim, então, seria admirado pelo irmão e por Baleia.
O menino mais velho é curioso. Ao ouvir a palavra "inferno", durante uma conversa de Sinhá Terta com a mãe, quis saber o significado. Sinhá Vitória referiu-se vagamente a um certo lugar ruim. O menino não compreende como uma palavra tão bonita pode significar "coisa ruim". Pergunta ao pai, que o repele. De novo, insiste com a mãe que, zangada, aplica-lhe um cocorote. O menino mais velho não se conforma. Indignado, se consola com a amiga Baleia: "O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história". Melancólico, e apesar do vocabulário limitado, o menino mais velho se abraça à Baleia e fala do mundo, das estrelas, do céu e do inferno.
Baleia
A cachorra Baleia é um membro da família. Pensa, sonha e age como gente. Solidária, Baleia participa das aventuras e dificuldades da família de retirantes; chega a se contentar, mesmo que faminta, apenas com os ossos de sua caça.
Aproximada a seres que vivem como bichos, a cachorra é humanizada. No inverno, é quando a família experimenta algum aconchego, reunidos em torno do fogo: Fabiano sentado no pilão, Sinhá Vitória acolhe os meninos no colo, e a cachorra Baleia "com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinzas".
Ao ser sacrificada, por suspeita de cólera, Baleia vislumbra o "céu dos cachorros, cheio de preás".
A Terra dos Meninos Pelados (1939);
A terra dos meninos pelados é um livro de contos infanto-juvenil de Graciliano Ramos publicado em 1939.
Conta a história um menino chamado Raimundo, que era careca e tinha um olho azul e outro preto. Por ser considerado estranho, seus vizinhos não falam com ele e o apelidam de Raimundo Pelado. Por não ter amigos, Raimundo começa a falar sozinho, cria um país chamado Tatipurun, onde as pessoas têm um olho preto e outro azul, e onde não existem cabelos em suas cabeças.
Brandão Entre o Mar e o Amor (1942);
Brandão entre o Mar e o Amor é um romance escrito por Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Aníbal Machado e Rachel de Queiroz. Foi publicado em 1942.
Histórias de Alexandre (1944);
Histórias de Alexandre é um livro de contos de Graciliano Ramos, publicado em 1944. Compendiando histórias coletadas do folclore alagoano, Graciliano reúne neste livro contos e fanfarronices de um típico mentiroso do sertão. A obra foi reeditada em 1962 com o título de Alexandre e Outros Heróis, reunindo, além dos contos de Alexandre, a história de A terra dos meninos pelados e Pequena história da República.
Infância (1945);
Infância é um livro de Graciliano Ramos. Foi publicado em 1945. O livro percorre um período que vai dos dois anos do narrador até a puberdade. Sua construção acompanha os passos do autor, redescobridor de seu mundo de menino nordestino, repleto de lembranças dolorosas: "Medo. Foi o medo que me orientou nos meus primeiros anos, pavor".
Num misto de imaginação e memória, o retrato de sua meninice revela o desprezo pela criança como sujeito social, na passagem do século XIX para o XX, onde o autor deixa perceber claramente a severidade como instrumento mais eficaz para o modelo de educação aí vigente: "Aquele que ama o seu filho, castiga-o com freqüência (...)".
Graciliano esboça um quadro de nossa história dos costumes, em que uma ética pedagógica grosseira surge identificada com práticas punitivas contra crianças: cascudos, bolos de palmatória, puxões de orelhas e castigos de toda sorte.
Histórias Incompletas (1946);
Histórias Incompletas é um livro de contos de Graciliano Ramos, publicado em 1946.
É composto pelos contos:
Um ladrão
Luciana
Minsk
Cadeia
Festa
Baleia
Um incêndio
Chico Brabo
Um intervalo
Venta-romba
Insônia (1947);
Insônia é um livro de contos de Graciliano Ramos que foi publicado em 1947 e possui treze contos.
Memórias do Cárcere, póstuma (1953);
Memórias do Cárcere é um livro de memórias de Graciliano Ramos, publicado postumamente (1953) em dois volumes. O autor não chegou a concluir a obra, faltando o capítulo final.
Graciliano havia sido preso em 1936 por conta de seu envolvimento político, exagerado por parte das autoridades após o pânico insuflado com a chamada Intentona Comunista, de 1935. A acusação formal nunca chegou a ser feita.
Enredo
No livro, Graciliano descreve a companhia dos mais variados tipos encontrados entre os presos políticos: descreve, entre outros acontecimentos, a entrega de Olga Benário para a Gestapo, insinua as sessões de tortura aplicadas a Rodolfo Ghioldi e relata um encontro com Epifrânio Guilhermino, único sujeito a assassinar um legalista no levante comunista do Rio Grande do Norte.
Durante a prisão, diversas vezes Graciliano destrói ou afirma destruir as anotações que poderiam lhe ajudar a compor uma obra mais ampla. Também dá importância ao sentimento de náusea causado pela imundície das cadeias, chegando a ficar sem alimentação por vários dias, em virtude do asco.
Da cadeia, Graciliano faz comentários sobre a feitura e a publicação de Angústia, uma de suas melhores obras.
Censura
Diz o crítico Wilson Martins, a respeito da censura que o livro sofreu, adulterando o original do autor para sempre:
Houve também na história dessas relações, a grande crise provocada por Memórias do Cárcere. Sabia-se que o PCB exerceu forte pressão sobre a família de Graciliano Ramos para impedir-lhe a publicação, acabando por aceitá-la à custa de cortes textuais e correções cuja verdadeira extensão jamais saberemos. Nas idas e vindas entre a família e os censores do Partido, resultaram, pelo menos, três “originais”, datilografados e redatilografados ao sabor das exigências impostas. Supõe-se que o último deles recebeu o imprimatur canônico, acontecendo, apenas, que, na confusão inevitável de tantos “originais”, as páginas escolhidas para ilustrar os volumes diferiam sensivelmente das impressas, suscitando dúvidas quanto à respectiva autenticidade.
—Wilson Martins, Gazeta do Povo
Ainda segundo o crítico, fez publicar a denúncia no jornal O Estado de S. Paulo, recebendo então acerbas críticas do PCB, o que para ele era a comprovação da veracidade das alterações feitas na obra que, após reveladas, haviam incomodado o editor, José Olympio. Os filhos de Graciliano, Ricardo e Clara, teriam mais tarde confirmado a intervenção política no texto.Tudo é verdade de Graciliano
Viagem, póstuma (1954);
Viagem é o um livro de crônicas de Graciliano Ramos. Publicado postumamente em 1954 narra a viagem que Graciliano fez em 1952 à Tchecoslováquia e à URSS.
Apesar de ser filiado ao Partido Comunista, a convite de Luís Carlos Prestes, sua narrativa se pretende neutra. Apesar do tom neutro, o livro não é isento de críticas ao pensamento político brasileiro; ao falar do culto soviético à imagem de Stalin, Graciliano provoca: "Realmente não compreendemos, homens do Ocidente, o apoio incondicional ao dirigente político; seria ridículo tributarmos veneração a um presidente da república na América do Sul" (RAMOS:2007,54)
Linhas Tortas, póstuma (1962);
Viventes das Alagoas, póstuma (1962);
Alexandre e outros Heróis, póstuma (1962);
Em 1944, compendiando estórias coletadas do folclore alagoano, Graciliano entrega ao seu público o livro Histórias de Alexandre, reunindo as fanfarronices de um típico mentiroso, nos depois aproveitadas pelo humorista Chico Anísio no personagem ?Pantaleão?. - Esta obra foi reeditada postumamente, em 1960, com o titulo Alexandre e outros heróis.Contos brasileiros que nos falam de um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre, que vivia antigamente no sertão do nordeste. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava. As impossíveis histórias de Alexandre pertencem ao folclore do nordeste; mais que uma criação literária, são de valor antropológico. A mulher, Cesária, fazia renda e adivinhava os pensamentos do marido. Tinha sempre uma resposta na ponta da língua e estava sempre pronta a completar a narração do marido. E eles não brigavam, não discutiam. Alexandre era homem de posses miúdas e Cesária nada possuía. Os outros personagens viviam todos na orla da mendicância declarada, flutuando entre a magia e a arte popular sem preço, indivíduos marginais, inofensivos, não integrados em nenhuma atividade produtiva. E as histórias que Alexandre conta ao seu público humilde têm um traço comum: são inverossímeis. Só poderiam acontecer no âmbito da ficção. Por trás de Alexandre, locutor das histórias, há o narrador, uma figura cuja identidade muito se discute, disfarçado na figura do seu personagem.A Primeira Aventura de Alexandre, História de uma Bota, Uma Canoa Furada e A Doença de Alexandre contém motivos conjugados da superioridade e da imunidade de Alexandre. Em O Olho Torto de Alexandre, ele narra as circunstâncias que o fizeram vesgo, amplificando-as com um fator suplementar: vê melhor pelo olho defeituoso. As outras histórias configuram um animal excepcional: História de um Bode, Um Papagaio Falador, Um Missionário, História de uma Guariba e Moqueca. Aparece, também, o objeto excepcional, verificável nos três contos restantes: O Estribo de Prata, O Marquesão de Jaqueira e A Espingarda de Alexandre. Tem-se, assim, nesses relatos, dois níveis bem nítidos e que se opõem com clareza: o nível real e o sonho, feito de compensações, no qual o real é superado e, por força do contraste, salientado. Enfim, este é um livro irônico, bem humorado, escrito inicialmente para criança, mas no qual os adultos acham ainda mais graça.
Cartas, póstuma (1980);
O Estribo de Prata, póstuma (1984);
Cartas à Heloísa, póstuma (1992);
Traduções
Graciliano Ramos também dominava o inglês e o francês. Realizou algumas traduções:
Memórias de um Negro de Booker T. Washington, (1940);
A Peste de Albert Camus, (1951)
Vidas Secas (2003), de Graciliano Ramos
Vidas Secas (2003), de Graciliano Ramos, é um romance que marcou a literatura nacional por expor deforma contundente a realidade do sertanejo, tendo que enfrentar não somente os desafios advindos de uma natureza inóspita, mas também a exclusão proporcionada pela sociedade, incapaz de garantir uma vida digna a determinados grupos sociais que se tornam alvo das normatizações existentes.
Não se trata de uma mera exposição de flagelos, mas sim da constituição de um amplo painel sobre as
relações humanas e das pessoas inseridas em um ambiente hostil, que fustiga o corpo e mente, levando o homem
aos seus limites na busca pela sobrevivência, agravada pela inexistência da atuação estatal, aumentando o
sentimento de exclusão do nordestino.
Nesse sentido, Vidas Secas se revela como um documento atinente à vida do sertanejo, sendo captado.
Expondo conflitos internos que levam o ser humano a encontrar na sua resistência o único fator para garantir sua subsistência, num ambiente pouco propício a essa condição, como também ao abandono do Estado.
Não perde sua atualidade em virtude das situações retratadas na obra e que ainda ocorrem no Brasil.
Considerando tais aspectos, podemos destacar, num primeiro momento, os fatores que influenciaram na elaboração de Vidas Secas, assim como evidenciar aspectos que a tornam um romance com alto teor de denúncia social.
O impacto da história de Fabiano e de sua família ganha contornos ainda mais expressivos, indicando o potencial artístico da obra de Graciliano Ramos.
A abordagem da obra Vidas Secas, , envolve num primeiro momento, a descrição dos fatores que influenciaram na sua composição, sobretudo do ideário artístico vigente no Brasil, que acaba sendo um referencial importante no momento de criação artística, por apresentar princípios que podem orientar na sua execução. Nesse sentido, Vidas Secas foi elaborado sob o espectro do movimento Modernista, que
trouxe para o panorama cultural e artístico brasileiro questões de cunho nacionalista e regionalista, favorecendo as discussões sobre a realidade nacional.
O MOVIMENTO MODERNISTA NO BRASIL E AS QUESTÕES NACIONALISTAS E REGIONAIS
A Literatura Brasileira se caracteriza pela existência de movimentos literários que acabam revelando,em parte, a forma como os escritores desenvolvem suas obras, assimilando algumas características comuns inerentes à época em que escreveram. Os movimentos literários, na concepção de Bosi (1981, p. 49), “refletem
um determinado contexto histórico. As características desses movimentos vão resultar em estilos de época ou escolas literárias, influenciando os artistas e fornecendo um significado às obras elaboradas no período”.
Durante séculos, a produção literária brasileira se prendia aos princípios oriundos do exterior, sobretudo da cultura européia, havendo uma transposição de estilos, possibilitando a abordagem de temas nacionais, ainda que a linguagem seguisse os maneirismos advindos dos movimentos literários internacionais.
Na história literária nacional, um dos movimentos literários que mais se destaca é o Modernismo, cuja importância é definida por Gonzaga da seguinte forma:
No Modernismo questiona-se toda a arte acadêmica, com suas fórmulas envelhecidas, a expressão gasta, a linguagem convertida em clichês. O estilo parnasiano e o bacharelismo são os alvos prediletos dos ataques modernizadores. O novo nacionalismo irá assumir uma perspectiva crítica,um tom anárquico e desabusado, como se o país causasse no artista uma mistura de orgulho e deboche. O caminho é a celebração do primitivismo,isto é, de nossas origens indígenas e extra-européias. É uma espécie de retorno às fontes primeiras de uma civilização original. Para ali encontrar algo que o colonialismo português não conseguira esmagar: a ausência
de repressões morais e sexuais, e a alegria de viver, sobremodo entre os índios. Esta pesquisa de uma subjacente alma nacional só poderia ser realizada, no entanto, com o instrumental artístico da modernidade. Aliás,o Brasil seria esta síntese do primitivo e do inovador.
No Brasil, o Modernismo tem como marco principal a Semana de Arte Moderna, ocorrida em fevereiro de 1922, tendo como principal objetivo, segundo Candido e Castello (1968, p. 09) a “(...) adesão profunda aos problemas da nossa terra e da nossa história contemporânea. De fato, nenhum outro momento da literatura brasileira é tão vivo sob este aspecto; nenhum outro reflete com tamanha fidelidade, e ao mesmo tempo com tanta liberdade criadora, os movimentos da alma nacional”.Mediante a esse posicionamento, o Modernismo se tornou um movimento que radicalizou a produção cultural brasileira, por romper com as tradições do passado e retomar as origens nacionalistas, constituindo uma arte genuinamente “verde e amarela”, sem perder os referenciais universais que lhe garantiram uma percepção universal única. O nacionalismo abordado no movimento Modernista se bifurcou, conforme evidencia Montuoro:
“(...) de um lado, havia um nacionalismo crítico, consciente, de denúncia da realidade brasileira, politicamente identificado com as esquerdas; de outro, um nacionalismo ufanista, utópico, exagerado, identificado com as correntes políticas de extrema direita”.
Independente da corrente em que se situava, no caso da literatura, o movimento Modernista possibilitou uma abordagem mais crítica da sociedade brasileira, onde as alegorias e as paródias foram sendo substituídas por uma escrita mais concisa, por valorizar a língua coloquial e discutir abertamente questões sociais relevantes
no país no período (décadas de 1930 e 1940).
As transformações sociais experimentadas no Brasil, na visão de Cademartori (1986, p. 109),influenciaram a literatura, principalmente por ser um momento em que uma das propostas artísticas em vigor (Modernismo) “toca justamente no ponto de uma retomada da literatura social. Assim, podemos falar mesmo em uma redescoberta do Brasil pela literatura. Um Brasil que, na verdade, sempre tinha existido, mas que fora até então presença excessivamente reduzida na literatura”.
Os autores passam a ter uma visão mais crítica da realidade nacional, não se prendendo mais a tendências literárias externas, mas procurando elaborar uma identidade literária genuinamente brasileira, com valores nacionais,onde o contexto social se tornou um referencial relevante na constituição de um Brasil multifacetado, indo muito além da simples divisão rural/urbano.
No que se refere à valorização do nacionalismo pelo movimento Modernista, Braga (2006, p. 185)
A partir de 1924 que o modernismo passa a buscar em nossas raízes a
brasilidade para ser impressa nas obras de arte, procurando agora uma emancipação em relação à cultura da Europa. A Antropofagia, teorizada e colocada em prática por diversos artistas que participaram da Semana de Arte Moderna, vê na singularidade cultural do Brasil, a necessidade
de incorporar, “comer” outras culturas, como forma de marcar a sua diferença. A incorporação de novos procedimentos e práticas artísticas de outras culturas, no entanto, não poderia significar submissão excessiva e comprometer os projetos de uma identidade nacional. A assimilação precisava ser vista como incorporação do que seria mais particular. A
atualização desta nova ordem pressupunha um envolvimento com a realidade nacional. Surge, então, a necessidade de dar uma nova identidade para a arte, questionando as formas de representação e buscando uma identidade brasileira com viés nacionalista.
O Modernismo abriu novas possibilidades para a literatura brasileira, sobretudo na exposição crítica da realidade brasileira, aprofundando o desenvolvimento de histórias de cunho regional, mas de valor universal,possibilitado pela Antropofagia, justamente por retratar a situação do homem em seu ambiente natural, bem como das relações que estabelece com seus semelhantes.
Essa premissa se torna mais evidente na 2ª Fase do Modernismo, em que a literatura passa a ter condições de servir como um instrumento de denúncia social, explicitando as razões do atraso cultural e social em que se encontrava o Brasil no período, conforme evidencia Beatriz:
A primeira característica da 2ª Fase do Modernismo foi uma tendência à politização em graus mais acentuados do que tinham acontecido no Modernismo em 1922. Se na “fase heróica” tinham apresentado como preocupação fundamental uma revolução estética, a geração artística surgida nos anos 30 volta-se para uma literatura participativa, de intromissão na vida política. Os modernistas do primeiro tempo continuavam a produzir, Mário de Andrade, foi decisivo para esses novos
rumos que o próprio movimento assumiu. Mário defendia uma postura artística de acompanhamento das reivindicações populares, contribuindo para esse processo de politização a que se fez referência. Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e todos os outros também continuavam atuantes. Algumas conquistas do primeiro tempo do Modernismo continuavam como: a crítica social, a concisão, a coloquialidade. Um
acontecimento que marcou a geração literária do período foi a realização do Congresso regionalista do Recife , em 1926 , participaram José Lins do Rego, Luís Jardim, José Américo de Almeida, liderados pelo sociólogo Gilberto Freyre, suas idéias tiveram grande influência na arte brasileira.
A publicação do romance A Bagaceira, de José Américo de Almeida , em 1928 , solidifica a nova tendência, neo-realismo nordestino, cujo maior representante viria a ser Graciliano Ramos. O regionalismo era uma tendência já antiga, mas os modernistas diferenciaram, através da práticade um regionalismo crítico, voltado para as discussões dos problemas sociais. Os principais temas dessa corrente literária foram: a seca, a fome,a miséria, o arcaísmo das relações de trabalho, a exploração do camponês,a opressão do coronelismo, a reação dos cangaceiros, etc.
As transformações sociais advindas das mudanças no contexto mundial e nacional fazem com que os autores da 2ª Fase do Modernismo se concentrem na descrição do homem brasileiro, fazendo com que o regionalismo seja uma constante nas obras do período, havendo uma configuração da sua atuação no meio natural e social, assumindo uma condição de denúncia em relação à sua vida, tais aspectos são relatados por Bosi (1981).
Há uma valorização dos conflitos que surgem entre o homem com seu semelhante e entre o homem e o meio em que habita, veio explorado com maior contundência pelos autores nordestinos, que passam a fazer uma espécie de “radiografia” das relações estabelecidas no âmbito social, sobretudo na exploração da classe
burguesa sobre o sertanejo, como também a sua resistência perante aos desafios oriundos do semi-árido nordestino.
Sobre essa condição, Cademartori (1986, p. 109) expõe que “os romancistas regionalistas chamam a atenção para os problemas sociais das regiões mais carentes do Brasil. Eles usam uma linguagem coloquial e crítica
herdada dos primeiros modernistas”.
Chiappini (1995, p. 156), sobre o regionalismo, expõe:
Estudar o regionalismo hoje nos leva a constatar seu caráter universal e moderno. Surgindo como reação ao iluminismo e à centralização do Estado-nação, hoje se reatualiza como reação à chamada globalização.
Se, para um pensamento não-dialético, a chamada “aldeia global”suplantou definitivamente a “aldeia” e tudo o que dela fale e por ela se interesse, a dialética nos faz considerar que a questão regional e a defesa das particularidades locais hoje se repõem com força, quanto mais não seja como reação aos riscos de homogeneidade cultural, à destruição da natureza e às dificuldades de vida e trabalho no “paraíso neoliberal”.
(Por isso o regionalismo literário hoje, em muitos países, inclusive aqui,reaparece discutindo questões de identidade problemática e de ecologia).
O regionalismo possui o caráter de contextualizar a ação humana em seu habitat específico, apresentando características universais no que diz respeito aos seus pensamentos e à forma com que interage com as pessoas e com o meio natural, sobretudo quando este se revela indômito, como ocorre com o sertão nordestino.
Há um importante deslocamento na análise da situação do homem brasileiro, deixando-se um pouco o contexto urbano, representado por São Paulo e Rio de Janeiro e mergulha-se de maneira mais contundente no interior do Brasil, para se retratar as mazelas sociais existentes, que são conseqüências do atraso econômico,cultural e político do país. Assim, a literatura consegue alcançar um nível de desenvolvimento que a capacita a analisar o país sem necessitar usar alegorias ou metáforas, condição advinda da liberdade criativa proposta no Movimento Modernista, permitindo até um posicionamento político na concepção de obras literárias.
O rompimento com o formalismo permite a adoção de uma linguagem menos rebuscada, o que colabora para a transcrição da realidade envolvendo o homem brasileiro tanto no contexto urbano como no rural, fazendo com que as obras tenham um cunho quase documental, mesmo mantendo sua estrutura de romance.
Em relação a essa realidade, Neves e Pontes (2001, p. 121) afirmam:
Com isso, a literatura brasileira, no período de 1930 a 1945, apresentasse particularmente rica, no plano da ficção narrativa, do ensaio social,bem como no aprofundamento do romance moderno, notadamente do chamado romance de 30 no Nordeste, participando com seu contributo
temático sobre o cangaço, sobre a seca, sobre o fanatismo religioso, sobre a problemática dos engenhos e de sua produção, sobre os latifúndios;enfim, da exploração do homem pelo homem, no trabalho árduo da atividade agrícola.
Por meio do filtro oriundo do Modernismo, a literatura regionalista pôde se desenvolver agregando elementos atinentes à vivência dos seus personagens, baseados em pessoas normais. Dessa maneira, ela conseguiu traduzir a realidade existente, passando a ter uma significação histórica relevante, devido ao seu perfil social.
Na descrição do Nordeste brasileiro, a literatura regionalista ganha ainda mais impacto, por apresentar de forma clara e concisa a vivência do homem num espaço caracterizado por inúmeras dificuldades advindas da seca, além de evidenciar os problemas oriundos da seara econômica e política, em que a exploração do homem
pelo homem se torna uma regra, favorecida pela falta de perspectivas do nordestino que, muitas vezes, abandonado à própria sorte, não consegue modificar a sua sina.
Na percepção de Neves e Pontes (2001, p. 122), “esse tipo de ficção coloca-nos, pois, em contato com os problemas da realidade sociocultural do Nordeste do Brasil, apresentando, assim, aspectos múltiplos da vida socioeconômica da região”.
Nesse sentido, Vidas Secas, de Graciliano Ramos é um retrato contundente da realidade que cerca o sertanejo na aridez do território nordestino brasileiro, sobretudo em relação à tentativa de sobrevivência, num solo que se caracteriza pela quase ausência de vida e pela manutenção de um pequeno fio de esperança diante
da seca implacável. A obra apresenta ao país a vida do sertanejo diante do sertão nordestino, tornando-se um importante referencial dentro do movimento Modernista no que se refere à abordagem de temas regionais.
ASPECTOS RELATIVOS À OBRA VIDAS SECAS
Graciliano Ramos se perfila na 2ª Fase do Modernismo, tornando-se um dos nomes mais significativos do romance brasileiro, tendo como características, segundo Coutinho (1970, p. 326), “(...) a problemática da terra, motivo agora de meditação, aprofundamento e denúncia social. Trata-se de obra inquietante e de inquietação,
denunciadora e angustiada, numa perquirição cruel trazida do auscultar constante do intercâmbio humano, num regionalismo nem um pouco redutivo e sim aberto para conter toda a experiência vital”.
Os principais fatores considerados pelos autores na 2ª Fase do Modernismo, segundo Braga (2006, p.187) são:
-“questionamento da postura das oligarquias;
- efeitos da crise econômica mundial;
-choques ideológicos que levaram a posições mais definidas e engajadas;
- desenvolvimento de uma literatura marcada pela denúncia social;
- as relações eu/mundo, atingindo elevado grau de tensão”.
Graciliano Ramos, desde o início de sua vida literária, em 1933, valorizou aspectos relativos ao regionalismo,sobretudo dos resultados advindos da seca nordestina, como as desigualdades sociais, a desvalorização do ser humano no aspecto social e econômico, a miséria e a fome.
Em relação à obra Graciliano Ramos, Candido e Castello (1968, p. 295) afirmam que:
A composição de sua obra resulta de um processo rigorosamente seletivo e subordinado essencialmente aos limites da experiência pessoal,notadamente sertaneja. (...) Compõem-se de aspectos da paisagem do Nordeste agreste, das zonas agro-pecuárias, em ligação com pequenos centros urbanos. O romancista intuiu admiravelmente a condição subhumana do caboclo sertanejo, com a sua consciência embotada, e sua inteligência retardada, as suas reações devidas a reflexos condicionados por um sofrimento secular, por sua vez determinado pelas relações do homem com a própria paisagem e pela passividade ante os mais poderosos.
Nesse cenário, Vidas Secas se destaca por apresentar seres oprimidos pela seca no sertão nordestino,onde a condição humana é quase obliterada, devido ao sofrimento, e as relações humanas acabam se definhando,restando apenas o instinto de sobrevivência a guiar os passos de seus personagens.
A narrativa de Vidas Secas ganha impacto em virtude da linguagem adotada pelo autor, que se caracteriza por ser enxuta, concisa, isso auxilia na construção de um clímax que revela a força do meio sobre o indivíduo, principalmente quando a escassez de recursos é uma constante, levando os personagens ao limite de suas resistências.
Em Vidas Secas, ao se retratar os percalços de uma família de retirantes no sertão nordestino, Graciliano Ramos criou uma obra de valor documental, mesmo se tratando de ficção, alcança-se um alto nível de realismo dentro da literatura brasileira.
A estrutura dramática de Vidas Secas é fruto de uma percepção do autor diante da condição humana no meio em que está inserido, produzindo grandes conseqüências no seu modo de viver e interagir nessa situação.
A valorização desse cenário, na obra de Graciliano Ramos, remete à sua condição de escritor perfilado a 2ª Fase do Modernismo brasileiro, por apresentar uma preocupação social mais contundente, sobretudo das condições precárias de vida do nordestino.
Pinho e Oliveira, em relação ao romance, afirmam:
Em Vidas Secas, considerado pela maioria dos críticos literários como a principal obra de Graciliano Ramos, é praticamente impossível não se emocionar com o sofrimento de uma família de retirantes que tenta sobreviver à seca. O grupo que quase não se comunica e mais se parece
com bichos, é liderado por Fabiano que, para manter a família viva,humilha-se diante do soldado amarelo e do proprietário das terras onde trabalha como vaqueiro. Além dele, o sofrido grupo é composto por: Sinhá Vitória, a esposa, cujo único desejo era possuir “uma cama real, de couro e sucupira”; os meninos, o mais velho e o mais novo que, por não terem
nome próprio, representam a condição de anonimato em que vivem os sertanejos; a cachorra Baleia que é humanizada e faz contraponto à animalização da família que ela acompanha; e o papagaio, que só sabia latir e foi sacrificado para que o grupo não morresse de fome.
As situações apresentadas por Graciliano Ramos representam um retrato fiel da vida do nordestino que,por falta de perspectivas, torna-se um errante, sem ter grandes perspectivas a mover sua vida, busca a sobrevivência perante à extrema desolação advinda da seca, justifica-se o processo de animalização dos seres humanos, como forma de conseguir manter um mínimo de consciência para sustentar sua sanidade diante de um ambiente tão inóspito e quase inadequado à vida.
O que torna a obra ainda mais contundente é o fato de ser narrada em terceira pessoa, permitindo a descrição do que passa no íntimo de cada personagem, favorecendo a compreensão das motivações de cada um diante dos desafios que se apresentam, tanto no espaço rural como no urbano.
As relações humanas em Vidas Secas são mantidas como forma de compartilhamento do sofrimento,mas se tornam tão distantes que os diálogos se resumem a poucas trocas de palavras e as interações de afeto e carinho quase inexistem, demonstrando o nível de endurecimento do ser humano, fruto das condições ambientais e da falta de perspectivas reais de mudança de condição de vida.
Em relação a esse aspecto, Daniel expõe:
O que intimida e encanta neste romance - mais do que a sua estrutura estilística - é a capacidade do autor em expressar, através de cada personagem, o problema da
comunicação e a solidão. O cuidado em focalizar cada um dos personagens isoladamente indica a solidão e o primitivismo vivido pelo grupo, como resultado dos toscos e ineficientes meios de sociabilidade a que tiveram acesso. Assim, apesar de
partilharem misérias, afeições e espaços comuns, os personagens vivem entregues ao seu próprio abandono, já que não conseguem articular mais do que rudes palavras,
exclamações, insultos ou interjeições.
Outro aspecto relevante na obra é a denúncia do descaso das autoridades com a condição do nordestino,que acaba refém da própria sorte, tendo que contar unicamente com seus parcos recursos para garantir sua subsistência. Não é só a condição natural que incide fortemente sobre os personagens, mas também a estrutura social vigente (representada pelo Soldado Amarelo) que, de certa forma, colabora para sua exclusão, fazendo com que o homem se distancie de suas raízes para se tornar um andarilho, em busca de um destino menos cruel.
As denúncias evocadas em Vidas Secas são apresentadas por Gonzaga da seguinte forma:
O autor faz uma dura crítica a estrutura política e social do nordeste,salientando:-
1º- o abuso de autoridade praticada pelo soldado amarelo;
2º- a passividade das autoridades diante da injustiça;
3º- a pobreza e a ignorância como fundamento da perseguição policial;
4º- a tortura como recurso empregado pela policia;
5º- a impossibilidade do sertanejo freqüentar a escola.
Mediante a esse posicionamento, o autor demonstra que o meio urbano é tão ou mais selvagem que o espaço rural, pois o ser humano consegue se adaptar à natureza, dependendo unicamente dos seus sentidos e habilidades, mas na sociedade estará sempre submetido a uma normatização que nem sempre lhe propicia uma condição de vida digna, adequada a sua condição humana.
Sobre esse aspecto, Braga (2006, p. 187) afirma que:
“Fabiano adapta-se à natureza e a sociedade, está conformado com sua pobre condição. (...) Fabiano não é um cidadão e sabe disso, tanto que chega a insinuar que o Estado só se ocuparia dele para puni-lo caso cometesse um crime. O sertanejo pode até adaptar-se à natureza, mas estará sempre submetido à sociedade.”.
Os efeitos da condição natural com a situação social existente acabam influindo decisivamente na vida dos personagens criados por Graciliano Ramos, que vão endurecendo seus sentidos, conforme aumenta as vicissitudes na jornada que empreendem pelo Sertão Nordestino.
Em decorrência dessa condição, ocorre o processo de animalização dos personagens, detectada por Pinho e Oliveira na seguinte afirmação:
A animalização das pessoas também pode ser percebida nas atitudes praticadas pelos personagens. No trecho que segue, Sinhá Vitória,obedecendo o seu instinto de sobrevivência, lambe o sangue de preá acumulado no focinho da cachorra Baleia (“Iam-se amorrodando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se
todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo”).
Assim, homem e animal são colocados em um mesmo nível.
Esse processo de animalização é perfeitamente compreensível diante das agruras que os personagens vivenciam, sobretudo Fabiano e sua família, que só encontram alívio para suas necessidades em momentos fugazes, como se estivessem atrelados a um círculo vicioso, onde preponderam a fome, a miséria e a falta de perspectivas.
Os personagens da obra Vidas Secas não são figuras singulares, mas retratam com veracidade os homens e mulheres que vagam pelo sertão nordestino, suportando as agruras da paisagem, ainda que ao custo de sua humanidade, mantendo-se à margem do espaço urbano que, por sua aspereza, natural ao cenário de concreto, ferro e asfalto, não consegue oportunizar uma mudança de vida, constituindo-se num ambiente ainda mais hostil do que o próprio âmbito natural.
Graciliano Ramos, em Vidas Secas, segundo Candido e Castello (1968, p. 296),
“investiga o homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino”. Destino esse que, no caso de Fabiano e sua família, revela-se cruel, resultado tanto das forças do ambiente natural como o social, indicando que as forças externas influem diretamente na conduta do sertanejo que, para sobreviver a estes dois pólos, necessita recorrer a seus instintos mais primários, acionando seus caracteres animais para tentar se impor a uma condição sub-humana de existência.
A obra Vidas Secas é tão representativa na contextualização da vida do nordestino que foi adaptada pelo cinema, como uma forma de apresentar uma realidade nacional da qual nem todos os brasileiros tinham conhecimento.
O Brasil é um país que não cultiva o hábito da leitura, conforme identifica Gonzaga (2007) e, nesse sentido, a transposição de Vidas Secas ganhou enorme relevância, em função de disponibilizar para o grande público uma história baseada na existência humana, relatada de forma crítica, descrevendo o embate do ser humano com o espaço social e com as adversidades da natureza, para garantir sua subsistência num país de enormes desigualdades econômicas. Não se trata de mera denúncia, mas sim de re-elaboração da realidade,como forma de dar-lhe um sentido mais contundente, capaz de mobilizar as emoções internas do espectador.
Mutações no Nordeste brasileiro: reflexão sobre a produção de alimentos e a fome na contemporaneidade
Eustógio Wanderley Correia Dantas
Resumos
Com imagem associada à fome, pobreza e atraso, o Nordeste passa atualmente por um processo acelerado de mutação, cujos resultados são evidenciados, em alguns estados, nos indicadores sociais a suplantarem a média nacional. A explicação deve-se à sua inserção na nova economia globalizada, relacionada diretamente à modificação de sua imagem internacional. Nestes termos, as fragilidades tradicionais do Nordeste, ligadas à semiaridez, são variáveis potencializadoras do desenvolvimento tanto do agronegócio como do turismo litorâneo em crescimento acelerado... Entretanto, embora apresente avanços, a política implementada não implicou em erradicação da malnutrição crônica.
A discussão sobre a fome é recorrente na bibliografia sobre a região Nordeste. Dentre estudos mais clássicos sobre o tema destacamos a obra de Josué de Castro (1946), “Geografia da Fome”, dedicada à compreensão da fome como um fenômeno universal em termos geográficos e resultante das distorções econômicas notadas. Referindo-se ao caso Brasileiro, descortina análise na qual o fenômeno é vislumbrado verticalmente, de um lado, denotando quadro coletivo no qual grandes massas humanas são atingidas de forma endêmica ou epidêmica e, de outro, tratando da fome total à fome oculta (parcial), fenômeno mais frequente e que implica na morte lenta de grupos de indivíduos pela falta de nutrientes essenciais em sua alimentação. De forma corajosa apresenta a fome como uma criação do homem e não como um fenômeno natural. Um dos verdadeiros tabus de nossa civilização. Para Castro (1946), o Brasil constiui um verdadeiro laboratório de investigação sobre o tema em foco, posto contar, em seu território vasto, com diferentes categorias de climas tropicais, variados tipos de organização da economia.
Com vistas a desenvolver estudo sobre este tema na contemporaneidade, apresentamos abordagem a ilustrar estudo deste fenômeno na Região Nordeste, cujos traços naturais, culturais e da organização do território são mais ou menos semelhantes. Tal texto resulta de demanda gerada após intervenção em disciplina sobre o tema da produção de alimentos na Université de Paris IV - Sorbonne.
Com a evidenciação, ainda marcante na França, de quadro imagético associado à realidade socio espacial caracteristica do Nordeste dos anos 1940, estudada com propriedade por Castro, apresentamos proposta capaz de apreender as mutações atuais, condição sine qua non à inserção da região na economia mundo.
Trabalhamos na construção de texto capaz de vislumbrar lógica de constituição do imaginário social nordestino no tempo e seu consequente desdobramento, que justifica a passagem de quadro de imagens negativas do semiárido (seca, fome, miséria...) à imagem positiva, alavancadora de novas políticas de desenvolvimento econômico pautadas no agronegócio e no turismo litorâneo. Pautado na ciência e tecnologia, o semiárido é apresentado como matiz potencializadora das novas políticas de desenvolvimento (insolação e épocas de estiagem como favoráveis ao seu reforço como região turística, insolação associada à fertilidade dos solos como potencializadora da produção de frutos tropicais).
A lógica de organização econômica empreendida na região, pautada na produção de alimentos (açúcar) e produtos agrícolas (algodão) para a exportação e da pequena agricultura voltada para ao atendimento do mercado interno se redimensiona. De atividade predominantemente monoculturista passamos à diversificação da pauta de exportações, com inclusão de produtos tropicais (frutas) e cereais (soja). Uma variedade e produção em massa que implica no estabelecimento da região como produtora de alimentos.
Paradoxalmente o aumento da produtividade agrícola tão tem efeito similar na resolução da problemática da fome na região. O que perceberemos, a partir da análise comparativa entre os dados relacionando à produção agrícola na região e os indicadores de segurança alimentar, é a evidenciação de lógica de modernização que embora suscite melhoramento em alguns indicadores socioeconômicos da região (de alguns estados especificamente), não consegue solucionar a questão da fome.
Uma primeira aproximação : o Nordeste açucareiro
Desde os primórdios da colonização portuguesa, a inserção do Brasil em escala internacional se deupautada na produção de alimentos. Diferente do ocorrido na América espanhola, os colonizadores portugueses não encontraram imediatamente produtos de alto valor de exploração como o ouro. Para lançarem política de colonização rentável, os portugueses instalaram no país grandes engenhos especializados na produção de açúcar, derivada da cana-de-açúcar trazida da Ásia.
Os primeiros a chegarem se apropriaram de zonas cujos solos e clima eram apropriados à cultura canavieira, suscitando lógica de ordenamento do espaço pautada na grande propriedade, controlada pelos Senhores de Engenho, responsáveis pela implementação de estratégia de produção em larga escala e voltada ao atendimento de demanda do mercado europeu. Concentrados na Zona da Mata, eles trouxeram da Europa as tecnologias apropriadas e os especialistas na produção de açúcar, bem como a mão-de-obra africana, posto os índios brasileiros resistiram ao trabalho escravo. Procedendo a transformação da natureza nos termos mencionados, constroem, em três séculos (XVI, XVII, XVIII), quadro regional característico, voltado para o exterior e fundado nas cidades portuárias de Salvador e Olinda (substituída posteriormente por Recife, após o incêndio da citada pelos Holandeses).
O Nordeste do Brasil é ocupado a partir da « Zona da Mata ». Desta zona, grupos de mestiços, integrantes da sociedade colonial portuguesa, partem para o interior do País, ocupando territórios inicialmente habitados por índios. Seguindo os rios, os caminhos de penetração antigos, se estabelecem primeiro no Agreste e, posteriormente, no Sertão.
Neste sentido, gestam outra lógica de ocupação do território, e em complementação à da Zona da Mata, especializada na produção de produtos regionais para a região produtora de açúcar. Em primeiro momento o Agreste, região de transição entre a Zona da Mata e o Sertão, especializada na produção de grãos (arroz, feijão e milho), de mandioca e de carne (e seus derivados). Posteriormente o Sertão, cuja ocupação foi marcada tanto pelo estabelecimento de fazendas especializadas na criação de gado, como produção de grãos e mandioca para o consumo local. Reconhecida por muito tempo pelos Portugueses como região semi-árida, foi colonizada lentamente, a partir de seus vales úmidos com quantidade reduzida de gado, acompanhada por um vaqueiro (empregado do grande proprietário de terras).
Estes vaqueiros foram os primeiros artesãos do processo de ocupação e de colonização do Sertão. De origem mestiça, conseguiram estabelecer contato com os indígenas locais, os quais lhes apoiaram em seu empreendimento. Eles são a mola motriz da emergência econômica do Sertão, fundada na produção de carne seca destinada ao mercado de Salvador e Recife.
O sucesso da indústria da carne seca no Nordeste incita os proprietários de terra (intitulados de Coronéis) a assumirem o controle de seus domínios, diversificando, portanto, o quadro social existente. Nasce um sistema cultural denominado por José Capistrano de Abreu de Civilização do Couro, posto todos os utensílios derivarem do gado: “a porta da casa, a cama, a lona,a mochila, a vestimenta, o surrão, etc. (...) a quase totalidade dos utensílios eram confeccionados a partir do couro, em adaptação de técnicas primitivas e desajeitadas.” (ABREU, 1960).
Consiste em quadro produzido em domínio sócio-espacial marcado por uma economia de subsistência, a ganhar terreno progressivamente à medida em que se distancia dos mercados consumidores de gado, notadamente as feiras de Pernambuco e Bahia. Assim, o espaço de produção da carne seca tem importante papel no processo de desenvolvimento do Sertão, se estabelecendo graças a uma demanda regional orientada para o Sertão e que suscita, de um lado, instalação de grandes fazendas especializadas na criação de gado e, de outro, estruturação de quadro urbano a privilegiar o reforço de centros urbanos localizados seja nos cruzamentos de vias de circulação de mercadorias, seja em locais privilegiados, por exemplo, próximos às zonas portuárias.
Segundo Manoel Correia de Andrade, este sistema de produção criou quadro histórico favorável ao desenvolvimento de certas culturas, estruturadas no estabelecimento de relações de trabalhos específicas em cada uma das zonas em foco, e em função de suas características: a) físicas – de uma parte, espaços úmidos, de outra, espaços semi-áridos; b) técnicas e sociais – de um lado, a cultura da cana-de-açúcar baseada no trabalho escravo e, de outro, a criação extensiva de gado fundada no trabalho livre. Ambas engendram a produção de tipos humanos diferenciados, o Senhor de Engenho e seus escravos na Zona da Mata, o Coronel e seus vaqueiros no Sertão e os pequenos produtores no Agreste (ANDRADE, 1964).
Figura 1 – regiões geográficas

Fonte: Adaptado de Andrade (1964 apud DANTAS, 2000).
15O quadro de hegemonia econômica e política (das elites da Zona da Mata, dos Senhores de Engenho, em relação às elites do Sertão, os Coronéis) estremece com a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Esta guerra, ao impedir os americanos do norte em fornecer algodão aos ingleses, permitiu a entrada do Nordeste no mercado internacional, com a produção de algodão de fibras longas, muito apreciado em Liverpool. Para tornar o quadro mais complexo, a região Nordeste enfrenta concorrência com nova zona produtora de açúcar (estado de São Paulo), animada em seguida (nos anos 1970) pelas subvenções destinadas à produção de álcool combustível, responsável pela duplicação da produção no Centro-Sul (nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo) e, em oposição à estagnação no Nordeste (THÉRY, 2005).
Uma segunda aproximação: o Nordeste do algodão
Se até o século XVIII não se fala senão do Nordeste da cana-de-açúcar, após o século XIX, o Nordeste do algodão se impõe. Na literatura da época, muito vinculada à geografia, dois tipos de imagens são veiculadas:
- . a primeira, ligada ao Nordeste da cana-de-açúcar, e difundida por Gilberto Freyre, a descrever um Nordeste da Casa Grande e da Senzala, representativas, respectivamente, do Senhor de Engenho e de sua família e dos empregados e os escravos dos engenhos. Uma sociedade nascida do trabalho escravo e que prepara a natureza com uma cultura fundada no latifúndio (FREIRE, 1964);
- . a segunda, a do Nordeste do algodão, do semi-árido, denominada por Djacir Menezes de “O Outro Nordeste”. O trabalho livre é sua marca, apresentando-se, de um lado, o proprietário do latifúndio (Coronel) e, do outro, os vaqueiros e os pequenos agricultores que trabalham para os primeiros recebendo uma parte da produção (a metade, a terceira parte, a quarta...). Uma sociedade composta por “homens fortes”, que souberam superar as adversidades climáticas, batendo-se contra um meio impróprio(o semi-árido) e deixando suas marcas (MENEZES, 1937).
No século XX, a imagem do Nordeste semi-árido se impõe em relação à da Zona da Mata. O poder econômico e político passam às mãos da oligarquia algodoeira do Nordeste e esta se serve de estratégias visando captar a atenção nacional, principalmente em momentos de crises climáticas, das secas.
O estabelecimento dessa elite no poder provém da crise econômica ocorrida na região. Com a produção do algodão, a zona produtora de cana-de-açúcar perde sua supremacia. A concorrência interna no primeiro caso, as adversidades climáticas no segundo, assim como movimentos sociais no meio rural (ligas camponesas), tornam a situação da região Nordeste difícil.
Visando se manter no poder, as elites locais (oligarquias algodoeira-pecuarista e açucareira) estabelecem alianças em escala nacional com outras elites, notadamente as do Sudeste. O intuito era o de manter o status quo na região. Segundo Oliveira (1981), essa conquista de poder se funda, na essência, na mudança de imagem característica dessa região (OLIVEIRA, 1981).
A imagem do Nordeste propagada pelos relatos de viagem do fim do século XVIII e do início do século XIX, em que inspirou Gilberto Freyre e sua pseudo-sociologia nostálgica dos “Barões do açúcar”, é substituída pouco a pouco pela do latifúndio do Sertão, o Nordeste dos coronéis: imagem rústica, pobre, se opondo à dos salões e das noitadas do Nordeste da cana-de-açúcar. É neste sentido que nasce o Nordeste das secas: “um território condenado ao sofrimento e à pobreza por uma natureza difícil de domesticar” (CASTRO, 1997).
Esta nova imagem (atribuída ao Nordeste brasileiro desde o fim do século XIX) relaciona-se às representações da saga do homem do Sertão face a um meio hostil. Nasce, nestes termos, um discurso de caráter determinista, com as condições de semi-aridez suscitando tanto um quadro humano associado à pobreza e à miséria, como um quadro político representativo do clientelismo. Esta representação se encontra nas interpretações romancistas. A semi-aridez é transformada em discurso da elite regional, fundada em imagem negativa. Percebida como a principal causa dos problemas da região, ela é elemento essencial na obtenção de ajuda e de subvenções do governo federal.
Um quadro simbólico reforçando a imagem negativa do Nordeste
O discurso determinista em foco, oriundo de documentos antigos (principalmente de cartas oficiais) e de relatos de viagem, remete a um quadro natural perverso, marcado pela semi-aridez e as secas cíclicas a vitimarem o homem.
A partir dessa idéia fundadora, quadro socioespacial específico se evidência, marcado por um tipo de organização espacial e um sistema de atores, representativos das especificidades do ecossistema semi-árido. Culmina na apresentação do imaginário social da seca do Nordeste, como uma tragédia sócio-econômica, a formar uma consciência coletiva focada nos acasos climáticos: a natureza, apresentada como ser quase metafísico, fortemente idealizado e instrumentalizado, nos discursos da região, como sendo um obstáculo intransponível a todo progresso ou à justiça espacial (CASTRO, 1997a). É a partir dessa premissa que a natureza, fundamento geográfico da produção, adquire papel essencial como base material de construção do imaginário sociopolítico e recurso ideológico em proveito desses atores (CASTRO, 1997b). No primeiro caso, o imaginário aparece no momento em que a seca se torna uma referência essencial. De um lado, ela representa simbolicamente uma região (o Nordeste), tocado por uma natureza hostil que acarreta problemas socioeconômicos (a fome, a miséria, o subdesenvolvimento) e, de outro, ela cria um imaginário político socialmente homogeneizador e eficaz institucionalmente na obtenção de recursos financeiros e de poder (CASTRO, 1997a). No segundo caso, a lógica da naturalização da realidade se funda em importante fonte ideológica utilizada pela elite local para obter ajuda e subvenções do governo central.
Graças ao estabelecimento de acordos com outras elites regionais, notadamente as do Sudeste (acordos estabelecidos, em primeiro momento, com oligarquias do Centro-Sul e, em segundo, com a burguesia industrial), nasce no Sertão uma oligarquia agrária influente em escala regional e nacional.
A manutenção da estrutura agrária e a participação na burocracia estatal constituem os aspectos articulados nesta aliança e fundadores do status quo na região. Participando da burocracia do Estado, a elite adquire recursos empregados no sentido de conservar o sistema agrário. Esse sistema agrário constitui, nele mesmo, aval para o financiamento, símbolo de status familiar, garantia de preservação, na memória coletiva local e regional, da posição hierárquica do poder local (CASTRO, 1997b).
A oligarquia do Nordeste soube tirar proveito de discurso de caráter determinista para se inscrever em modelo de constituição do Estado nacional. Essa inserção, fundada sobre o discurso regionalista, nasce nas clivagens da dominação da Região Sudeste e representa muito mais um combate por recursos, fundado no poder simbólico de afirmação e de identidade ou solidariedade, do que verdadeiro desejo de soberania (CASTRO, 1996a).
Presente discurso regionalista possibilita estabelecimento de política de modernização da região pautada nas ajudas e subvenções do governo federal, sobretudo:
Construção de vias capazes de promover a integração do Sertão ao mercado: as vias férreas, as rodovias estaduais (Ce’s), as rodovias federais (as Br’s) como também as rotas secundárias;
Estabelecimento ou criação, sobretudo nas capitais, de organismos públicos federais de gerenciamento e de financiamento, como o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB);
Política de industrialização dos anos 1960.
Na perspectiva de se colocar em prática a organização estatal na região e de arrecadar recursos financeiros a ela referentes, a SUDENE atua no “Polígono das Secas”, cujos limites são superiores aos do Nordeste, posto incluir a parte setentrional de Minas Gerais (localizado no Sudeste do Brasil) (ANDRADE, 2006), (Figura 2).
31Figura 2 – polígono das secas
Com a SUDENE, o Estado central reforça via única de desenvolvimento adotado no país, engajada em plano de substituição das importações dos anos de 1940 e seguida pelo governo militar, dos anos 1960 até início dos anos 1980, com política agressiva de industrialização que atinge o Nordeste nos anos de 1960. O citado reforço da industrialização, apresentada como motor de desenvolvimento econômico regional, suscitou fracos investimentos em outros domínios, como produção de alimentos e políticas de desenvolvimento do turismo, a exemplo de escolha feita em países da América Central.
Em razão da crise do modelo de Estado moderno no Brasil, na segunda metade dos anos 1980, as políticas públicas de desenvolvimento indicadas se fragilizam. Com a reforma constitucional de 1988, tem-se a efetivação de modelo democrático de governo, delineador de política de descentralização de poder. Acontece transferência de orçamentos do Governo Central para os Estados e os Municípios brasileiros assim como a possibilidade de captação direta de recursos financeiros do exterior. Esses dois aspectos são importantes, posto nessa nova lógica os estados locais assegurarem diretamente as políticas locais de desenvolvimento. Resultou fim de modelo fundado na articulação dependente das escalas locais/regionais à nacional, na medida em que a reforma constitucional permitiu o estabelecimento de relações mais amplas, integrando a escala local diretamente à internacional.
A mudança de imagem do Nordeste resulta da incorporação desta nova racionalidade, marcada pelo estabelecimento de conflito entre dois quadros simbólicos contraditórios a possibilitarem compreensão das relações entre a sociedade local e o meio. O primeiro quadro simbólico, o mais antigo e já abordado anteriormente, foi produzido por discurso reforçando rede de imagens negativas da região semi-árida, vítima da pobreza e da fome e em proveito da oligarquia algodoeira e pecuarista. O segundo quadro simbólico, o mais recente, pauta-se em novo discurso, apoiado nos mesmos espaços semi-áridos, mas para construir, dessa vez, uma imagem positiva, servindo aos interesses de grupo de empresários ligados ao agronegócio e ao turismo.
Uma terceira aproximação: a emergência do agronegócio no Nordeste
Os interesses acima conduziram a uma fragmentação da região, que estremece os modos de vida característicos da região. A inserção da região em escala internacional suscita fragilização do imaginário da seca como tragédia, cujo conteúdo simbólico não tem peso na racionalidade de inclusão do Brasil no sistema mundial, como produtor de tecnologia intermediária e aberto às inovações (BECKER ; EGLER, 1993). O imaginário tradicional se acha, dessa forma, recionalmente esgotado (CASTRO, 1997b).
Agora aparecem novos espaços de produção, aqueles associados a novos atores em escala regional, criando um espaço econômico, social e político de resistência no Nordeste. Esse espaço se funda na agricultura moderna (principalmente a irrigada) e no turismo litorâneo. Neste espaço entram em cena novos atores regionais: de um lado, um segmento importante da elite política, notadamente aqueles que possuem amplo poder de assimilação e de reprodução e, do outro, pequeno número de empresários e de funcionários da administração pública (CASTRO, 1997a).
Emergem, desta maneira, novos discursos de caráter técnico referente ao semi-árido. De uma parte, estes discursos incidem sobre a ausência de chuvas e a taxas de luz solar como aspectos importantes e positivos no desenvolvimento da agricultura irrigada : a ausência de chuva impede os insetos nocivos de se reproduzirem, e as taxas elevadas de luz solar, associadas à fertilidade do solo, suscitariam no sensível aumento da produtividade agrícola. De outra parte, estes discursos incidem sobre as belas paisagens do litoral e os trunfos do clima (ausência de chuva e temperaturas elevadas) como mercadorias turísticas de primeira linha.
Portanto, mesmo que estes novos atores tenham subvertido o pacto oligarquico ora colocado, eles não consegueriam tomar o poder em escala regional, diferentemente do produzido pela oligarquia tradicional. Segundo Iná Elias de Castro, estes novos atores são muito frágeis em termos políticos. Daí a necessidade de estabelecimento de alianças com políticos ou burocratas para obterem representação política (CASTRO, 1997b).
Como a carga simbólica da fome no Nordeste não se sustenta, em comparação à situação trágica vivenciadas em outras regiões no mundo, a elite regional produz outro discurso para atrair recursos do BID e investimentos estrangeiros. A imagem de uma região habitada por miseráveis se reverte à de uma região rica em oportunidades e de natureza excepcional, totalmente adaptada à demanda internacional de alimentos e de forte valor agregado (grãos nobres e frutas tropicais), uma só questão a resolver: a do controle ao acesso à água, elemento indispensável para o desenvolvimento da agricultura irrigada.
Nessa perpectiva, o governo desenvolve uma política de gestão de bacias hifrográficas voltada à disposnibilização de volume de água necessário aos investimentos. O projeto de transposição do rio São Francisco se inscreve nessa perspectiva, visando trazer água aos Estados semi-áridos do Nordeste, notadamente a Paraiba e o Ceará.
Com essa política, lançada desde os finais dos anos de 1980, os Estados do Nordeste mudaram sua pauta de exportação, explorando produtos valorizados no mercado internacional. Os Pólos de Desenvolvimento Integrado (PDI’s) transformaram as zonas de várzea, os platôs e o cerrado do Nordeste em espaços privilegiados da produção agrícola, notadamente irrigada, e da produção de grãos nobres (soja). Aqui a ciência e a tecnologia dispõem de papel importante.
Os Pólos de Desenvolvimento Integrados (PDI’s) e a produção de
A partir de financiamentos gerados pelo Banco do Nordeste do Brasil (BNB), dez pólos foram criados na região: três de produção exclusiva de grãos (Pólos Sul do Maranhão, Uruçui-Gurguéia do Piuaí e Oeste Baiano, na Bahia); cinco de irrigação de natureza mista, com uma importante produção de frutas (Pólo Cariri Cearense e Baixo Jaguaribe no Ceará, Assú-Mossoró, no Rio Grande do Norte, Alto Piranhas na Paraíba e Alto Piranhas em Pernambuco); um de cítricos (Pólo Sul de Sergipe) e um de produção leiteira (Pólo da Bacia Leiteira de Alagoas - Figura 3).
Figura 3 – pólos de desenvolvimento integrados: Nordeste do agronegócio.Figura 3 – pólos de desenvolvimento integrados: Nordeste do agronegócio.
Nos pólos de grãos, o estado da Bahia tem o primeiro lugar na produção de feijão (44.839t, contra 1.156t e 5.829t do Maranhão e do Piauí), de milho (511.525t, contra 78.689 e 33.628 do Maranhão e do Piauí) e de soja (1.233.587t, contra 519.639t e 90.545t do Maranhão e Piauí). Em segundo lugar, o Maranhão ultrapassa os outros dois Estados na produção de arroz (53.334t, contra 27.513t e 21.970 da Bahia e Piauí). Além do mais, a Bahia cultiva algodão e café (rspectivamente 131. 581t e 26.896 t).
Considerando a superfície cultivada e a produção obtida, percebe-se forte presença da soja. Símbolo da mudança da lógica de produção de grãos no Nordeste, essa cultura ocupa 74,3% da superfície cultivada e assume dois terços da produção de grãos nos pólos indicados e cuja exportação dá-se pelos portos de Itaqui (São Luis – Maranhão), Pecém (Ceará), Salvador e Aratu (os dois na Bahia).
No que se refere aos pólos irrigados, se caracterizam pela importante produção de frutas, à exceção dos pólos 3 e 4 no Ceará e 6 na Paraíba, lugares nos quais se produz tanto grãos (arroz, feijão e milho) como cana-de-açúcar, mandioca e algodão. O Ceará produz feijão (25.192t), milho (120.459t), cana-de-açúcar (300.407t destinados à produção de guloseimas e bebidas tradicionais – rapadura e cachaça) e mandioca (14.123t). A Paraíba produz arroz (15.400 t contra 2.219 do Ceará). Uma ressalva deve ser feita referente à pequena produção de algodão (2.600t no Ceará, contra 2 663t na Paraíba). A produção de frutas refere-se à banana (367.298t), manga (282.208t), melão (263.300 t), uva (172.409t), goiaba (97.781t), melancia (27.090t), maracujá (10.200t), mamão (4.980t) e limão (9.427t). Entre os Estados produtores, Pernambuco se situado em primeiro lugar na produção de bananas (149.108t), de manga (242.429t) e de goiaba (96.629t), trata-se do único a produzir mamão, maracujá e uva. Ceará situa-se em primeiro lugar na produção de limão (9.178t). Rio Grande do Norte se volta mais à produção de melão (174.800t), sendo o único a produzir melancia (27.090t). A Paraiba produz sobretudo bananas (31.632t) e um pouco de goiaba (1.152t). Quanto ao côco, somente dois Estados se destacam: Pernambuco (123.180 frutos) e Paraíba (34.075 frutos).
Nos pólos de produção mista (grãos, frutas e outros produtos), os territórios produtores de frutas (.150ha.) ocupam superfície inferior àquela dos grãos e outros produtos (179.744ha.), porém suas taxas de produtividade são superiores. Sem contar com o côco, cuja produção é por unidade, as frutas representam próximo de 72% da produção total (1.234.693t, contra 483.406t de grãos e outros produtos). Estes resultados se explicam pelo emprego dos investimentos em alta tecnologia, destinados, a exemplo da região do Cerrado nordestino, sobretudo para a exportação. Somente uma pequena parte da produção fica no mercado local, seja pelas frutas não conforme as exigências rigorosas das exportações, seja pela oscilação, para menos, do preço no mercado extremo suscitar oferta maior no mercado local.
É em Sergipe que se encontra o pólo de produção de frutas cítricas, ocupando 70% da superfície agrícola útil: 1.229.224t de laranja, seja, próximo de 95 % da produção total, mas também limão (7.720t em 932 ha.) e tangerina (4.310t em 269 ha.).
O último pólo se especializou na criação de gado (222.436 cabeças) e de cordeiros (15.125 cabeças), os primeiros com destino às indústrias de laticínios locais, que produzem para o mercado nacional e, o segundo, a fim de responder à demanda regional por carne ovina, muito apreciada na cozinha tradicional nordestina.
A produção de grãos nobres e de frutas está em constante evolução no Nordeste, reforçando a especialização da região em produtos valorizados no mercado internacional. No que se refere aos grãos, observa-se, de acordo com os dados da Companhia Nacional de Abastecimento-CONAB, conforme as cifras de 2003-2004 e 2004-2005, um aumento da produção de soja em todos os Estados produtores: Salvador (de 2.218 para 2.349 milhões de toneladas), Maranhão (de 924 para 1.053 milhões de toneladas) e Piauí (de 396 para 465 milhões de toneladas). Uma produção mais importante do que aquela indicada pelo Instituto Brasileiro de Greografia e Estatística – IBGE, em 2002. Ao contrário, as culturas tradicionais conhecem, grosso modo, uma evolução para baixo, e mesmo uma queda de produção. Só no Maranhão nota-se aumento na produção de arroz, passa de 802 milhões de toneladas em 2003/04 para 818 milhões em 2004/05. Mas o milho, produzido exclusivamente no estado da Bahia, baixa de 1.657 millhões de toneladas em 2003/04 para 1.441 em 2004/05. Quanto ao feijão, cultivado em três Estados (Bahia, Ceará, Paraíba), se mantém em baixa (ver Figura). Somente o café aumenta sua produção na Bahia: 1.780 milhões de toneladas em 2003/04 para 2.260 em 2004/05.
Figura 4 – produção de grãos no Nordeste.
Fonte : CONAB, 2004.
Quanto às frutas, sua tendência segue a da soja, porém se mostra mais dinâmica ainda, em razão da forte demanda do mercado internacional, dado a suscitar inclusão de novas variedades na pauta de exportação dos estados e em tempo recorde. É desta forma que o abacaxi surge em 2003 na Paraíba (270.909t), Bahia (115.116t), Rio Grande do Norte (91. 581t), Maranhão (39.236t), Pernambuco (21.955t), Alagoas (12.577t), Sergipe (11.020t), Ceará (922t) et Piauí (454t) (Figura 5). Algo semelhante ocorre com o figo.
Figura 5 - produção de frutas no Nordeste
Fonte : IBGE/PAM, 2003.
Com a implantação dos PDI’s no Nordeste e os investimentos científicos e tecnológicos dos quais se beneficiou, a região conseguiu se inserir no mercado internacional como produtor de grãos e frutas tropicais, sem, no entanto, solucionar a questão da fome.
Região a alimentar o mundo com problemas de desnutrição
Doravante a exploração agrícola do Nordeste não é um negócio orientado à demanda por alimentação na região, mesmo se as culturas tradicionais persistam em pequenas explorações realizadas por agricultores pobres e voltadas à subsistência.
As políticas de desenvolvimento adotadas no Nordeste, as antigas como a industrialização ou recentes como a atividade turística e o agronegócio, culminaram na efetivação de melhores indicadores econômicos. A renda de certos Estados da região ultrapassa a média nacional. Em termos de PIB por habitante, por exemplo, cinco Estados nordestinos entre os nove têm um PIB por habitante igual ou superior ao do Brasil (U$3.311): Sergipe (U$5.082), Bahia (U$4.629), Pernambuco (U$4.482), Rio Grande do Norte (U$4.039) e a Paraíba (U$3.311) Quatro dos nove estados ficam abaixo: Ceará (U$3.129), Alagoas (U$3.012), Piauí (U$2.113) e, por último, Maranhão (U$1.949) (IBGE,2004).
Paradoxalmente, a desnutrição persiste, mesmo com as elites políticas locais não mais lucrando, como no passado, com a indústria da seca para captar financiamentos federais. Se, até os anos 1980, a fome exercia papel central na captação dos investimentos do governo central; a partir dos anos 1990, pelo contrário, ela se transforma em um mal a ser superado, não em razão de uma tomada de consciência das elites locais, mas por conta dos organismos internacionais manifestarem, atualmente, desconfiança em relação aos beneficiários da fome, aqueles a captarem tradicionalmente os financiamentos e no sentido de reforçar seu poder político na ocasião de cada crise alimentar (BRUNEL, 2002).
Entretanto, a desnutrição persiste no Nordeste. Segundo pesquisa realizada em 2004 pelo IBGE, próximo de dois terços (65%) dos 52 milhões de famílias brasileiras estudadas (109 milhões de habitantes) eram beneficiárias de uma situação de segurança alimentar: elas tinham acesso, nos 90 dias precedentes ao estudo, a alimentos em quantidade e em qualidade suficientes e não temiam as restrições nesse domínio no futuro. No outro extremo, a maioria, superior a um terço restante (35 %, ou seja, 72 milhões de pessoas) sofria de insegurança alimentar, qualificada de leve (16%), moderada (12,3%) e aguda (6,5%). O que significa que as referidas pessoas conheciam regularmente a fome, às vezes diariamente. Nesse domínio, o Nordeste ocupa o primeiro lugar: menos da metade dos lares (45,4%) estão isentos da insegurança alimentar. A má nutrição leve alcança 19,5%, a moderada 21,6%, a grave 12, 4% (ou seja, próximo do dobro da média nacional).
Figura 6 – a fome no Brasil: segurança e insegurança alimentar

Fonte: IBGE - PNAD, 2004.
No Nordeste, considerando número de lares em situação de segurança alimentar, 8 dos 9 Estados se encontram abaixo da média nacional: Maranhão (30,9%), Piauí (36,5%), Rio Grande do Norte (39,6%), Ceará (44,2%), Paraíba (46,7%), Pernambuco (48,7%), Bahia (49,7%) e Alagoas (55,3%). Somente Sergipe se situa acima (73,8%). Tal dado evidencia que a grande maioria dos habitantes do Nordeste, vivem constantemente em situação de insegurança alimentar, conhecendo, nestes termos, a má alimentação em seus três níveis: leve, moderado e grave, significando ser a fome companheira do seu dia-a-dia. Nas condições mais extremas, a insegurança alimentar grave, os Estados mais tocados por ordem decrescente em termos de lares são: Maranhão (18%), Paraíba (15,1%), Rio Grande do Norte (13,9%), Ceará (13,5%), Bahia (12,1%), Piauí (10,8%), Pernambuco (10,6%) e Alagoas (9,3%). Somente Sergipe, uma vez mais, com 3,7 %, está situada acima da média da região (12,4%) e mesmo do Brasil (6,5%).
Figura 7– a fome no Nordeste : segurança e insegurança alimentar

Fonte: IBGE –PNAD, 2004.
Considerações Finais
O Governo Federal investiu em políticas sociais de naturezas diversas: aposentadoria para os homens do campo (política nascida inicialmente nos anos de 1960-1970, com o Fundo de Assistência e Previdência ao Trabalhador Rural - FUNRURAL), auxílios sociais globais (habitantes rurais e urbanos) convertidos no “Bolsa Família” (políticas dos anos 1980-2000). As especificidades do Nordeste tornam este tipo de ajuda particularmente importante: dos 8 milhões de lares brasileiros a receberem ajuda social governamental, mais da metade (51,2%) se encontram no Nordeste, contra 22,7% no Sudeste, 10% no Sul e 6,5% no Norte e Centro-Oeste (PNDA-2004).
No Brasil, as políticas públicas mais antigas, iniciadas com o FUNRURAL (1960-1970), beneficiaram pessoas idosas. Detentoras de aposentadorias tornam-se menos afetadas pela má nutrição: por volta de 72% não conhecem a insegurança alimentar. Esta situação se observa no Nordeste, embora em menor escala, 56%.
As políticas voltadas para as populações mais jovens são muito recentes para suscitarem resultados semelhantes. No Nordeste, a segurança alimentar nos lares contando com menores de 18 anos é a mais baixa. Para o Brasil, a metade das crianças (49,5% de 0 à 4 anos e 51,7% de 5 a 17 anos), para o Nordeste menos de um terço (respectivamente 32,5% e 33,4%) (PNAD, 2004).
Gráfico 3 – segurança alimentar no Brasil por faixa etária
Em contrapartida, as políticas salariais adotadas não mereceram atenção especial. O setor informal cresceu e o salário mínimo nacional (U$ 264,70) não propicia a seus titulares condições de segurança alimentar (para o Brasil 60,4%, 36,4%, 17,5% e 32%, respectivamente, para aqueles que recebem de meio a um salário mínimo, entre um quarto e meio salário, menos de um quarto do salário e os sem renda); para o Nordeste as cifras são menores (53%, 31,5%, 14,5% e 23%, na amostra indicada).
Gráfico 4 – segurança alimentar no Brasil de acordo com as rendas por habitante (salário mínimo).
Do apontado por Castro (1946) pouco avançamos ? É verdade que o tema deixou de ser tabu, que não é mais apropriado pelas elites políticas como reforço ao intento de obter recursos para garantir seu o status quo. No entanto, a problemática da má nutrição persiste com outra roupagem, não mais vinculada, como outrora, às intempéries climática, foi transformada em problema nacional, resultado de quadro socioeconômico característico dos países em via de desenvolvimento que não resolveram problemas concernentes à concentração de riquezas e de terras.
64Lamentavelmente as intervenções do governo não suscitaram grandes mudanças na tônica clássica da concentração de renda no pais e na região. As políticas sociais implementadas tiveram um escopo reduzido, ou seus resultados ainda não se fizeram sentir.
Notas
Texto publicado na revista Hérodote, n. 131 (4º trimestre 2008), com o título « Les mutations du Nordeste du Brésil ».
Tabela das ilustrações
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Título | Figura 1 – regiões geográficas |
Créditos | Fonte: Adaptado de Andrade (1964 apud DANTAS, 2000). |
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Créditos | Fonte: IBGE - PNAD, 2004. |
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Créditos | Fonte: IBGE –PNAD, 2004. |
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Para citar este artigo
Referência electrónica
Eustógio Wanderley Correia Dantas, « Mutações no Nordeste brasileiro: reflexão sobre a produção de alimentos e a fome na contemporaneidade », Confins [Online], 10 | 2010, posto online em 28 novembre 2010, Consultado o 19 septembre 2011. URL : http://confins.revues.org/6686
Euclides da Cunha, Os Sertões e Canudos
Euclides da Cunha, Os Sertões e Canudos
Ana Cristina Venancio da Silva, Júlia Schwarcz,
Maíra Landulfo, Maria Cecília Winter,
Tila Corazza T. Pinto & Ynaê Lopes dos Santos
O MOMENTO
| Com a Revolução Industrial iniciada na Europa no século XIII, toda a civilização entrava em uma nova fase caracterizada pela utilização do aço, do petróleo e da eletricidade. O capitalismo se estrutura em moldes modernos com o surgimento de grandes complexos industriais. Ao mesmo tempo o avanço científico leva a novas descobertas nos campos da Física e da Química. A chamada 2ª Revolução Industrial cria uma demanda por matéria-prima e mercado consumidor ; é o imperialismo em ação. As influências das potências européias sobre os países de baixa renda se fortificam neste novo quadro. A crise de 1873, que provoca a falência de investidores nas metrópoles européias devido ao excesso de produção e/ou à escassez de mercado consumidor, aumenta o interesse de tais potências por países que já possuem alguma dependência econômica ou política (por exemplo a Austrália, ex-colônia da Inglaterra e os países da América Latina em geral). Essa forma de dependência o historiador Nicolau Sevcenko chamou de indirect rule: |
Foi através desta “regra indireta” que os centros capitalistas europeus estabeleceram seus padrões de vida como padrões universais, atingindo principalmente suas áreas de influência da periferia do sistema. Os avanços tecnológicos e científicos também dão margem à posturas ideológicas como o Positivismo de Auguste Comte e o Socialismo Científico de Marx e Engels, que define o modo de produção da vida material como agente condicionador do processo de vida social, político e intelectual emgeral. O Socialismo Científico era assim chamado porque não procurava construir abstratamente uma sociedade ideal mas, baseando-se na análise das realidades econômicas, da evolução histórica e do capitalismo, formula leis e princípios determinantes da História em direção a uma sociedade sem classes e igualitária. O Evolucionismo de Charles Darwin também é incorporado neste quadro; em seu livro A Origem das Espécies de 1859, Darwin expõe seus estudos sobre a evolução das espécies pelo processo de seleção natural, negando portanto a origem divina defendida pelo Cristianismo.
Com a expansão do capitalismo, difundiram-se também estas idéias nascidas na Europa, o abalo desta influência sobre as sociedades tradicionais foi gritante, especialmente em países da periferia do sistema, como a Argélia com o Levante Argelino de 1871, o Egito com o Movimento Nacional Egípcio de 1879-1882, e o Brasil com a Guerra do Paraguai de 1864-1870 que abalou os ideais conservadores.
O Brasil do final do século XIX foi marcado por inúmeras agitações sociais, desde movimentos separatistas como a Confederação do Equador, agitações abolicionistas, a própria abolição e até a República. O maior centro populacional do país, o Rio de Janeiro, também era considerado um grande centro comercial por intermediar os recursos da economia cafeeira, a capital inicia o século XX em uma situação realmente excepcional. A cidade era um espaço de confluência cultural e econômica que se comunicava com todo o país e acumulava recursos no comércio, nas finanças e já também nas aplicações industriais.
Ao mesmo tempo, com o processo de abolição e com a vinda de imigrantes, a cidade passava por uma superlotação, que demandava capital móvel para fazer o pagamento dos trabalhadores, agora livres. O então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, dá início à um processo de incentivo às atividades nas bolsa de valores, foi o chamado Encilhamento. Este processo causou uma confusão maior ainda na cidade, pois fortunas mudavam de mãos, dizia-se que “o rico de hoje era o tintureiro de ontem”, não se sabia mais quem possuía poder político ou econômico. Adiciona-se a essa confusão, a enorme e sempre crescente população da cidade que passou a se instalar em casarões formando cortiços e verdadeiros “ântros de promiscuidade”.
Sob a influência das ideologias européias, o Estado brasileiro inicia o processo de Regeneração do Rio de Janeiro, que tem como objetivo “higienizar” a cidade, mandando a população pobre para a periferia (dando origem às favelas), e procurando construir uma imagem moderna para a capital do país. A Regeneração foi financiada por investidores estrangeiros que se aproveitavam da indirec rule, característica dominante no país. Além disso a modernização da cidade facilitaria o espaço de fluxo de matéria-prima aos portos brasileiros, e assim, facilitaria a ação do imperialismo.
Na República, “confrontavam-se” Liberais, que se representavam basicamente pela elite paulista influenciada pelo cosmopolitismo progressista internacional e os Conservadores representados pela vanguarda republicana, positivista e militar, influenciada por estigmas de intolerância e isolamento. Na prática, os ideais destes dois grupos são indiferenciáveis: “nada mais conservador do que um liberal no poder”, a República dos Conselheiros se dava então, com o revezamento da gestão das duas classes. O texto de Machado de Assis, Esaú e Jacó ilustra bem a “política de acordos” característica marcante no Brasil de então. É neste complexo quadro que se dá a formação de Euclides da Cunha, ele, como muitos de seus contemporâneos sofreu as influências desta sociedade caótica e das ideologias vindas de além mar.
O CONTEXTO
Para que consigamos compreender a obra de Euclides da Cunha de uma forma mais completa, é estritamente necessário que façamos um breve parênteses, e olhemos quais eram essas “tão famosas” idéias cientificistas, positivistas e deterministas que influenciaram o autor, ou seja: vamos buscar as fontes nas quais Euclides da Cunha “bebeu”. Tentar enquadrá-lo no contexto histórico-intelectual em que viveu. Antes de mais nada, é importante relembrarmos que o continente Americano, mais conhecido como Novo Mundo, sempre povoou o imaginário europeu. Exemplos clássicos, são o mito do “bom Selvagem” de Rousseau (uma espécie de herança do ideais da Revolução Francesa), onde o autor defendia a maior perfectibilidade do homem americano ( nativo), por ter se conservado no seu estado natural. Outro exemplo são as idéias de Buffon e De Pauw, que contrariamente a Rousseau, viam os americanos como degradados, imaturos e decaídos.(SCHWARCZ, 1993:45)
Mas tal discussão não se finda no séc. XVIII. No século seguinte ela ganha ainda mais amplitude, entrando no campo de ciência - que na época ganha o status de ser a única e verdadeira forma de se ver e pensar o mundo. E dentro desse contexto cientificistas, George Cuvier introduz o termo raça - mostrando a existência da herança de caracteres físicos permanentes entre os vários grupos humanos (SCHWARCZ, 1993:47) - que, consequentemente irá se confrontar com os ideais igualitários da Revolução Francesa, principalmente porque, a partir de então, o termo raça, estará vinculado a outro: cidadania.
Ao ser legitimada, algumas das principais questões que a ciência irá estudar são a origem e diversidade da humanidade - tendo sempre em vista uma resposta absoluta e verdadeira. E o principal debate sobre essa questão se dará entre os monogenistas e poligenistas. Enquanto os primeiros consideravam que todo homem tinha a mesma origem e que as diferenças entre eles era resultado de uma maior ou menor proximidade do Éden (teoria difundida pela Igreja Cristã), os poligenistas, que baseados em recentes estudos de cunho biológico, acreditavam que haviam diversos núcleos de produção correspondentes aos diferentes grupos humanos(SCHWARCZ, 1993: 47). Conseqüentes a esse debate, surgiram no séc. XIX disciplinas e sociedades não só divergentes como rivais. Exemplos claros será o surgimento de antropologia criminal, que considerava que a criminalidade era algo genético, a frenologia e a antropometria, que calculavam a capacidade humana de acordo com o tamanho do cérebro de indivíduo estudado dos diferentes grupos humanos, a craniologia, estudo do crânio, dentre outros.
Entretanto o debate tomará novo fôlego com a publicação do livro A Origem das Espécies de Charles Darwin em 1859. A partir de então o termo raça ultrapassará o campo da biologia, se estendendo às discussões culturais e políticas, além de imprimir o conceito de evolução às duas visões descritas acima, que muitas vezes irão desvirtuar ou “adaptar” as teorias darwinistas no que lhes fosse mais conveniente.
Os adeptos do poligenismo são os que melhor realizam essa “adaptação” das teorias de Darwin e acabam tendo seus ideais mais difundidos em relação ao seus rivais monogenistas (é importante frisar que nesse mesmo momento os dogmas da Igreja estavam sendo questionados pelos cientistas). Exemplos disso são a sociologia evolutiva de Spencer e a história determinista de Buckle e até mesmo o sentimento do “Imperialismo Europeu” que se instala nesse momento.
A espécie humana passa a ser tratada como gênero humano e suas diferenças culturais são classificadas como diferenças entre espécies: o Homem é dividido e hierarquizado por suas diferenças; e quanto mais longe uma “espécie” se manter da outra melhor para todos. Mas surge um problema: o que fazer então com os grupos miscigenados? A maior parte dos estudiosos e cientistas europeus e norte americanos como Broca, Gobineau e Le Bom, consideravam a miscigenação um erro, uma quebra das leis naturais, uma subversão do sistema. Segundo Lilia M. Schwarcz: “Os mestiços exemplificavam, segundo essa última interpretação, a diferença fundamental entre as raças e personificavam a ‘degeneração’ que poderia advir do cruzamento de espécies diversas”.(SCHWARCZ, 1993: 56)
Frente a todo esse impacto causado pela publicação de Charles Darwin, outras disciplinas- ainda vinculadas às duas visões sobre a origem e diferença do Homem- irão surgir. Dentre elas, algumas se destacam: a Antropologia cultural ou Etnologia Social que restitui a idéia de que a humanidade tinha apenas uma origem e sua diferença era proveniente do processo evolutivo que ela estava fadada a passar e tinha como seus principais defensores: Morgan, Tylor e Frazer, chamada de escola evolucionista.
Numa perspectiva mais vinculada ao poligenismo, aparece a escola determinista geográfica de Ratzel e Buckle que afirmavam que o desenvolvimento ou não de uma nação estava totalmente condicionada pelo meio físico. Houve também outra escola determinista conhecida como “darwinismo social” ou “teoria das raças”, que considerava a miscigenação algo negativo, já que não acreditava que as características adquiridas não eram transmitidas, ou seja: as raças eram imutáveis. Tal escola acreditava na existência de três raças bem distantes, o que invalidava a mestiçagem. O mundo dividido culturalmente era conseqüência da divisão de raças, e havia a raça superior. Muitos autores acreditavam nesse ideais como: Le Bom que achava que o “gênero” humano compreendia espécies de diferentes origens. Taine que considerava o indivíduo resultante direto de seu grupo construtor e que raça e nação são sinônimos. Renase que acreditava na existência e hierarquização das três raças. E por fim Gobineau que afirmava que o resultara da mistura era sempre um dano.(SCHWARCZ, 1993: 56)
Essas premissas da escola determinista, principalmente a que defendia a existência de uma raça superior, serviram de base para um movimento que existe até hoje: a Eugenia, que acreditava que só haveria progresso nas sociedades puras, apenas uma raça estava fadada à perfectibilidade, a raça ariana e a humanidade estava dividida em espécies: a miscigenação se torna algo irracional, contra todas as “leis naturais”. A Europa e os E.U.A. . difundiram essas idéias pelo mundo, e elas irão influenciar escritores e pensadores de toda parte.
Os europeus acreditavam que compunham um grupo humano puro, livre de hibridização, muito mais perto da perfectibilidade e justamente por isso era o responsável pela civilização dos demais grupos - argumento que justifica e legitima tanto a colonização americana como o “Imperialismo Europeu”, o fardo do homem branco.
Já os norte americanos, mesmo tendo sido colônias da Europa, comprovaram seu desenvolvimento, principalmente por terem evitado a miscigenação entre o branco dominador e o negro escravo. E tudo o que foi dito acima serve de justificativa para que o debate da mestiçagem se dê de forma muito menos complexa nesses lugares. No Brasil, como no restante da América Latina, o mesmo não ocorre, a miscigenação é um fato. E mais do que um fato, ela vai se tornar um obstáculo, quando estudiosos e até mesmo cientistas (tanto nacionais como estrangeiros) forem analisar o território brasileiro em busca de uma identidade nacional. O Brasil se tornara uma espécie de laboratório vivo, onde cientistas procuraram comprovar na prática o que compuseram, e onde “ilustrados” brasileiros buscaram desesperadamente uma unidade, uma homogeneidade para definir o povo brasileiro, tendo como principal fonte de estudo , a ciência do séc. XIX descrita acima.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha
- nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, no dia 20 de janeiro de 1866. Foi criado pelos parentes, pois sua mãe morreu quando ele tinha três anos.
Após concluído o ginásio, ingressou na Escola Politécnica, para cursar engenharia. Devido às dificuldades financeiras, Euclides teve que largar o curso, e transferiu-se para Escola Militar da Praia Vermelha. Lá, reencontrou Benjamim Constant, seu antigo professor no Colégio Aquino, e de quem absorveria idéias positivista e republicanas.
Já identificado com os princípios republicanos, Euclides da Cunha cometeu um ato de insubmissão contra a Monarquia, quando cadete na fortaleza da Praia Vermelha: durante a visita do ministro da Guerra do Império, o conselheiro Tomás Coelho, atirou seu sabre aos pés deste, num gesto de contestação ao regime. Foi expulso do Exército por indisciplina.
Mudou-se para São Paulo e começou a escrever no jornal “A Província de São Paulo” (futuro “Estado de São Paulo”, após a proclamação da República). Com a vitória republicana, voltou ao Exército e concluiu a Escola Militar, formando-se em Engenharia com bacharelado em Matemática e Ciências Físicas e Naturais.
Em 1894, foi praticamente exilado (dão-lhe a incumbência de dirigir a construção de um quartel na cidade mineira de Campanha) por assumir posição antiflorianista. De lá, voltou para São Paulo para escrever no “Estado de São Paulo”.
Em 1897, Euclides foi mandado para Canudos pelo jornal como correspondente para reportar os eventos que lá ocorriam. Enviou uma série de artigos que, futuramente, dariam origem ao “Os Sertões”. O livro foi concluído em São José do Rio Pardo, onde morou até 1901.
“Os Sertões” alcançam repercussão nacional, permitindo a Euclides ingressar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e na Academia Brasileira de Letras. Nada disso fez com que Euclides tivesse sua vida mais facilitada. Continuou com a Engenharia, com momentos de desemprego, enfrentando dificuldades financeiras.
Em 1909, ingressa no Colégio PedroII, no Rio de Janeiro, para ministrar a cadeira de Lógica. No mesmo ano é assassinado pelo amante de sua mulher, Ana de Assis, durante uma troca de tiros. Morre com 43 anos de idade. Ensaísta e narrador extraordinário de Os sertões, Euclides da Cunha é o primeiro escritor a encarnar o gigantismo da terra brasileira, fazendo de sua obra um dos principais alicerces da consciência nacional.
A OBRA
1) CONTRASTES E CONFRONTOS, 1907. Coletânea de artigos saídos na imprensa 2) PERU X BOLÍVIA,1907. Estudo técnico sobre o litígio fronteiriço entre esses dois países andinos. Através de material técnico e histórico, Euclides mostra os erros que terminaram por orientar a delimitação territorial entre Peru e Bolívia.
3) À MARGEM DA HISTÓRIA,1909. Obra publicada após a morte de Euclides também reunindo artigos saídos na imprensa.
4) CADERNETA DE CAMPO,1975
CANUDOS, DIÁRIO DE UMA EXPEDIÇÃO, 1939.
Ambos os livros foram organizados valendo-se de textos que Euclides publicou no “Estado de São Paulo” entre Agosto e Setembro de 1897. Mostra como, ao produzir “Os Sertões”, Euclides retrabalhou seus escritos anteriores.
A CIÊNCIA E O PAÍS
A historiografia das ciências no Brasil é caracterizada pelo fato de considerar a criação das universidades na década de 30 do século XX como sendo a introdução da ciência no Brasil. A prática científica nos períodos anteriores a essa data é geralmente considerada como resultado da influência européia, não passando de mera repetição e copias das teorias vigentes na Europa. Não acreditamos que todo o trabalho intelectual brasileiro desde meados do século XIX possa ser considerado simples imitação, já que isso significaria "cair em certo reducionismo, deixando de lado a atuação de intelectuais reconhecidos na época, e mesmo desconhecer a importância de um momento em que a correlação entre a produção cientifica e o movimento social aparece de forma bastante evidenciada."(SCHWARCZ, 1993: 17)
No caso das teorias raciais parece ainda mais improvável a hipótese delas terem sido "importadas" e reproduzidas aleatoriamente no Brasil. Elas podiam trazer uma sensação de proximidade com a Europa e uma confiança no progresso e na civilização, "pareciam justificar cientificamente organizações e hierarquias tradicionais que pela primeira vez começavam a ser colocadas publicamente em questão"(SCHWARCZ, 1993: 18), mas também traziam um enorme mal estar. Como encarar a interpretação pessimista da mestiçagem presente nessas teorias num país já tão miscigenado?
Aceitar, copiar e reproduzir essas teorias no Brasil iria inviabilizar um projeto de construção nacional que mal tinha começado. Os homens de ciência brasileiros tiveram que achar uma resposta original, adaptando essas teorias utilizando o que combinava e descartando o que era problemático para a construção de um argumento racial no país. Esses homens são encontrados nos grupos de intelectuais reunidos nos diversos institutos de pesquisa e "longe de conformarem um grupo homogêneo (...) estes intelectuais guardavam, porém, certa identidade que os unia: a representação comum de que os espaço científicos dos quais participavam lhes davam legitimidade para discutir e apontar os impasses e perspectivas que se apresentavam para o país"(SCHWARCZ, 1993: 37).
A ciência era para esses homens o único caminho possível para as transformações e sobrevivência do Brasil. A vertente cientificista buscava encontrar as leis que organizavam a sociedade brasileira, que determinavam a formação do gênio, do espírito e do caráter do povo. Segundo essa mesma vertente, recorrendo à leis e métodos gerais, seria possível encontrar as especificidades da evolução brasileira e, assim, deduzir seu rumo. Como apontou Sevcenko essa atitude seria "uma versão desdobrada do lema lapidar do positivismo: 'Prever para Prover"(SEVCENKO, 1981: 103).
A necessidade de conhecer o Brasil também estava calcada no medo que muitos dessa geração tinham de que o país fosse invadido pelas potências expansionistas e viesse a perder autonomia ou parte do território. O próprio Euclides da Cunha pregava a necessidade da colonização do interior e a construção de uma rede interna de comunicação viária.
Essa atitude reformista e salvacionista pretendia criar um saber próprio sobre o Brasil nos seus mais diferentes aspectos e resultava em duas reações da comunidade científica. A primeira era acreditar no curso natural dos acontecimentos, sublimando as dificuldades presentes e transformando a sensação de inferioridade em um mito de superioridade. A segunda era buscar um conhecimento profundo do país para descobrir um certa ordem no caos presente.
Acreditamos que Euclides da Cunha esteja no segundo grupo, não só porque em momento algum aponta o embranquecimento natural da população, mas, principalmente pelas suas tentativas de determinar um tipo ético representativo da nacionalidade ou, pelo menos, simbólico dela.
Euclides da Cunha e a comunidade científica
Na obra de Euclides da Cunha podemos perceber a influência de várias teorias que estavam em voga na época e, por isso, temos que entender como ele entrou em contato com elas. O regulamento implantado em 1874 na Escola Militar da Praia Vermelha, onde Euclides da Cunha realizou seus estudos de engenharia, foi implantado num "ambiente intelectual já permeável às doutrinas cientificistas, de cunho positivista, evolucionista ou determinista."(SANTANA: 35) Por adotar o modelo francês uma das principais características da Escola Militar era a ênfase dada aos estudos matemáticos e um currículo que abrangia as ciências básicas para a formação de um engenheiro. Segundo Walnice Galvão, o estudo na Escola Militar foi muito importante para o conhecimento presente nos Sertões, "se compararmos as áreas de conhecimento que lá são mobilizadas com o currículo da Escola quando ele era aluno, verificamos que ele já estava familiarizado com boa parte delas. Tinha estudado na Escola química orgânica, mineralogia, geologia, botânica, arquitetura civil e militar, construção de estradas, desenho topográfico, ótica, astronomia, geodésia, administração militar, tática e estratégia, história militar, balística, mecânica racional, tecnologia militar e as matemáticas.(...) Como matérias de currículo, não teriam sido obrigatoriamente estudadas a fundo, conforme se percebe no livro, mas é com vistas afinadas para estes saberes que Euclides avalia Canudos e a guerra."(SANTANA: 43)
Como podemos explicar então o fato de teorias não necessariamente ligadas com a engenharia estarem presentes na obra de Euclides da Cunha, já que como afirma Sevcenko, ele se utiliza de "bases genéricas do comtismo, para fundi-las com a sociologia organicista e a filosofias biossociais de cunhagem inglesa e alemã"(SEVCENKO, 1981: 149). O contato com as correntes cientificistas não se davam exclusivamente via sala de aula, mas "incorporadas ao cotidiano dos alunos através de revista e sessões de sociedades estudantis, onde se poderiam acompanhar os debates das teorias cientificistas mais modernas, como as de Spencer, Haeckel e Darwin."(SANTANA: 35)
Depois de formado, Euclides da Cunha continua em contato com os escritos desses autores e também passa a ler escritos sobre o Brasil, como as obras de Varnhagem, Morize, Caminhoá, Silvio Romero, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio, Derby, Saint-Hilaire, Liais. Em São Paulo, Euclides da Cunha encontra alguns desses novos autores que foram contratados para trabalhar nas recém implantadas instituições, das quais são exemplos: a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo (1886), o Instituto Agronômico de Campinas (1887), o Instituto Bacteriológico de São Paulo (1892), a Escola Politécnica de São Paulo (1893) e o Museu Paulista (1894).
Euclides da Cunha era um integrante dessa comunidade científica e, apesar de só entrar para o IHGB depois de escrever os Sertões, já era filiado ao IHSP desde 1897 e à Comissão de História e Estatística de São Paulo desde 1898. Estes eram os espaços que permitiam a relação entre os filiados e as outras instituições e, principalmente, a difusão dos trabalhos dos pesquisadores.
O LIVRO
A divisão interna da obra é fruto da influência sofrida por Euclides do historiador francês Taine, o qual formulou no seu livro “Histoire de la Littérature Anglaise(1863)”, a concepção naturalista da história – teoriaNo plano interpretativo, o professor Alfredo Bosi propõe a divisão da obra em dois grandes planos: primeiro o plano histórico, que corresponde a parte final do livro – “ A Luta” – , sendo que este é seguido pelo plano interpretativo que, por sua vez, corresponde às duas divisões iniciais do mesmo (“A Terra” e “O Homem”). O momento histórico se reflete na obra tanto na estrutura determinista (que defende que os estudos devem partir dos aspectos geológicos, passando para detecção das variações climáticas para finalmente chegar ao último elo da cadeia que é o homem) quanto no raciocínio homólogo entre as ciências, onde verificamos a transposição de idéias da biologia e geologia para a explicação dos fenômenos humanos.
Como pudemos observar ao longo do presente trabalho, Euclides da Cunha era, em poucas palavras, um engenheiro militar, republicano, positivista que viveu na segunda metade do século XIX em um país culturalmente preso à França; e é com esse indivíduo que devemos nos dialogar durante a leitura desta obra. Até agora, nos detemos em fazer uma análise do momento, do contexto, da vida, da ciência no Brasil, que envolveram o autor e sua obra, pois acreditamos que esse é o instrumental teórico necessário para analisar um texto de tão profundo impacto quanto “Os Sertões”. Uma leitura que eventualmente não atente para estes detalhes pode deixar de observar a importância desta obra, ou então, cometendo um anacronismo imensurável, taxá-la de racista.
Passemos agora ao texto e suas características principais.
O PLANO INTERPRETATIVO
“Como quer que seja, o penoso regime dos estados do Norte está em função de agentes desordenados e fugitivos, sem leis ainda definidas, sujeita às perturbações locais, derivadas da natureza da terra. Daí as correntes aéreas que o desequilíbram. (...)Um dos motivos da seca repousa, assim, na disposição topográfica.(GALVÃO, 1998: 43)
O sertão é tão inóspito que até a natureza se contorce para ali viver. E como a natureza também o homem se modifica e se adapta a ela.
Euclides denuncia de certa forma o fato desta área ser muito mal estudada, e, até nessa questão, culpa a natureza por isso. O sertão e o sertanejo são algo nunca dantes entendidos e estudados e isto é um dos fatores que fizeram de sua obra tão lida e tão comentada na época.
As comparações entre o sul e o norte mostram que desde o início da obra Euclides tem como objetivo mostrar como que, através do determinismo geográfico, se formou uma sub-raça mestiça no sertão. O sul seria a terra que atraí o homem e o norte a que expulsa, como podemos ver nos trechos abaixo:
“E por mais inexperto que seja o observador – ao deixar as perspectivas majestosas, que se desdobram ao Sul, trocando-as pelos cenários emocionantes daquela natureza torturada, tem a impressão persistente de calcar fundo recém-sublevado de um mar extinto, tendo ainda estereotipada naquelas camadas rígidas a agitação das ondas voragens”(GALVÃO, 1998: 29)
“ Ora, estas largas divisões, apenas esboçadas, mostram já uma essencial entre o Sul e o Norte, absolutamente distintos pelo regime meteorológico, pela disposição da terra e pela transição variável entre o sertão e a costa.”(GALVÃO, 1998: 74)
A partir de tais comparações o autor toma como certeza que a aclimatação dos indivíduos seria prejudicial para o desenvolvimento dos mesmo. O europeu do que colonizou o Norte teria sido corrompido pelo clima, já o do sul teria mantido as características superiores pela mesma razão.
“A aclimatação traduz um evolução regressiva. O tipo desaparece num esvaecimento contínuo, que se lhe permite a descendência até à extinção total. Como o inglês nas Barbadas, na Tasmânia ou na Austrália, o português no Amazonas, se foge ao cruzamento, no fim de poucas gerações tem alterados os caracteres físicos e morais de uma maneira profunda, desde a tez, que se acobreia pelos sóis e pela eliminação incompleta do carbono, ao temperamento, que se debilita despido das qualidades primitivas. A raça inferior, o selvagem bronco, domina-o; aliado ao meio vence-o, esmaga-o, anula-o na concorrência formidável ao impaludismo, ao hepatismo, às pirexias esgotantes, às canículas abrasadoras, e aos alagadiços maleitosos.”(GALVÃO, 1998: 79)
Neste trecho temos em resumo a idéia do porquê que o autor descreve tão detalhadamente a terra. São as teorias deterministas, tanto biológicas quanto geográficas, que o norteam. O homem é um fruto de seu lugar. Para o Euclides que escreve antes de ver pessoalmente o desmonte criminoso do arraial de Canudos, as leis européias são as máximas vigentes.
Os tipos brasileiros, como o sertanejo e o gaúcho, resultaram não só da mestiçagem mas também da interação entre homem e natureza, homem e sociedade. Continua a operar o paralelo entre as séries, especialmente entre as mais próximas: as espécies de plantas e de animais devem a sua anatomia e fisiologia tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos. A simetria, que se dá por provada no nível genético e no nível mesológico, estendendo-se ao social. E os caracteres raciais ora confirmam-se ora se alteram no curso histórico da luta pela vida.
A descrição geográfica da região onde se instala o “Belo Monte” de Conselheiro, é detalhada, o que dá à obra uma característica própria do autor. O clima, o solo, os ventos, as chuvas, a temperatura, os animais e o homem, tudo é descrito não só apenas por um observador atento mas por um cientista natural.
O sertão é a terra esquecida pela metrópole portuguesa e posteriormente pela monarquia brasileira. Nela se formou isolada geograficamente um povo mestiço que se diferenciou dos mestiços litorâneos, para melhor, em razão do próprio isolamento no qual se mantiveram. Não podemos esquecer que “o sertanejo é antes de tudo um forte” porque não é como “os mestiços neurastênicos do litoral”. Eis, então, outro grande contraste que permeia toda a obra de Euclides da Cunha. Mas antes de mais nada, o autor reforça que toda “a mestiçagem extremada é um retrocesso”, o que vai de encontro com as teorias vigentes. Nessa época, dizer que o homem branco não superior à qualquer tipo de mestiçagem é uma ofensa a uma lei que até então era inquestionável. “Porque ali ficaram, inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo, murados a leste pela Serra Geral, tolhidos no ocidente pelos amplos campos gerais, que se desatam para o Piauí e que ainda hoje o sertanejo acredita sem fins. O meio atraía-o e guardava-os.”(GALVÃO, 1998: 190)
"O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados”(GALVÃO, 1998: 103)
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"Rocha viva...A locução sugere-me um símile eloqüente.
De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais . Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura do feldspato decomposto, variamente colorida; além da mica fracionada, rebrilhando escassamente sobre o chão; adiante friável, do quartzo triturado; mais longe o bloco moutnné, de aparência errática; de e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventicios, formando a incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelo vento, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.
Assim, à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida no local. Ora o nosso caso é idêntico - desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.
A principio uma dispersão estonteadora de atributos, que vão de todas as nuances da cor a todos os aspectos do caráter: Não há distinguir-se o brasileiro intrincado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmos indefinido da nossa raça. Mas estranhando-nos na terra vemos os primeiros grupos fixos - o caipira no sul, e o tabaréu, ao norte - onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz, entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares dos cruzamentos. Mas a medida que prosseguimos estas últimas se atenuam.
Vai-se notando maior uniformidade nos caracteres físicos e morais. Por fim a rocha viva - o sertanejo"(CUNHA, 1939: 580)
Euclides da Cunha não encontra o tipo brasileiro, que segundo ele próprio talvez nem exista, mas estabelece um símbolo da nacionalidade, símbolo que podia se prestar "a operar como um eixo sólido que centrasse, dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional."(SEVCENKO, 1981: 106) Igualmente importantes são as descrições do tipo de vida e dos costumes sertanejos. Euclides mostra, à seu modo, como esses homens simples vivem, as suas relações com os animais e coma a natureza local, bem como o seu fanatismo religioso, seu respeito á morte, sua “psique” de uma forma geral.
Carismático e penitente, o profeta conseguiu reunir muitos sertanejos de fé extremada. O povoado é descrito como se constituísse um agrupamento de bárbaros, uma tribo e até mesmo um clã. O autor dá considerável destaque para o fator que chegado certo tempo, todo o tipo de gente se dirige para Canudos o que causou um despovoamento das cidades vizinhas. Porém uma vez dentro do arraial, os diferentes se tornavam iguais e a coletividade de homogeinizava de uma forma que surpreendente. “O sertanejo simples transmudava-se, penetrando-o, no fanático destemeroso bruto. Absorvia-o a psicose coletiva”(GALVÃO, 1998: 163) Em linhas gerais, podemos definir esta parte do livro, o plano interpretativo de Bosi, a partir dos contrastes nela enunciados. São eles os travados entre a região sul e norte do Brasil, entre o litoral e o sertão nordestino, entre o sertão seco (infernal) e o sertão depois da chuvas (padisíaco) e finalmente entre o mestiço do sertão – curiboca – e o mestiço do litoral – mulato.
As descrições ricamente cheias de detalhes preparam o leitor para o plano histórico onde os fatos de desencadearão. Mais do que saber o que foi a Campanha, Euclides da Cunha nos oferece a partir de seu livro um “raio x” do sertão e do sertanejo como nunca fora antes feito. O leitor vai para “A Luta” sabendo quem e como vivem os atores deste triste episódio da história brasileira.
O FINAL
É importante pensar no mito que se criou em torno tanto do autor, quanto da obra. Existe ainda hoje uma relação passional com a figura de Euclides: duas cidades brigam para decidir aonde vão ficar seus restos mortais – São José do Rio Pardo, aonde escreveu o livro e Cantagalo, hoje também conhecida como Euclidolândia, aonde nasceu. O livro, publicado cinco anos após o fim de Canudos, mesmo sendo um ataque ao exército e uma denúncia do genocídio causado pela República, é um sucesso e vende muito assim que publicado. Criador e criatura viram ícones. Mas para entender a criação deste mito, é preciso ver que este é um quebra-cabeça de várias partes. O próprio Dante Moreira Leite, justifica a importância e repercussão do livro por sua linguagem.
“Se assim é, se a obra de Euclides da Cunha apresenta contradições tão nítidas – algumas das quais foram percebidas pelos primeiros leitores e críticos – pode-se perguntar como pôde ter uma repercussão tão grande. Esta não será compreendida se não lembrarmos o seu valor literário; embora não seja livro fácil, nem destinado a uma leitura desatenta, Os Sertões contém elementos de intensa dramaticidade, apresentados numa linguagem solene e adequada à grandeza da narrativa”. (LEITE, 1983:229)
Talvez o que mais marcou sua vida, tanto quanto sua obra, foi a sua viagem a canudos. Euclides era um cientificista, dentre muitas outras coisas, que vivia em uma época em que não se “ia à luta”. Teóricos trabalhavam apenas sobre livros, mas Euclides vai a Canudos e suas idéias ganham dinâmica. Dante Moreira Leite analisa como tal experiência repercutiu em uma linguagem muito mais realista e vibrante:
“(...) o estilo de Euclides, capaz de transmitir ao leitor a vibração de revolta diante dos acontecimentos de Canudos; além disso, como o livro pretende ser estritamente realista e, mais ainda, um livro de ciência, a sua prosa dramática adquire, talvez por estar contida nos limites da realidade histórica, uma intensidade que não teria na ficção.” (LEITE, 1983:222)
Muitas de suas concepções são alteradas. Diversas vezes, Canudos é associado ao movimento francês da Vendéia – como aparece : “Canudos era a nossa Vendéia” – sendo visto como um movimento monarquista por Euclides. Mas, “o contato direto com as condições físicas e morais do sertanejo”(BOSI) , como defende Bosi, acabou por desmentir o pressuposto.
No entanto, como depois também vai apontar Bosi, a interpretação se achava presa a um sistema de pensar fatalista. Entre o observador atento e a “cidadela-mundéu” dos jagunços havia mais do que um simples olhar desprevenido: a fixação do homem e o relato da luta não se fariam sem a tela das mediações ideológica e literária. Antônio Conselheiro vai ser sempre o fruto mórbido de uma cultura propensa à desordem e ao crime. Como a sociedade que o produziu, ele tende a reviver esquemas regressivos de conduta e linguagem. Como aparece no livro:
“É natural que estas camadas profundas de nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro... As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado, dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo. Por isso o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos a multidão, mas enérgicos e definidos, quando definidos numa ‘individualidade’ (... ) É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências ‘pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade...”
A linguagem, como já explicitamos anteriormente, é extremamente marcante e importante em Os Sertões. Euclides se utiliza inúmeras vezes de estilos e figuras com certas finalidades. Em suas “Notas de Leitura”, ele mesmo afirma:
“Vemos o quanto é forte esta alavanca – a palavra – que levanta sociedades inteiras, derriba tiranias seculares”.
Bosi atenta para o uso da linguagem como modo de explicar e fundamentar o que não tem fundamento nem explicação, a “ideologia do inapelável”. Daqui se entende o uso exaustivo de intensificações e antinomias, que imprimem um sentido grandiloqüente ao texto, além de: “reportar ao seu vezo de agigantar o tamanho, agravar o peso, acelerar o ritmo, alongar as distâncias, acentuar as diferenças, exasperar as tensões, radicalizar as tendências: em suma, ver nas coisas todas a sua face desmedida e extrema.” (BOSI: 6)
Um exemplo do próprio Sertões:
“Muito baixo no horizonte, o Sol descia vagarosamente, tangenciando com o limbo rutilante o extremo das chapadas remotas e o seu último clarão, a cavaleiro das sombras, que já se adunavam nas baixadas, caía sobre o dorso a montanha... Aclarou-o por momentos. Iluminou, fugaz, o préstito, que seguia à cadência das rezas. Deslizou, insensivelmente, subindo, à medida que lentamente ascendiam as sombras, até ao alto, onde os seus últimos raios cintilaram nos píncaros altaneiros. Estes fulguraram por instantes, como enormes círios, prestes acesos, prestes apagados, bruxuleando na meia-luz do crepúsculo.
Brilharam as primeiras estrelas. Rutilando na altura, a cruz resplandecente de Órion, alevantava-se sobre os sertões...” (CUNHA, 1985:314,315)
Mas todo este estilo “rebuscado”, se explique pela narrativa tratar de uma realidade já vista e já sentida e qualificada como trágica. Assim, a montagem do relato acaba dependendo de uma série cronológica, o que deixa que a liberdade estilística se faça maior no momento da elocução (pelo uso intensivo das figuras de linguagem).
E foi realmente este seu estilo que o consagrou logo que publicou pela primeira vez Os Sertões, mesmo sendo o seu conteúdo, quem traz sua importância: a de conseguir ultrapassar o científico, ir à luta, ver, sentir e mudar.
Sua visão de mundo muda com sua vivência em Canudos. Mas talvez seja um pouco complicado tratar da visão de mundo de um homem tendo lido apenas um livro seu. Nicolau Sevcenko, em sua tese de doutoramento, faz uma análise minuciosa do que ele mesmo entende por “visão de mundo”, porém, para isso, se baseia em praticamente tudo que o autor deixou escrito. Como aparece na referida tese:
“A partir da maneira como Euclides da Cunha dispõe, dá coerência, organiza e estrutura as concepções e idéias que lhe suscita a realidade circunjacente, no interior do espaço peculiar aberto por sua linguagem, é que podemos descortinar a sua visão de mundo. Assumem preponderância aqui as suas anotações de caráter mais pessoal, que serão cotejadas com as grandes diretrizes imprimidas pelo autor à sua obra e que vêm de ser apresentadas.” (SEVCENKO, 1981:211)
Porém, talvez sua visão cientificista e sua posição de republicano decepcionado ajudem a compreender seu mundo. Principalmente depois de Canudos, ele via uma inversão em sua sociedade. Mas o mais importante de pensar é como ele aparece como um homem de contradições e contrários. Tanto ele escreve e argumenta opondo elementos, como vive em um oscilar de posições. Quando Euclides vai a Canudos, perde este discurso factual e determinista; o inelutável e intransponível do fato vai cedendo às inflexões de um pensamento propriamente humano. A linguagem de denúncia e protesto que finaliza a narração de uma Canudos destruída cumpre a função de um apelo em que, como Bosi afirma: “pode aparecer um nós empenhado no que diz.”
Então vamos ao final de canudos:
“Fechemos este livro.
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.
Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...
Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos?...
E de que modo comentaríamos, coma só fragilidade da palavra humana, o fato singular de não aparecerem mais, desde a manhã de 3, os prisioneiros válidos colhidos na véspera, e entre eles aquele Antônio Beatinho que se nos entregara, confiante – e a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?
Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas.
Antes, no amanhecer daquele dia, comissão adrede escolhida descobrira o cadáver de Antônio Conselheiro.
Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam desprazido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tabua, o corpo do ‘famigerado e bárbaro’ agitador. Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, os olhos fundos cheios de terra – mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.
Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! -- faziam-se mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa agulheta de tecidos decompostos.
Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal extinto, aquele terribilíssimo antagonista.
Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores.
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura...”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como identidade nacional, podemos tirar desta obra a seguinte frase: “A nação brasileira é o resultado de uma angústia racial”. Euclides sofre essa angústia da qual as “leis” européias não dão conta. O Brasil é um país sem seu tipo antropológico definido e ele, Euclides da Cunha, é o primeiro que se propões a fazer um estudo a fundo desses cruzamentos todos que nos formam. Euclides não mascarou a realidade porque não pregou uma falsa igualdade social entre as “raças”, o que seria feito por outros como Oliveira Viana, ou Afonso Celso. Se hoje podemos enxergar mais longe que Euclides é porque somos pigmeus olhando do ombro de gigantes como ele.
FERNANDO PESSOA
ALVARO DE CAMPOS
opiário
Campos" escreve quadras, estrofes de
quatro versos, de teor autobiográfico,
apresentando-se amargurado e
insatisfeito(ainda sob influência
simbolista, há preocupação com a métrica e com a rima).
Em seguida, "Campos" envereda pelo Futurismo, adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade, do que resultam poemas como "Ode Triunfal", "Ode Marítima" e "Walt Whitman" (este último, homenageia o escritor norte-americano, além de se referir à sua homossexualidade. .
Uma influência de Whitman é bem clara nos poemas de "Campos": a oralidade e prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa, nos quais é desprezada a rima ou a métrica regular.
A última fase do heterónimo
A última fase do heterónimo
"Álvaro de Campos", em que pontifica o poema "Tabacaria", apresenta um poeta amargurado, reflectindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência.
Assim como "Ricardo Reis", "Álvaro de Campos" confessa-se discípulo de "Alberto Caeiro".
Mas, se "Reis" envereda pelo Neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, "Campos" revela-se inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de caieiro.
É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
já não encontro a mola pra adaptar-me.
Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.
É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-interior de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Precursor.
Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.
Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes,
Ergue-se a lua como a minha Sina.
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.
Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.
E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.
Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!
A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
Por isso eu tomo ópio. É um remédio
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.
Mensagem
Fernando Pessoa
Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum
Nota Preliminar
O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que
possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele
mortos, e ele um morto para eles.
A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou
citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo
símbolo que se propõe interpretar.
A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criála.
Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que
está além do símbolo, sem que se veja.
A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o
símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi
erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está
de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não
tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a
inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo
poderá ser interpretado.
A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras
matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado
com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição,
como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura
é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser
bem entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de
símbolos diferentes.
A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a
outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o
Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma
destas coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas
usam, falando ou escrevendo.
PRIMEIRA PARTE: BRASÃO
Bellum sine bello.
I. OS CAMPOS
PRIMEIRO / O DOS CASTELOS
A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.
SEGUNDO / O DAS QUINAS
Os Deuses vendem quando dão.
Comprase a glória com desgraça.
Ai dos felizes, porque são
Só o que passa!
Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.
Foi com desgraça e com vileza
Que Deus ao Cristo definiu:
Assim o opôs à Natureza
E Filho o ungiu.
II. OS CASTELOS
PRIMEIRO / ULISSES
O mytho é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mytho brilhante e mudo —-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.
SEGUNDO / VIRIATO
Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu.
Nação porque reencarnaste,
Povo porque ressuscitou
Ou tu, ou o de que eras a haste —
Assim se Portugal formou.
Teu ser é como aquela fria
Luz que precede a madrugada,
E é ja o ir a haver o dia
Na antemanhã, confuso nada.
TERCEIRO / O CONDE D. HENRIOUE
Todo começo é involuntáario.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
«Que farei eu com esta espada?»
Ergueste-a, e fez-se.
QUARTO / D. TAREJA
As naçôes todas são mystérios.
Cada uma é todo o mundo a sós.
Ó mãe de reis e avó de impérios,
Vela por nós!
Teu seio augusto amamentou
Com bruta e natural certeza
O que, imprevisto, Deus fadou.
Por ele reza!
Dê tua prece outro destino
A quem fadou o instinto teu!
O homem que foi o teu menino
Envelheceu.
Mas todo vivo é eterno infante
Onde estás e não há o dia.
No antigo seio, vigilante,
De novo o cria!
QUINTO / D. AFONSO HENRIQUES
Pai, foste cavaleiro.
Hoje a vigília é nossa.
Dá-nos o exemplo inteiro
E a tua inteira força!
Dá, contra a hora em que, errada,
Novos infiéis vençam,
A bênção como espada,
A espada como benção!
SEXTO / D. DINIS
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
SÉTIMO (I) / D. JOÃO O PRIMEIRO
O homem e a hora são um só
Quando Deus faz e a história é feita.
O mais é carne, cujo pó
A terra espreita.
Mestre, sem o saber, do Templo
Que Portugal foi feito ser,
Que houveste a glória e deste o exemplo
De o defender.
Teu nome, eleito em sua fama,
É, na ara da nossa alma interna,
A que repele, eterna chama,
A sombra eterna.
SÉTIMO (II) / D. FILIPA DE LENCASTRE
Que enigma havia em teu seio
Que só gênios concebia?
Que arcanjo teus sonhos veio
Velar, maternos, um dia?
Volve a nós teu rosto sério,
Princesa do Santo Graal,
Humano ventre do Império,
Madrinha de Portugal!
III. AS QUINAS
PRIMEIRA / D. DUARTE, REI DE PORTUGAL
Meu dever fez-me, como Deus ao mundo.
A regra de ser Rei almou meu ser,
Em dia e letra escrupuloso e fundo.
Firme em minha tristeza, tal vivi.
Cumpri contra o Destino o meu dever.
Inutilmente? Não, porque o cumpri.
SEGUNDA / D. FERNANDO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gládio, porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.
E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.
TERCEIRA / D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir,
É claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —
Não me podia a Sorte dar guarida
Por não ser eu dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à idéia tida.
Tudo o mais é com Deus!
QUARTA / D. JOÃO, INFANTE DE PORTUGAL
Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;
Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita —
O todo, ou o seu nada.
QUINTA / D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
IV. A COROA
NUN'ÁLVARES PEREIRA
Que auréola te cerca?
É a espada que, volteando.
Faz que o ar alto perca
Seu azul negro e brando.
Mas que espada é que, erguida,
Faz esse halo no céu?
É Excalibur, a ungida,
Que o Rei Artur te deu.
'Sperança consumada,
S. Portugal em ser,
Ergue a luz da tua espada
Para a estrada se ver!
V. O TIMBRE
A CABEÇA DO GRIFO / O INFANTE D. HENRIOUE
Em seu trono entre o brilho das esferas,
Com seu manto de noite e solidão,
Tem aos pés o mar novo e as mortas eras —
O único imperador que tem, deveras,
O globo mundo em sua mão.
UMA ASA DO GRIFO / D. JOÃO O SEGUNDO
Braços cruzados, fita além do mar.
Parece em promontório uma alta serra —
O limite da terra a dominar
O mar que possa haver além da terra.
Seu formidavel vulto solitário
Enche de estar presente o mar e o céu
E parece temer o mundo vário
Que ele abra os braços e lhe rasgue o véu.
A OUTRA ASA DO GRIFO / AFONSO DE ALBUQUEROUE
De pé, sobre os países conquistados
Desce os olhos cansados
De ver o mundo e a injustiça e a sorte.
Não pensa em vida ou morte
Tão poderoso que não quer o quanto
Pode, que o querer tanto
Calcara mais do que o submisso mundo
Sob o seu passo fundo.
Três impérios do chão lhe a Sorte apanha.
Criou-os como quem desdenha.
SEGUNDA PARTE: MAR PORTUGUEZ
Possessio maris.
I. O INFANTE
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,
E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te portuguez..
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
II. HORIZONTE
O mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
'Splendia sobre as naus da iniciação.
Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves, flores,
Onde era só, de longe a abstrata linha
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp'rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
III. PADRÃO
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.
IV. O MOSTRENGO
mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
V. EPITÁFIO
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tetos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
V. EPITÁFIO DE BARTOLOMEU DIAS
Jaz aqui, na pequena praia extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o tema!
Atlas, mostra alto o mundo no seu ombro.
Vl. OS COLOMBOS
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.
VII. OCIDENTE
Com duas mãos — o Ato e o Destino —
DesvendAmos. No mesmo gesto, ao céu
Uma ergue o fecho trêmulo e divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que havia
A mão que ao Ocidente o véu rasgou,
Foi a alma a Ciência e corpo a Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou Temporal
A mão que ergueu o facho que luziu,
Foi Deus a alma e o corpo Portugal
Da mão que o conduziu.
VIII. FERNÃO DE MAGALHÃES
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra inteira.
E sombras desformes e descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite aterra?
São os Titãs, os filhos da Terra,
Que dançam na morte do marinheiro
Que quis cingir o materno vulto
— Cingiu-o, dos homens, o primeiro —,
Na praia ao longe por fim sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
IX. ASCENSÃO DE VASCO DA GAMA
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovôes,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.
X. MAR PORTUGUÊS
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
XI. A ÚLTIMA NAU
Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol azíago
Erma, e entre choros de ânsia e de presago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou 'spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
XII. PRECE
Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistaremos a Distância —
Do mar ou outra, mas que seja nossa!
TERCEIRA PARTE: O ENCOBERTO
Pax in excelsis.
I. OS SÍMBOLOS
PRIMEIRO / D. SEBASTIÃO
'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
Para o intervalo em que esteja a alma imersa
Em sonhos que são Deus.
Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?
É O que eu me sonhei que eterno dura
É Esse que regressarei.
SEGUNDO / O QUINTO IMPÉRIO
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa — os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
TERCEIRO / O DESEJADO
Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!
Vem, Galaaz com pátria, erguer de novo,
Mas já no auge da suprema prova,
A alma penitente do teu povo
À Eucaristia Nova.
Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Graal!
QUARTO / AS ILHAS AFORTUNADAS
Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
E a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.
E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.
São ilhas afortunadas
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando
Cala a voz. e há só o mar.
QUINTO / O ENCOBERTO
Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz Morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.
Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa que é o Cristo.
Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.
II. OS AVISOS
PRIMEIRO / O BANDARRA
Sonhava, anônimo e disperso,
O Império por Deus mesmo visto,
Confuso como o Universo
E plebeu como Jesus Cristo.
Não foi nem santo nem herói,
Mas Deus sagrou com Seu sinal
Este, cujo coração foi
Não português, mas Portugal.
SEGUNDO / ANTÓNIO VIEIRA
O céu 'strela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e à glória tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia, e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.
TERCEIRO
'Screvo meu livro à beiramágoa.
Meu coração não tem que ter.
Tenho meus olhos quentes de água.
Só tu, Senhor, me dás viver.
Só te sentir e te pensar
Meus dias vácuos enche e doura.
Mas quando quererás voltar?
Quando é o Rei? Quando é a Hora?
Quando virás a ser o Cristo
De a quem morreu o falso Deus,
E a despertar do mal que existo
A Nova Terra e os Novos Céus?
Quando virás, ó Encoberto,
Sonho das eras português,
Tornar-me mais que o sopro incerto
De um grande anseio que Deus fez?
Ah, quando quererás voltando,
Fazer minha esperança amor?
Da névoa e da saudade quando?
Quando, meu Sonho e meu Senhor?
III. OS TEMPOS
PRIMEIRO / NOITE
A nau de um deles tinha-se perdido
No mar indefinido.
O segundo pediu licença ao Rei
De, na fé e na lei
Da descoberta, ir em procura
Do irmão no mar sem fim e a névoa escura.
Tempo foi. Nem primeiro nem segundo
Volveu do fim profundo
Do mar ignoto à pátria por quem dera
O enigma que fizera.
Então o terceiro a El-Rei rogou
Licença de os buscar, e El-Rei negou.
Como a um cativo, o ouvem a passar
Os servos do solar.
E, quando o vêem, vêem a figura
Da febre e da amargura,
Com fixos olhos rasos de ânsia
Fitando a proibida azul distância.
Senhor, os dois irmãos do nosso Nome
— O Poder e o Renome —
Ambos se foram pelo mar da idade
À tua eternidade;
E com eles de nós se foi
O que faz a alma poder ser de herói.
Queremos ir buscá-los, desta vil
Nossa prisão servil:
É a busca de quem somos, na distância
De nós; e, em febre de ânsia,
A Deus as mãos alçamos.
Mas Deus não dá licença que partamos.
SEGUNDO / TORMENTA
Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.
Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha e o mar 'scuro 'struge.
TERCEIRO / CALMA
Que costa é que as ondas contam
E se não pode encontrar
Por mais naus que haja no mar?
O que é que as ondas encontram
E nunca se vê surgindo?
Este som de o mar praiar
Onde é que está existindo?
lha próxima e remota,
Que nos ouvidos persiste,
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
A praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
Haverá rasgões no espaço
Que dêem para outro lado,
E que, um deles encontrado,
Aqui, onde há só sargaço,
Surja uma ilha velada,
O país afortunado
Que guarda o Rei desterrado
Em sua vida encantada?
QUARTO / ANTEMANHÃ
O mostrengo que está no fim do mar
Veio das trevas a procurar
A madrugada do novo dia
Do novo dia sem acabar
E disse: Quem é que dorme a lembrar
Que desvendou o Segundo Mundo
Nem o Terceiro quere desvendar?
E o som na treva de ele rodar
Faz mau o sono, triste o sonhar,
Rodou e foi-se o mostrengo servo
Que seu senhor veio aqui buscar.
Que veio aqui seu senhor chamar —
Chamar Aquele que está dormindo
E foi outrora Senhor do Mar.
QUINTO / NEVOEIRO
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Valete, Frates.
Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Cancioneiro
Fernando Pessoa
Fonte: http://www.cfh.ufsc.br/~magno/cancioneiro.htm
Nota Preliminar
1.
Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno
depercepção: ao mesmo tempo que tempos consciência dum estado de alma, temos
diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior,
uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases,
tudo o que forma o mundoexterior num determinado momento da nossa percepção.
2.
Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não
sórepresentável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em
nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma
tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito.
E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem -
pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma
paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá
que os meus pensamentos são tristes.
3.
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e
sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de
duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o
nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos
vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de
chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos
os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que "na ausência da amada o
sol não brilha", e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar
bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem
interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecçãode
duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo
admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente
interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem
exterior. [...]
Fernando Pessoa
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
"Navegar é preciso; viver não é preciso".
Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:
Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
[Nota de SF
"Navigare necesse; vivere non est necesse" - latim, frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC.,
dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida
de Pompeu]
Tudo quanto penso
Tudo quanto penso,
Tudo quanto sou
É um deserto imenso
Onde nem eu estou.
Extensão parada
Sem nada a estar ali,
Areia peneirada
Vou dar-lhe a ferroada
Da vida que vivi.
Vendaval
Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!
Indômita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles — teu pulso divida
Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar -
Fosse pr'onde fosse, pra longe da idéia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver -
Porque é que não entras no meu penssamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, é vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais'scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!
Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!
Não sei quantas almas tenho
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que sogue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
Quinto Império
Vibra, clarim, cuja voz diz.
Que outrora ergueste o grito real
Por D. João, Mestre de Aviz,
E Portugal!
Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. João Segundo
O Império extremo!
Vibra, sem lei ou com lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo — El-Rei
D. Sebastião!
Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!
Aquele exército que é feito
Do quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo.
Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si,
Convoco todos sem saber
(É a Hora!) aqui!
Os que, soldados da alta glória,
Deram batalhas com um nome,
E de cuia alma a voz da história
Tem sede e fome.
E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e crer da externa sorte,
Convoco todos sem saber
Com vida e morte.
Sim, estes, os plebeus do Império;
Heróis sem ter para quem o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder!
E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão de ser!
Todos, todos! A hora passa,
O gênio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai.
A todos, todos, feitos num
Que é Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!
E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto.
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo.
Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistério —
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto império.
Aqui! Aqui! Todos que são.
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!
Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha.
Do que por haver ou do que é vindo —
É o mesmo: venha!
Vós não soubesses o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.
Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.
De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando o Gládio e o escudo,
Galgar os céus.
Titãs de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastros.
Vibra, estandarte feito som,
No ar do mundo que há de ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!
Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!
Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto.
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!
Vinde aqui todos os que sois,
Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou Santos ou Heróis
De Portugal.
Não foi para servos que nascemos
De Grécia ou Roma ou de ninguém.
Tudo negamos e esquecemos:
Fomos para além.
Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente
Que o seu inteiro vôo libra
De poente a oriente.
Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!
O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anônimo e disperso
De Osíris, Deus.
O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baco divino.
Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a Cruz,
Reza, ante à Cruz universal,
Do Deus Jesus.
Para Além Doutro Oceano de C[oelho] Pacheco
Num sentimento de febre de ser para além doutro oceano
Houve posições dum viver mais claro e mais límpido
E aparências duma cidade de seres
Não irreais mas lívidos de impossibilidade, consagrados em pureza e em nudez
Fui pórtico desta visão irrita e os sentimentos eram só o desejo de os ter
A noção das coisas fora de si, tinha-as cada um adentro
Todos viviam na vida dos restantes
E a maneira de sentir estava no modo de se viver
Mas a forma daqueles rostos tinha a placidez do orvalho
A nudez era um silêncio de formas sem modo de ser
E houve pasmos de toda a realidade ser só isto
Mas a vida era a vida e só era a vida
O meu pensamento muitas vezes trabalha silenciosamente
Com a mesma doçura duma máquina untada que se move sem fazer barulho
Sinto-me bem quando ela assim vai e ponho-me imóvel
Para não desmanchar o equilíbrio que me faz tê-lo desse modo
Pressinto que é nesses momentos que o meu pensamento é claro
Mas eu não o oiço e silencioso ele trabalha sempre de mansinho
Como uma máquina untada movida por uma correia
E não posso ouvir senão o deslizar sereno das peças que trabalham
Eu lembro-me às vezes de que todas as outras pessoas devem sentir isto como eu
Mas dizem que lhes dói a cabeça ou sentem tonturas
Esta lembrança veio-me como me podia vir outra qualquer
Como por exemplo a de que eles não sentem esse deslizar
E não pensam em que o não sentem
Neste salão antigo em que as panóplias de armas cinzentas
São a forma dum arcaboiço em que há sinais doutras eras
Passeio o meu olhar materializado e destaco de escondido nas armaduras,
Aquele segredo de alma que é a causa de eu viver
Se fito na panóplia o olhar mortificado em que há desejos de não ver
Toda a estrutura férrea desse arcaboiço que eu pressinto não sei por quê
Se apossa do meu senti-la como um clarão de lucidez
Há som no serem iguais dois elmos que me escutam
A sombra das lanças de ser nítida marca a indecisão das palavras
Dísticos de incerteza bailam incessantemente sobre mim
Oiço já as coroações de heróis que hão de celebrar-me
E sobre este vício de sentir encontro-me nos mesmos espasmos
Da mesma poeira cinzenta das armas em que há sinais doutras eras
Quando entro numa sala grande e nua à hora do crepúsculo
E que tudo é silêncio ela tem para mim a estrutura duma alma
É vaga e poeirenta e os meus passos têm ecos estranhos
Como os que ecoam na minha alma quando eu ando
Por suas janelas tristes, entra a luz adormecida de lá de fora
E projeta na parede escura em frente as sombras e as penumbras
Uma sala grande e vazia é uma alma silenciosa
E as correntes de ar que levantam pó são os pensamentos
Um rebanho de ovelhas, é uma coisa triste
Porque lhe não, devemos poder associar outras idéias que não sejam tristes
E porque assim é e só porque assim é porque é verdade
Que devemos associar idéias tristes a um rebanho de ovelhas
Por esta razão e só por esta razão é que as ovelhas são realmente tristes
Eu roubo por prazer quando me dão um objeto de valor
E eu dou em troca uns bocados de metal. Esta idéia não é comum nem banal
Porque eu encaro-a de modo diferente e não há relação entre um metal e outro objeto
Se eu fosse comprar latão e desse alcachofras prendiam-me
Eu gostava de ouvir qualquer pessoa expor e explicar
O modo como se pode deixar de pensar em que se pensa que se faz uma coisa
E assim perderia o receio que tenho de que um dia venha a saber
Que o pensar eu em coisas e no pensar não passa duma coisa material e perfeita
A posição dum corpo não é indiferente para o seu equilíbrio
E a esfera não é um corpo porque não tem forma
Se é assim e se todos ouvimos um som em qualquer posição
Infiro que ele não deve ser um corpo
Mas os que sabem por intuição que o som não é um corpo
Não seguiram o meu raciocínio e essa noção assim não lhes serve para nada
Quando me lembro que há pessoas que jogam as palavras para fazerem espírito
E se riem por isso e contam casos particulares da vida de cada um
Para assim se desenfastiarem e que acham graça aos palhaços de circo
E se incomodam por lhes cair uma nódoa de azeite no fato novo
Sinto-me feliz por haver tanta coisa que eu não compreendo
Na arte de cada operário vejo toda uma geração a esbater-se
E por isso eu não compreendo arte nenhuma e vejo essa geração
O operário não vê na sua arte nada duma geração
E por isso ele é operário e conhece a sua arte
O meu físico é muitas vezes causa de eu me amargurar
Eu sei que sou uma coisa a porque não sou diferente de uma coisa qualquer
Sei que as outras coisas serão como eu e têm de pensar que eu sou uma coisa comum
Se portanto assim é eu não penso mas julgo que penso
E esta maneira de me eu acondicionar é boa e alivia-me
Eu amo as alamedas de árvores sombrias e curvas
E ao caminhar em alamedas extensas que o meu olhar afeiçoa
Alamedas que o meu olhar afeiçoa sem que eu saiba como
Elas são portas que se abrem no meu ser incoerente
E são sempre alamedas que eu sinto quando o pasmo de ser assim me distingue
Muitas vezes oculto-me sensações e gostos
E então elas variam e estão em acordo com as dos outros
Mas eu não as sinto e também não sei que me engano
Sentir a poesia é a maneira figurada de se viver
Eu não sinto a poesia não porque não saiba o que ela é
Mas porque não posso viver figuradamente
E se o conseguisse tinha de seguir outro modo de me acondicionar
A condição da poesia é ignorar como se pode senti-la
Há coisas belas que são belas em si
Mas a beleza íntima dos sentimentos espelha-se nas coisas
E se elas são belas nós não as sentimos
Na seqüência dos passos não posso ver mais que a seqüência dos passos
E eles seguem-se como se eu os visse seguirem-se realmente
Do fato deles serem tão iguais a si mesmo
E de não haver uma seqüência de passos que o não seja
É que eu vejo a necessidade de nos não iludirmos sobre o sentido claro das coisas
Assim havíamos de julgar que um corpo inanimado sente e vê diferentemente de nós
E esta noção pode ser admissível demais seria incômoda e fútil
Se quando pensamos podemos deixar de fazer movimento e de falar
Para que é preciso supor que as coisas não pensam
Se esta maneira de as ver é incoerente e fácil para o espírito?
Devemos supor e este é o verdadeiro caminho
Que nós pensamos pelo fato de o podermos fazer sem nos mexermos nem falar
Como fazem as coisas inanimadas
Quando me sinto isolado a necessidade de ser uma pessoa qualquer surge
E redemoinha em volta de mim em espirais oscilantes
Esta maneira de dizer não é figurada
E eu sei que ela redemoinha em volta de mim como uma borboleta em volta de uma luz
Vejo-lhe sintomas de cansaço e horrorizo-me quando julgo que ela vai cair
Mas de nunca suceder isso acontece eu estar às vezes isolado
Há pessoas a quem o arranhar das paredes impressiona
E outras que se não impressionam
Mas o arranhar das paredes é sempre igual
E a diferença vem das pessoas. Mas se há diferença entre este sentir
Haverá diferença pessoal no sentir das outras coisas
E quando todos, pensem igual duma coisa é porque ela é diferente para cada um
A memória é a faculdade de saber que havemos de viver
Portanto os amnésicos não podem saber que vivem
Mas eles são como eu infelizes e eu sei que estou vivendo e hei de viver
Um objeto que se atinge um susto que se tem
São tudo maneiras de se viver para os outros
Eu desejaria viver ou ser adentro de mim como vivem ou são os espaços
Depois de comer quantas pessoas se sentam em cadeiras de balanço
Ajeitam-se nas almofadas fecham os olhos e deixam-se viver
Não há luta entre o viver e a vontade de não viver
Ou então — e isto é horroroso para mim — se há realmente essa luta
Com um tiro de pistola matam-se tendo primeiro, escrito cartas
Deixar-se viver é absurdo como um falar em segredo
Os artistas de circo são superiores a mim
Porque sabem fazer pinos e saltos mortais a cavalo
E dão os saltos só por os dar
E se eu desse um salto havia de querer saber por que o dava
E não os dando entristecia-me
Eles não são capazes de dizer como é que os dão
Mas saltam como só eles sabem saltar
E nunca perguntaram a si mesmos se realmente saltam
Porque eu quando vejo alguma coisa
Não sei se ela se dá ou não nem posso sabê-lo
Só sei que para mim é como se ela acontecesse porque a vejo
Mas não posso saber se vejo coisas que não aconteçam
E se as visse também podia supor que elas sucediam
Uma ave é sempre bela porque é uma ave
E as aves são sempre belas
Mas uma ave sem penas é repugnante como um sapo
E um montão de penas não é belo
Deste fato tão nu em si não sei induzir nada
E sinto que deve haver nele alguma grande verdade
O que eu penso duma vez nunca pode ser igual ao que eu penso doutra vez
E deste modo eu vivo para que os outros saibam que vivem
Às vezes ao pé dum muro vejo um pedreiro a trabalhar
E a sua maneira de existir e de poder ser visto é sempre diferente do que julgo
Ele trabalha e há um incitamento dirigido que move os seus braços
Como é que acontece estar ele trabalhando por uma vontade que tem disso
E eu não esteja trabalhando nem tenha vontade disso
E não possa ter compreensão dessa possibilidade?
Ele não sabe nada destas verdades mas não é mais feliz do que eu com certeza
Em áleas doutros parques pisando as folhas secas
Sonho às vezes que sou para mim e que tenho de viver
Mas nunca passa este ver-me de ilusão
Porque me vejo afinal nas áleas desse parque
Pisando as folhas secas que me escutam
Se pudesse ao menos ouvir estalar as folhas secas
Sem ser eu que as pisasse ou sem que elas me vissem
Mas as folhas secas redemoinham e eu tenho de as pisar
Se ao menos nesta travessia eu tivesse um outro como toda a gente
Uma obra-prima não passa de ser uma obra qualquer
E portanto uma obra qualquer é uma obra-prima
Se este raciocínio é falso não é falsa a vontade
Que eu tenho de que ele seja de fato verdadeiro
E para os usos do meu pensar isso me basta
Que importa que uma idéia seja obscura se ela é uma idéia
E uma idéia não pode ser menos bela do que outra
Porque não pode haver diferença entre duas idéias
E isto é assim porque eu vejo que isto tem de ser assim
Um cérebro a sonhar é o mesmo que pensa
E os sonhos não podem ser incoerentes porque não passam de pensamentos
Como outros quaisquer. Se vejo alguém olhando-me
Começo sem querer a pensar como toda a gente
E é tão doloroso isso como se me marcassem a alma a ferro em brasa
Mas como posso eu saber se é doloroso marcar a alma a ferro em brasa
Se um ferro em brasa é uma idéia que eu não compreendo
O descaminho que levaram as minhas virtudes comove-me
Compunge-me sentir que posso notar se quiser a falta delas
Eu gostava de ter as minhas virtudes gostosas que me preenchessem
Mas só para poder gozar e possuí-las e serem minhas essas virtudes
Há pessoas que dizem sentir o coração despedaçado
Mas não entrevistam sequer o que seria de bom
Sentir despedaçarem-nos o coração
Isso é uma coisa que se não sente nunca
Mas não é essa a razão por que seria uma felicidade sentir o coração despedaçado
Num salão nobre de penumbra em que há azulejos
Em que há azulejos azuis colorindo as paredes
E de que o chão é escuro e pintado e com passadeiras de juta
Dou entrada às vezes coerente por demais
Sou naquele salão como qualquer pessoa
Mas o sobrado é côncavo e as portas não acertam
A tristeza das bandeiras crucificadas nos entrevãos das portas
É uma tristeza feita de silêncio desnivelada
Pelas janelas reticuladas entre a luz quando é dia,
Que entorpece os vidros das bandeiras e recolhe a recantos montões de negrume
Correm às vezes frios ventosos pelos extensos corredores
Mas há cheiro a vernizes velhos e estalados nos recantos dos salões
E tudo é dolorido neste solar de velharias
Alegra-me às vezes passageiramente pensar que hei de morrer
E serei encerrado num caixão de pau cheirando a resina
O meu corpo há de derreter-se para líquidos espantosos
As feições desfar-se-ão em vários podres coloridos
E irá aparecendo a caveira ridícula por baixo
Muito suja e muito cansada a pestanejar
Quadras ao Gosto Popular
Cantigas de portugueses
São como barcos no mar —
Vão de uma alma para outra
Com riscos de naufragar.
Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per'las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.
A terra é sem vida, e nada
Vive mais que o coração...
E envolve-te a terra fria
E a minha saudade não!
Deixa que um momento pense
Que ainda vives ao meu lado...
Triste de quem por si mesmo
Precisa ser enganado!
Morto, hei de estar ao teu lado
Sem o sentir nem saber...
Mesmo assim, isso me basta
P'ra ver um bem em morrer.
Não sei se a alma no Além vive...
Morreste! E eu quero morrer!
Se vive, ver-te-ei; se não,
Só assim te posso esquecer.
Se ontem à tua porta
Mais triste o vento passou —
Olha: levava um suspiro...
Bem sabes quem to mandou...
Entreguei-te o coração,
E que tratos tu lhe deste!
É talvez por 'star estragado
Que ainda não mo devolveste ...
A caixa que não tem tampa
Fica sempre destapada
Dá-me um sorriso dos teus
Porque não quero mais nada.
Tens o leque desdobrado
Sem que estejas a abanar.
Amor que pensa e que pensa
Começa ou vai acabar.
Duas horas te esperei
Dois anos te esperaria.
Dize: devo esperar mais?
Ou não vens porque inda é dia?
Toda a noite ouvi no tanque
A pouca água a pingar.
Toda a noite ouvi na alma
Que não me podes amar.
Dias são dias, e noites
São noites e não dormi...
Os dias a não te ver
As noites pensando em ti.
Trazes a rosa na mão
E colheste-a distraída...
E que é do meu coração
Que colheste mais sabida?
Teus olhos tristes, parados,
Coisa nenhuma a fitar...
Ah meu amor, meu amor,
Se eu fora nenhum lugar!
Depois do dia vem noite,
Depois da noite vem dia
E depois de ter saudades
Vêm as saudades que havia.
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar.
Vale a pena ser discreto?
Não sei bem se vale a pena.
O melhor é estar quieto
E ter a cara serena.
Rosmaninho que me deram,
Rosmaninho que darei,
Todo o mal que me fizeram
Será o bem que eu farei.
Tenho um relógio parado
Por onde sempre me guio.
O relógio é emprestado
E tem as horas a fio.
Quando é o tempo do trigo
É o tempo de trigar,
A verdade é um postigo
A que ninguém vem falar.
Levas chinelas que batem
No chão com o calcanhar.
Antes quero que me matem
Que ouvir esse som parar.
Em vez da saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.
Levas uma rosa ao peito
E tens um andar que é teu...
Antes tivesses o jeito
De amar alguém, que sou eu.
Teus brincos dançam se voltas
A cabeça a perguntar.
São como andorinhas soltas
Que inda não sabem voar.
Tens uma rosa na mão.
Não sei se é para me dar.
As rosas que tens na cara,
Essas sabes tu guardar.
Fomos passear na quinta,
Fomos à quinta em passeio.
Não há nada que eu não sinta
Que me não faça um enleio.
Os alcatruzes da nora
Andam sempre a dar e dar,
É para dentro e pra fora
E não sabem acabar.
Ó minha menina loura,
Ó minha loura menina,
Dize a quem te vê agora
Que já foste pequenina ...
Tens um livro que não lês,
Tens uma flor que desfolhas;
Tens um coração aos pés
E para ele não olhas.
Nunca dizes se gostaste
Daquilo que te calei.
Sei bem que o adivinhaste.
O que pensaste não sei.
O vaso que dei àquem
Que não sabe quem lho deu
Há de ser posto à janela
Sem ninguém saber que, é meu.
Tive uma flor para dar
A quem não ousei dizer
Que lhe queria falar,
E a flor teve que morrer.
Quando olhaste para trás,
Não supus que era por mim.
Mas sempre olhaste, e isso faz
Que fosse melhor assim.
Todos os dias eu penso
Naquele gesto engraçado
Com que pegaste no lenço
Que estava esquecido ao lado.
Tens uma salva de prata
Onde pões os alfinetes...
Mas não tem salva nem prata
Aquilo que tu prometes.
Adivinhei o que pensas
Só por saber que não era
Qualquer das coisas imensas
Que a minh'alma sempre espera.
Ouvi-te cantar de dia.
De noite te ouvi cantar.
Ai de mim, se é de alegria!
Ai de mim, se é de penar!
Por um púcaro de barro
Bebe-se a água mais fria.
Quem tem tristezas não dorme,
Vela para ter alegria.
O malmequer que arrancaste
Deu-te nada no seu fim,
Mas o amor que me arrancaste,
Se deu nada, foi a mim.
Teu xaile de seda escura
É posto de tal feição
Que alegre se dependura
Dentro do meu coração.
O manjerico comprado
Não é melhor que o que dão.
Põe o manjerico ao lado
E dá-me o teu coração.
Rosa verde, rosa verde,...
Rosa verde é coisa que há?
É uma coisa que se perde
Quando a gente não está lá.
A rosa que se não colhe
Nem por isso tem mais vida.
Ninguém há que te não olhe
Que te não queira colhida.
Há verdades que se dizem
E outras que ninguém dirá.
Tenho uma coisa a dizer-te
Mas não sei onde ela está.
Quando ao domingo passeias
Levas um vestido claro.
Não é o que te conheço
Mas é em ti que reparo.
Tenho vontade de ver-te
Mas não sei como acertar.
Passeias onde não ando,
Andas sem eu te encontrar.
Andorinha que passaste,
Quem é que te esperaria?
Só quem te visse passar.
E esperasse no outro dia.
Nuvem do céu, que pareces
Tudo quanto a gente quer,
Se tu, ao menos, me desses
O que se não pode ter!
O burburinho da água
No regato que se espalha
É como a ilusão que é mágoa
Quando a verdade a baralha.
Leve sonho, vais no chão
A andares sem teres ser.
És como o meu coração
Que sente sem nada ter.
Vai alta a nuvem que passa.
Vai alto o meu pensamento
Que é escravo da tua graça
Como a nuvem o é do vento.
Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo.
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.
Aquela senhora velha
Que fala com tão bom modo
Parece ser uma abelha
Que nos diz: "Não incomodo".
Maria, se eu te chamar,
Maria, vem cá dizer
Que não podes cá chegar.
Assim te consigo ver.
Boca com olhos por cima
Ambos a estar a sorrir...
Já sei onde está a rima
Do que não ouso pedir.
Quem lavra julga que lavra
Mas quem lavra é o que acontece...
Não me dás uma palavra
E a palavra não me esquece.
Tinhas um pente espanhol
No cabelo Português,
Mas quando te olhava o sol,
Eras só quem Deus te fez.
Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate,
Bate de te ver e ouvir.
Quem me dera, quando fores
Pela rua sem me ver,
Supor que há coisas melhores
E que eu as pudera ter.
Acendeste uma candeia
Com esse ar que Deus te deu.
Já não é noite na aldeia
E, se calhar, nem no céu.
Eu te pedi duas vezes
Duas vezes, bem o sei,
Que por fim me respondesses
Ao que não te perguntei.
Não digas mal de ninguém
Que é de ti que dizes mal.
Quando dizes mal de alguém
Tudo no mundo é igual.
Todas as coisas que dizes
Afinal não são verdade.
Mas, se nos fazem felizes,
Isso é a felicidade.
Dás nós na linha que cose
Para que pare no fim.
Por muito que eu pense e ouse,
Nunca dás nó para mim.
Não sei em que coisa pensas
Quando coses sossegada...
Talvez naquelas ofensas
Que fazes sem dizer nada.
As gaivotas, tantas, tantas,
Voam no rio pro mar...
Também sem querer encantas,
Nem é preciso voar.
As ondas que a maré conta
Ninguém as pode contar.
Se, ao passar, ninguém te aponta,
Aponta-te com o olhar.
Todos os dias que passam
Sem passares por aqui
São dias que me desgraçam
Por me privarem de ti.
Quando cantas, disfarçando
Com a cantiga o cantar,
Parece o vento mais brando
Nesta brandura do ar.
Não sei que grande tristeza
Me fez só gostar de ti
Quando já tinha a certeza
De te amar porque te vi.
A mantilha de espanhola
Que trazias por trazer
Não te dava um ar de tola
Porque o não podias ter.
Boca de riso escarlate
Com dentes brancos no meio,
Meu coração bate, bate,
Mas bate por ter receio.
Se há uma nuvem que passa
Passa uma sombra também.
Ninguém diz que é desgraça
Não ter o que se não tem.
Tu, ao canto da janela
Sorrias a alguém da rua,
Porquê ao canto, se aquela
Posição não é a tua?
Dá-me, um sorriso ao domingo,
Para à segunda eu lembrar.
Bem sabes: sempre te sigo
E não é preciso andar.
Tens olhos de quem não quer
Procurar quem eu não sei.
Se um dia o amor vier
Olharás como eu olhei.
Pobre do pobre que é ele
E não é quem se fingiu!
Por muito que a gente vele
Descobre que já dormiu.
Não me digas que me queres
Pois não sei acreditar.
No mundo há muitas mulheres
Mas mentem todas a par.
Água que não vem na bilha
É como se não viesse.
Como a mãe, assim a filha...
Antes Deus as não fizesse.
Ó loura dos olhos tristes
Que me não quis escutar...
Quero só saber se existes
Para ver se te hei de amar.
Há grandes sombras na horta
Quando a amiga lá vai ter...
Ser feliz é o que importa,
Não importa como o ser!
O moinho de café
Mói grãos e faz deles pó.
O pó que a minh'alma é
Moeu quem me deixa só.
Dizem que não és aquela
Que te julgavam aqui.
Mas se és alguém e és bela
Que mais quererão de ti?
Tenho um livrinho onde escrevo
Quando me esqueço de ti.
É um livro de capa negra
Onde inda nada escrevi.
Olhos tristes, grandes, pretos,
Que dizeis sem me falar
Que não há filhos nem netos
De eu não querer amar.
Meu coração a bater
Parece estar-me a lembrar
Que, se um dia te esquecer,
Será por ele parar.
Quantas vezes a memória
Para fingir que inda é gente,
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente
Trazes o vestido novo
Como quem sabe o que faz.
Como és bonita entre o povo,
Mesmo ficando para trás!
A tua boca de riso
Parece olhar para a gente
Com um olhar que é preciso
Para saber que se sente.
A laranja que escolheste
Não era a melhor que havia.
Também o amor que me deste
Qualquer outra mo daria.
Se o sino dobra a finados
Há de deixar de dobrar.
Dá-me os teus olhos fitados
E deixa a vida matar!
Por muito que pense e pense
No que nunca me disseste,
Teu silêncio não convence.
Faltaste quando vieste.
Tome lá, minha menina,
O ramalhete que fiz.
Cada flor é pequenina,
Mas tudo junto é feliz.
A vida é pouco aos bocados.
O amor é vida a sonhar.
Olho para ambos os lados
E ninguém me vem falar.
Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A idéia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.
Compras carapaus ao cento,
Sardinhas ao quarteirão.
Só tenho no pensamento
Que me disseste que não.
Duas horas te esperei.
Duas mais te esperaria.
Se gostas de mim não sei...
Algum dia há de ser dia ...
Tenho um desejo comigo
Que me traz longe de mim.
É saber se isto é contigo
Quando isto não é assim.
Leve vem a onda leve
Que se estende a adormecer,
Breve vem a onda breve
Que nos ensina a esquecer.
Quando a manhã aparece
Dizem que nasce alegria.
Isso era se Ela viesse.
Até de noite era dia.
Nuvem alta, nuvem alta,
Porque é que tão alta vais?
Se tens o amor que me falta,
Desce um pouco, desce mais!
Teu carinho, que é fingido,
Dá-me o prazer de saber
Que inda não tens esquecido
O que o fingir tem de ser.
A luva que retiraste
Deixou livre a tua mão.
Foi com ela que tocaste,
Sem tocar, meu coração.
O avental, que à gaveta
Foste buscar, não terá
Algibeira em que me meta
Para estar contigo já?
Quando vieste da festa,
Vinhas cansada e contente.
A minha pergunta é esta.
Foi da festa ou foi da gente?
Rouxinol que não cantaste,
Galo que não cantarás,
Qual de vós me empresta o canto
Para ver o que ela faz?
Quando chegaste à janela
Todos que estavam na rua
Disseram: olha, é aquela,
Tal é a graça que é tua!
Nuvem que passas no céu,
Dize a quem não perguntou
Se é bom dizer a quem deu:
"O que deste, não to dou."
"Vou trabalhando a peneira
E pensando assim assim.
Eu não nasci para freira.
Gosto que gostem de mim."
Roseiral que não dás rosas
Senão quando as rosas vêm,
Há muitas que são formosas
Sem que o amor lhes vá bem.
Ribeirinho, ribeirinho,
Que vais a correr ao léu
Tu vais a correr sozinho,
Ribeirinho, como eu.
"Vesti-me toda de novo
E calcei sapato baixo
Para passar entre o povo
E procurar quem não acho."
Tua boca me diz sim,
Teus olhos me dizem não.
Ai, se gostasses de mim
E sem saber a razão.
Quero lá saber por onde
Andaste todo este dia!
Nunca faz-bem quem se esconde
Mas onde foste, Maria?
O vaso do manjerico
Caiu da janela abaixo.
Vai buscá-lo, que aqui fico
A ver se sem ti te acho.
O cravo que tu me deste
Era de papel rosado.
Mas mais bonito era inda
O amor que Me foi negado,
Trazes os sapatos, pretos
Cinzentos de tanto pó.
Feliz é quem tiver netos
De quem tu sejas avó!
Vem de lá do monte verde
A trova que não entendo.
É um som bom que se perde
Enquanto se vai vivendo.
Moreninha, moreninha,
Com olhos pretos a rir.
Sei que nunca serás minha,
Mas quero ver-te sorrir.
Puseste a chaleira ao lume
Com um jeito de desdém.
Suma-te o diabo que sume
Primeiro quem te quer bem!
Lá vem o homem da capa
Que ninguém sabe quem é...
Se o lenço os olhos te tapa
Veio os teus olhos por fé.
Loura dos olhos dormentes,
Que são azuis e amarelos,
Se as minhas mãos fossem pentes,
Penteavam-te os cabelos.
O sino dobra a finados.
Faz tanta pena a dobrar!
Não é pelos teus pecados
Que estão vivos a saltar.
Traze-me um copo com água
E a maneira de o trazer.
Quero ter a minha mágoa
Sem mostrar que a estou a ter.
Olha o teu leque esquecido!
Olha o teu cabelo solto!
Maria, toma sentido!
Maria, senão não volto!
Já duas vezes te disse
Que nunca mais te diria
O que te torno a dizer
E fica para outro dia.
Lavadeira a bater roupa
Na pedra que está na água,
Achas minha mágoa pouca?
É muito tudo o que é mágoa.
O teu lenço foi mal posto
Pela pressa que to pôs.
Mais mal posto é o meu desgosto
Do que não há entre nós.
Olhos de veludo falso
E que fitam a entender,
Vós sois o meu cadafalso
A que subo com prazer.
Duas vezes eu tentei
Dizer-te que te queria,
E duas vezes te achei
Só a que falava e ria.
Meu coração é uma barca
Que não sabe navegar.
Guardo o linha na arca
Com um ar de o acarinhar.
Tenho um desejo comigo
Que hoje te venho dizer:
Queria ser teu amigo
Com amizade a valer.
És Maria da Piedade
Pois te chamaram assim.
Sê lá Maria à vontade,
Mas tem piedade de mim.
Tu És Maria da Graça,
Mas a que graça é que vem
Ser essa graça a desgraça
De quem a graça não tem?
Caiu no chão o novelo
E foi-se desenrolando.
Passas a mão no cabelo.
Não sei em que estás pensando.
A tua saia, que é curta,
Deixa-te a perna a mostrar:
Meu coração já se furta
A sentir sem eu pensar.
Meu amor é fragateiro.
Eu sou a sua fragata.
Alguns vão atrás do cheiro,
Outros vão só pela arreta.
Vai longe, na serra alta,
A nuvem que nela toca...
Dá-me aquilo que me falta —
Os beijos da tua boca.
HÁ um doido na nossa voz
Ao falarmos, que prendemos:
É o mal-estar entre nós
Que vem de nos percebermos.
Teu vestido porque é teu,
Não é de cetim nem chita.
É de sermos tu e eu
E de tu seres bonita.
Entornaram-me o cabaz
Quando eu vinha pela estrada.
Como ele estava vazio,
Não houve loiça quebrada.
O rosário da vontade,
Rezei-o trocado e a esmo.
Se vens dizer-me a verdade,
Vê lá bem se é isso mesmo.
Castanhetas, castanholas —
Tudo é barulho a estalar.
As que ao negar são mais tolas
São mais espertas ao dar.
O manjerico e a bandeira
Que há no cravo de papel —
Tudo isso enche a noite inteira,
Ó boca de sangue e mel.
Tem A filha da caseira
Rosas na caixa que tem.
Toda ela é uma rosa inteira
Mas não a cheira ninguém.
A moça que há na estalagem
Ri porque gosta de rir.
Não sei o que é da viagem
Por esta moça existir.
Lenço preto de orla branca
Ataste-o mal a valer
À roda desse pescoço
Que tem que se lhe dizer.
Aquela loura de preto
Com uma flor branca ao peito,
É o retrato completo
De como alguém é perfeito.
A tua janela é alta,
A tua casa branquinha.
Nada lhe sobra ou lhe falta
Senão morares sozinha.
Vem cá dizer-me que sim.
Ou vem dizer-me que não.
Porque sempre vens assim
P'ra ao pé do meu coração,.
Cortaste com a tesoura
O pano de lado a lado.
Porque é que todo teu gesto
Tem a feição de engraçado?
Ai, os pratos de arroz doce
Com as linhas de canela!
Ai a mão branca que os trouxe!
Ai essa mão ser a dela!
Frescura do que é regado,
Por onde a água inda verte...
Quero dizer-te um bocado
Do que não ouso dizer-te.
Ó pastora, ó pastorinha,
Que tens ovelhas e riso,
Teu riso ecoa no vale
E nada mais é preciso.
A abanar o fogareiro
Ela corou do calor.
Ah, quem a fará corar
De um outro modo melhor!
Manjerico que te deram,
Amor que te querem dar...
Recebeste o manjerico.
O amor fica a esperar.
Dona Rosa, Dona Rosa.
De que roseira é que vem,
Que não tem senão espinhos
Para quem só lhe quer bem?
O laço que tens no peito
Parece dado a fingir.
Se calhar já estava feito
Como o teu modo de rir.
Dona Rosa, Dona Rosa,
Quando eras inda botão
Disseram-te alguma cousa
De a flor não ter coração?
Tenho um segredo a dizer-te
Que não te posso dizer.
E com isto já to disse
Estavas farta de o saber ...
Os ranchos das raparigas
Vão a cantar pela estrada...
Não oiço as suas cantigas
Só tenho pena de nada.
Rezas porque outros rezaram,
E vestes à moda alheia...
Quando amares vê se amas
Sem teres o amor na idéia.
A senhora da Agonia
Tem um nicho na Igreja.
Mas a dor que me agonia
Não tem ninguém quem a veja.
Aparta o cabelo ao meio
A do cabelo apartado.
É a estrelinha em que leio
Que estou a ser enganado.
Esse frio cumprimento
Tem ironia p'ra mim.
Porque é o mesmo movimento
Com que a gente diz que sim...
Vejo lágrimas luzir
Nos teus olhos de fingida.
É como quando à janela
Chegas, um pouco escondida.
Trincaste, para o partir,
O retrós de costurar.
Quem não soubesse diria
Que o estavas a beijar.
Deixaste o dedal na mesa
Só pelo tempo da ausência —
Se eu to roubasse dirias
Que eu não tinha consciência.
Dá-me um sorriso daqueles
Que te não servem de nada
Como se dá às crianças
Uma caixa esvaziada.
O canário já não canta.
Não canta o canário já.
Aquilo que em ti me encanta
Talvez não me encantará.
Rezas a Deus ao deitar-te
Pedindo não sei o quê.
Se rezasses ao Demônio,
Eu saberia o que é.
Boca que tens um sorriso
Como se fosse um florir,
Teus olhos cheios de riso
Dão-lhe um orvalho de rir.
Uma boneca de trapos
Não se parte se, cair.
Fizeste-me a alma em farrapos
Bem: não se pode partir.
O que sinto e o que penso
De ti é bem e é mal.
É como quando uma xícara
Tem o pires desigual.
Levas a mão ao cabelo
Num gesto de quem não crê.
Mas eu não te disse nada.
Duvidas de mim? Porquê?
Compreender um ao outro
É um jogo complicado.
Pois quem engana não sabe
Se não estava enganado.
A roda dos dedos juntos
Enrolaste a fita a rir.
Corações não são assuntos
E falar não é sentir.
Chama-te boa, e o sentido
Não é bem o que eu supunha.
Boa não é apelido:
É, quando muito, alcunha.
Tu És Maria das Dores,
Tratam-te só por Maria.
Está bem, porque deste as dores
A quem quer que em ti se fia.
Se vais de vestido novo
O teu próprio andar o diz,
E ao passar por entre o povo
Até teu corpo é feliz.
Tens um anel imitado
Mas vais contento de o ter.
Que importa o falsificado
Se é verdadeiro o prazer.
Tenho ainda na lembrança
Como uma coisa que veio,
O quando inda eras criança.
Nunca mais me dás um beijo!
O ar do campo vem brando,
Faz sono haver esse ar.
Já não sei se estou sonhando
Nem de que serve sonhar.
Quando ela pôs o chapéu
Como se tudo acabasse,
Sofri de não haver véu
Que inda um pouco a demorasse.
Quem te deu aquele anel
Que ainda ontem não tinhas?
Como tu foste infiel
A certas idéias minhas!
Essa costura à janela
Que lhe inclinou a cabeça
Fez-me ver como era dela
Que o coração tinha pressa.
O ribeiro bate, bate
Nas pedras que nele estão,
Mas nem há nada em que bata
O meu pobre coração.
Nunca houve romaria
Que se lembrassem de mim...
Também quem se lembraria
De quem se lamenta assim?
Comes melão às dentadas
Porque assim não deve ser.
Não sei se essas gargalhadas
Me fazem rir ou sofrer.
Há dois dias que não vejo
Modo de tornar-te a ver:
Se outros também te não vissem,
Desejava sem sofrer.
O teu cabelo cortado
A maneira de rapaz
Não deixa justificado
Aquele amor que me faz.
Se te queres despedir
Não te despidas de mim,
Que eu não posso consentir
Que tu me trates assim.
Quem te fez assim tão linda
Não o fez para mostrar
Que se é mais linda ainda
Quando se sabe negar.
Floriu a roseira toda
Com as rosas de trepar...
Tua cabeça anda à roda
Mas sabes-te equilibrar.
Morena dos olhos baços
Velados de não sei quê,
No mundo há falta de braços
Para o que o teu olhar vê.
Quando compões o cabelo
Com tua mão distraída
Fazer-me um grande novelo
No pensamento da vida.
Teus olhos de quem não fita
Vagueiam, 'stão na distância.
Se fosses menos bonita,
Isso não tinha importância.
Tocam sinos a rebate
E levantaste-te logo.
Teu coração só não bate
Por a quem puseste fogo.
O coração é pequeno,
Coitado, e trabalha tanto!
De dia a ter que chorar,
De noite a fazer o pranto ...
Deram-me um cravo vermelho
Para eu ver como é a vida.
Mas esqueci-me do cravo
Pela hora da saída.
Fiz estoirar um cartucho
Contra a parede do lado.
Assim farei eu à vida,
Que o sonhar fez-me assoprado.
O malmequer que colheste
Deitaste-o fora a falar.
Nem quiseste ver a sorte
Que ele te podia dar.
Comi melão retalhado
E bebi vinho depois,
Quanto mais olho p'ra ti
Mais sei que não somos dois.
Trazes um lenço novinho
Na cabeça e a descair,
Se eu te beijar no cantinho
Só saberá quem nos vir.
E ao acabar estes versos
Feitos em modo menor
Cumpre prestar homenagem
À bebedeira do cantor.
Toda a noite, toda a noite,
Toda a noite sem pensar...
Toda a noite sem dormir
E sem tudo isso acabar.
Puseste um vaso à janela.
Foi sinal ou não foi nada,
Ou foi p'ra que pense em ti
Que te não importas nada?
Eu vi ao longe um navio
Que tinha uma vela só,
Ia sozinho no mar...
Mas não me fazia dó.
Corre a água pelas calhas
Lá segundo a sua lei.
Pareces, vista de lado,
Aquela que te julguei.
Lá por olhar para ti
Não julgues que é por gostar.
Eu gosto muito do sol,
E nem o posso fitar.
Viraste-me a cara quando
Ia a dizer-te, à chegada,
Que, se voltasses a cara,
Que eu não me importava nada.
Na quinta que nunca houve
Há um poço que não há
Onde há de ir encontrar água
Alguém que te entenderá.
Voam débeis e enganadas
As folhas que o vento toma.
Bem sei: deitamos os dados
Mas Deus é sue deita a soma.
Ribeirinho, ribeirinho,
Que falas tão devagar,
Ensina-me o teu caminho
De passar sem desejar amar.
Do alto da torre da igreja
Vê-se o campo todo em roda.
Só do alto da esperança
Vemos nós a vida toda.
Dá-me um sorriso a brincar,
Dá-me uma palavra a rir,
Eu me tenho por feliz
Só de te ver e te ouvir.
Trazes um lenço apertado
Na cabeça, e um nó atrás.
Mas o que me traz cansado
É o nó que nunca se faz.
Vi-te a dizer um adeus
A alguém que se despedia,
E quase implorei dos céus
Que eu partisse qualquer dia.
Eu voltei-me para trás
Para ver se te voltavas.
Há quem dê favas aos burros,
Mas eles comem as favas.
Deixaste cair no chão
O embrulho das queijadas.
Riste disso — E porque não?
A vida é feita de nadas.
Deste-me um cordel comprido
Para atar bem um papel.
Fiquei tão agradecido
Que inda tenho esse cordel.
No dia de Santo Antônio
Todos riem sem razão.
Em São João e São Pedro
Como é que todos rirão?
Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta.
O capilé é barato
E é fresco quando há calor.
Vou sonhar o teu retrato
Já que não tenho melhor.
Baila o trigo quando há vento
Baila porque o vento o toca
Também baila o pensamento
Quando o coração provoca.
Fizeste molhos de flores
Para não dar a ninguém.
São como os molhos de amores
Que foras fazer a alguém.
Se houver alguém que me diga
Que disseste bem de mim,
Farei uma outra cantiga,
Porque esta não é assim.
Manjerico, manjerico,
Manjerico que te dei,
A tristeza com que fico
Inda amanhã a terei.
Ris-te de mim? Não me importo.
Rir não faz mal a ninguém.
Teu rir é tão engraçado
Que, quando faz mal, faz bem.
Ouves-me sem me entender.
Sorris sem ser porque falo.
É assim muita mulher.
Mas nem por isso me calo.
Se eu te pudesse dizer
O que nunca te direi,
Tu terias que entender
Aquilo que nem eu sei.
Bailaste de noite ao som
De uma música estragada.
Bailar assim só é bom
Quando a alegria é de nada.
Não sei que flores te dar
Para os dias da semana.
Tens tanta sombra no olhar
Que o teu olhar sempre engana.
Descasquei o camarão,
Tirei-lhe a cabeça toda.
Quando o amor não tem razão
É que o amor incomoda.
Cabeça de ouro mortiço
Com olhos de azul do céu,
Quem te ensinou o feitiço
De me fazer não ser eu?
São já onze horas da noite.
Porque te não vais deitar?
Se de nada serve ver-te,
Mais vale não te fitar.
Tiraste o linho da arca,
Da arca tiraste o linho.
Meu coração tem a marca
Que lhe puseste mansinho.
Ao dobrar o guardanapo
Para o meteres na argola
Fizeste-me conhecer
Como um coração se enrola.
Quando eu era pequenino
Cantavam para eu dormir.
Foram-se o canto e o menino.
Sorri-me para eu sentir!
Meia volta, toda a volta,
Muitas voltas de dançar...
Quem tem sonhos por escolta
Não é capaz de parar.
Fui passear no jardim
Sem saber se tinha flores
Assim passeia na vida
Quem tem ou não tem amores.
No dia em que te casares
Hei de te ir ver à Igreja
Para haver o sacramento
De amar-te alguém que ali esteja.
Quando apertaste o teu cinto
Puseste o cravo na boca.
Não sei dizer o que sinto
Quando o que sinto me toca.
Toda a noite ouvi os cães
P'ra manhã ouvi os galos.
Tristeza — vem ter conosco.
Prazeres — é ir achá-los.
Deram-me, para se rirem,
Uma corneta de barro,
Para eu tocar à entrada
Do Castelo do Diabo.
Quando te apertei a mão
Ao modo de assim-assim,
Senti o meu coração
A perguntar-me por mim.
Tinhas um vestido preto
Nesse dia de alegria...
Que certo! Pode pôr luto
Aquele que em ti confia.
Só com um jeito do corpo
Feito sem dares por isso
Fazes mais mal que o demônio
Em dias de grande enguiço.
Esse xaile que arranjaste,
Com que pareces mais alta
Dá ao teu corpo esse brio
Que à minha coragem falta.
Tem um decote pequeno,
Um ar modesto e tranqüilo;
Mas vá-se lá descobrir
Coisa pior do que aquilo!
Teus olhos poisam no chão
Para não me olhar de frente.
Tens vontade de sorrir
Ou de rir? É tão dif'rente!
Quando passas pela rua
Sem reparar em quem passa,
A alegria é toda tua
E minha toda a desgraça.
A esmola que te vi dar
Não me deu crença nem fé,
Pois a que estou a esperar
Não é esmola que se dê.
Caiu no chão a laranja
E rolou pelo chão fora.
Vamos apanhá-la juntos,
E o melhor é ser agora.
Quando te vais a deitar
Não sei se rezas se não.
Devias sempre rezar
E sempre a pedir perdão.
É limpo o adro da igreja.
É grande o largo da praça.
Não há ninguém que te veja
Que te não encontre graça.
Quando agora me sorriste
Foi de contente de eu vir,
Ou porque me achaste triste,
Ou já estavas a sorrir?
Boca que o riso desata
Numa alegria engraçada,
És como a prata lavrada
Que é mais o lavor que a prata.
Por cima da saia azul
Há uma blusa encarnada,
E por cima disso os olhos
Que nunca me dizem nada.
Fazes renda de manhã
E fazes renda ao serão.
Se não fazes senão renda,
Que fazes do coração?
Todos te dizem que és linda.
Todos to dizem a sério.
Como o não sabes ainda
Agradecer é mistério.
Eu bem sei que me desdenhas
Mas gosto que seja assim,
Que o dendém que por mim tenhas
Sempre é pensares em mim.
A tua irmã é pequena,
Quando tiver tua idade,
Transferirei minha pena
Ou fico só com metade?
Quando me deste os bons dias
Deste-mos como a qualquer.
Mais vale não dizer nada
Do que assim nada dizer.
Tenho uma idéia comigo
De que não quero falar.
Se a idéia fosse um postigo
Era pra te ver passar.
Andorinha que vais alta,
Porque não me vens trazer
Qualquer coisa que me falta
E que te não sei dizer?
Tenho um lenço que esqueceu
A que se esquece de mim.
Não é dela, não é meu,
Não é princípio nem fim.
Duas horas vão passadas
Sem que te veia passar.
Que coisas mal combinadas
Que são amor e esperar!
Houve um momento entre nós
Em que a gente não falou.
Juntos, estávamos sós.
Que bom é assim estar só!
"Das flores que há pelo campo
O rosmaninho é rei. . . "
É uma velha cantiga...
Bem sei, meu Deus, bem o sei.
O moinho que mói trigo
Mexe-o o vento ou a água,
Mas o que tenho comigo
Mexe-o apenas a mágoa.
Aquela que tinha pobre
A única saia que tinha,
Por muitas roupas que dobre
Nunca será mais rainha.
Tens uns brincos, sem valia
E um lenço que não é nada,
Mas quem dera ter o dia
De quem és a madrugada.
Loura, teus olhos de céu
Têm um azul que é fatal..
Bem sei: Foi Deus que tos deu.
Mas então Deus fez o mal?
Vai alta sobre a montanha
Uma nuvem sem razão.
Meu coração acompanha
O não teres coração.
Dizem que as flores são todas
Palavras que a terra diz.
Não me falas: incomodas.
Falas: sou menos feliz.
Duas vezes jurei ser
O que julgo que sou,
Só para desconhecer
Que não sei para onde vou.
O pescador do mar alto
Vem contente de pescar.
Se prometo, sempre falto:
Receio não agradar.
Todos lá vão para a festa
Com um grande azul de céu.
Nada resta, nada resta...
Resta sim, que resta eu.
Andei sozinho na praia
Andei na praia a pensar
No jeito da tua saia
Quando lá estiveste a andar.
Onda que vens e que vais
Mar que vais e depois vens,
Já não sei se tu me atrais,
E, se me, atrais, se me tens.
Quando há música, parece
Que dormes, e assim te calas,
Mas se a música falece,
Acordo, e não me falas.
Trazes uma cruz no peito.
Não sei se é por devoção.
Antes tivesses o jeito
De ter lá um coração.
O guardanapo dobrado
Quer dizer que se não volta.
Tenho o coração atado:
Vê se a tua mão mo solta.
"À tua porta está lama.
Meu amor, quem na faria?"
É assim a velha cantiga
Que como tu principia.
Menina de saia preta
E de blusa de outra cor,
Que é feito daquela seta
Que atirei ao meu amor?
Lavas a roupa na selha
Com um vagar apressado,
E o brinco na tua orelha
Acompanha o teu cuidado.
Duas vezes te falei
De que te iria falar.
Quatro vezes te encontrei
Sem palavra p'ra te dar.
Velha cadeira deixada
No canto da casa antiga
Quem dera ver lá sentada
Qualquer alma minha amiga.
Trazes a bilha à cabeça
Como se ela não houvesse.
Andas sem pressa depressa
Como se eu lá não estivesse.
Trazes um manto comprido
Que não é xaile a valer.
Eu trago em ti o sentido
E não sei que hei de dizer.
Olhas para mim às vezes
Como quem sabe quem sou.
Depois passam dias, meses,
Sem que vás por onde vou.
Quando tiraste da cesta
Os figos que prometeste
Foi em mim dia de festa,
Mas foi a todos que os deste.
Aquela que mora ali
E que ali está à janela
Se um dia morar aqui
Se calhar não será ela.
Mas que grande disparate
É o que penso e o que sinto.
Meu coração bate, bate
E se sonho minto, minto.
Puseste por brincadeira
A touca da tua irmã.
Ó corpo de bailadeira,
Toda a noite tem manhã.
Dizes-me que nunca sonhas
E que dormes sempre a fio.
Quais são as coisas risonhas
Que sonhas por desfastio?
O teu carrinho de linha
Rolou pelo chão caído.
Apanhei-o e dei-to e tinha
Só em ti o meu sentido.
A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém te cura
E morrer é que é ter alta.
Que tenho o coração preto
Dizes tu, e inda te alegras.
Eu bem sei que o tenho preto:
Está preto de nódoas negras.
Na praia de Monte Gordo.
Meu amor, te conheci.
Por ter estado em Monte Gordo
É que assim emagreci.
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem.
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.
"Mau, Maria!" — tu disseste
Quando a trança te caía.
Qual "Mau, Maria", Maria!
"Má Maria"' "Má Maria!"
Era já de madrugada
E eu acordei sem razão,
Senti a vida pesada.
Pesado era o coração.
Boca de romã perfeita
Quando a abres p'ra comer.
Que feitiço é que me espreita
Quando ris só de me ver?
Tenho um segredo comigo
Que me faz sempre cismar,
É se quero estar contigo
Ou quero contigo estar.
Trazes já aquele cinto
Que compraste no outro dia.
Eui trago o que sempre sinto
E que é contigo, Maria.
Teu olhar não tem remorsos
Não é por não ter que os ter.
É porque hoje não é ontem
E viver é só esquecer.
Disseste-me quase rindo:
"Conheço-te muito bem!"
Dito por quem me não quer.
Tem muita graça, não tem?
Fica o coração pesado
Com o choro que chorei.
É um ficar engraçado
O ficar com o que dei. . .
Este é o riso daquela
Em que não se reparou.
Quando a gente se acautela
Vê que não se acautelou.
Tens vontade de comprar
O que vês só porque o viste.
Só a tenho de chorar
Porque só compro o ser triste.
Baila em teu pulso delgado
Uma pulseira que herdaste...
Se amar alguém é pecado.
És santa, nunca pecaste.
Teus olhos querem dizer
Aquilo que se não diz...
Tenho muito que fazer.
Que sejas muito feliz.
Água que passa e canta
É água que faz dormir...
Sonhar é coisa que encanta,
Pensar é já não sentir.
Deste-me um adeus antigo
À maneira de eu não ser
Mais que o amigo do amigo
Que havia de poder ter.
Linda noite a desta lua.
Lindo luar o que está
A fazer sombra na rua.
Por onde ela não virá.
O papagaio do paço
Não falava — assobiava.
Sabia bem que a verdade
Não é coisa de palavra.
Puseste a mantilha negra
Que hás de tirar ao voltar.
A que me puseste na alma
Não tiras. Mas deixa-a estar!
Trazes os brincos compridos,
Aqueles brincos que são
Como as saudades que temos
A pender do coração.
Deixaste cair a liga
Porque não estava apertada...
Por muito que a gente diga
A gente nunca diz nada.
Não há verdade na vida
Que se não diga a mentir.
Há quem apresse a subida
Para descer a sorrir.
No dia de S. João
Há fogueiras e folias.
Gozam uns e outros não,
Tal qual como os outros dias.
Santo Antônio de Lisboa
Era um grande pregador,
Mas é por ser Santo Antônio
Que as moças lhe têm amor.
MACHADO DE ASSIS
Leia o último capítulo de Dom Casmurro
CAPÍTULO CXLVIII / E BEM, E O RESTO?
Agora, por que é que nenhuma dessas caprichos me fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: "Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti". Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma cousa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à "História dos Subúrbios".
Machado de Assis, Dom Casmurro.
Costuma-se reconhecer que o discurso do narrador de Dom Casmurro apresenta características que remetem às duas formações escolares pelas quais ele passou: a de seminarista e a de bacharel em Direito. No texto, o modo pelo qual o narrador conduz a argumentação revela o bacharel em Direito
Este capítulo sintetiza toda a estratégia de Dom Casmurro na composição da narrativa: por meio das digressões, ele conduz o leitor a assumir como sua (do leitor) uma visão parcial dos acontecimentos, dada por ele (o narrador Dom Casmurro). Isto fica patente na afirmação: "(...) e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca". Ora, o que o leitor lembra da Capitu menina senão aquilo que ele contou? Se retornarmos à narrativa, perceberemos que desde o início do livro ela é apresentada como uma menina madura, esperta, interesseira, com um facilidade tremenda para mentir e enganar, enquanto ele se apresenta como um menino ingênuo, inseguro, facilmente influenciável. Como um bom advogado, Bento argumenta de modo a incriminar Capitu e se apresentar como vítima.
O POETA E SUA HISTÓRIA
Descendente de tradicionais famílias de Pernambuco e da Paraíba, João Cabral de Melo Neto foi o segundo dos seis filhos de Luiz Antonio Cabral de Melo e de Carmem Carneiro Leão Cabral de Melo.
Nasceu no Recife, capital do Estado de Pernambuco, no dia 9 de janeiro de 1920, mas como seu pai era senhor de engenho, passou parte da infância e adolescência em engenhos de açúcar. Primeiro no Poço do a e pecado com que os padres costumavam ameaçá-lo.
No Recife, a visão dos retirantes fugitivos da seca, dos miseráveis
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
SUA HISTÓRIA
Descendente de tradicionais famílias de Pernambuco e da Paraíba, João Cabral de Melo Neto foi o segundo dos seis filhos de Luiz Antonio Cabral de Melo e de Carmem Carneiro Leão Cabral de Melo.
Nasceu no Recife, capital do Estado de Pernambuco, no dia 9 de janeiro de 1920, mas como seu pai era senhor de engenho, passou parte da infância e adolescência em engenhos de açúcar. Primeiro no Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, e depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no município de Moreno. A vida no campo marcou profundamente o poeta.
Apesar da vivência nos grandes centros, Cabral nunca se adaptou à cidade grande e à agitação do mundo urbano, sentindo-se para sempre um homem do interior. Na infância feliz, seu tempo era dividido entre as brincadeiras na casa grande com Virgínio, seu irmão mais velho a quem era muito unido, e os passeios a cavalo pelo canavial. João Cabral era uma criança sensível e, desde pequeno, demostrava preocupação com o ser humano, numa atitude muito singular para sua pouca idade.
Por volta dos oito anos de idade, ele morava com a família em Recife e ía para o engenho no tempo das férias. Seu irmão Virgínio lembrou que, aos domingos, o administrador do engenho ia à feira fazer as compras de mantimentos para a casa. Nestas ocasiões João Cabral dava-lhe dinheiro e encomendava a compra de folhetos de cordel. À tarde ele ia para a moita do engenho e, com os empregados todos ao redor de si, lia três, quatro folhetins para o pessoal do engenho.
O contato com os trabalhadores da usina seria uma experiência fundamental para o poeta pois, mais tarde, na vida adulta, viajando pelo mundo como diplomata, Cabral teria o necessário distanciamento para ver melhor, com preocupação e pungência, a verdadeira realidade do nordeste e retratá-la em sua obra.
De forma bem humorada o escritor Décio Pignatari definiu assim o poeta João Cabral:
"Ele tem um lado popular que se chama João Cabral e tem um lado aristocrático que se chama Melo Neto. Então, ele é, um pouco, todo este universo conflituado e passou quarenta anos tentando resolver este conflito."
Trecho do poema
O VENTO NO CANAVIAL
Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
É anônimo o canavial,
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel em branco de escrita.
...
Em 1930, ano da revolução, terminava a Primeira República. Começava a Era Vargas e, por complicações políticas com o presidente Getúlio Vargas, seu pai, Luís Antônio Cabral de Melo, foi obrigado a abandonar o engenho. No Recife, um novo mundo menos acolhedor e tranqüilo se apresentava ao poeta e, apesar das brincadeiras nos trilhos de trem e dos alegres acompanhamentos no corso em época de carnaval, a vida já não era tão feliz.
No Recife, a visão dos retirantes fugitivos da seca, dos miseráveis habitantes dos manguezais, o contraste entre os casarões e os mocambos construídos dentro da lama, também afetariam o poeta. Uma realidade que mais tarde se transformaria num outro elemento importante de sua poesia participante.
João Cabral de Melo Neto
Matriculado no colégio Marista onde cursou até o secundário, Cabral sofria profundamente com a severidade do estabelecimento. Criança tímida embora avessa a tudo aquilo, não conseguia se rebelar, desenvolvendo uma personalidade introspectiva, séria e profundamente angustiada. Apesar de toda racionalidade com que sempre enxergou a vida manteve, para sempre, um terrível medo do inferno com suas labaredas, caldeirões e todo aquele mundo tenebroso de culpa e pecado com que os padres costumavam ameaçá-lo.
João Cabral de Melo Neto lança seu primeiro livro de poesia em 1942, depois de
consolidado o modernismo brasileiro e de redefinida a nossa cultura. Esse papel
coube às gerações de 1922 e de 1930, como observa Antonio Candido (2000).
No caso de João Cabral, percebemos que é consensual a idéia de que o poeta
pernambucano apresenta uma proposta artística que, desde a primeira fase,
problematiza um tipo de lirismo cristalizado na tradição da poesia brasileira, ao
condenar o sentimentalismo e o emocionalismo e ao postular um novo tipo de
objetividade para a poesia. Não há dúvidas de que essa nova objetividade é marcada
pela ênfase na pesquisa estética, sem a preocupação com o engajamento
político-social do texto, como reza a geração de 30, ou seja, visando à literatura de
testemunho da realidade. Como acentua Antônia Torreão Herrera (1995),
sua questão é como não dizer esse Nordeste, já todo ele mediatizado pela
interferência do ficcional de excessivo peso conteudístico, semantizado
sentimentalmente numa ilusão mimética que imagina o signo transparente e capaz
de fazer por ele falar o real como um dado a priori. Resta ao poeta instaurar uma
nova linguagem como novo modo de ver – uma “forma fecunda em idéias”, que
possa dar a ver nela a realidade -, e que não se propõe a dizer. (HERRERA, 1995,
Nessa perspectiva, de acordo com os textos críticos de João Cabral, o poeta
moderno tem necessidade de repensar a função da poesia de seu tempo e introduzir
em sua obra pelo menos uma das seguintes atitudes mentais: “captar mais
completamente os matizes sutis, cambiantes, inefáveis, de sua expressão pessoal” e
“apreender melhor as ressonâncias das múltiplas e complexas aparências da vida
moderna”.(MELO NETO, 1998,p.97)9
Em face do nosso desejo de discutir o sentido da objetividade pensada pelo poeta
pernambucano e de observar quem são os seus precursores, buscamos todas as
afirmações que João Cabral faz acerca da idéia de hermetismo, linguagem, lirismo,
literatura, poesia,forma, e termos afins. Na maioria das vezes, percebemos que é
enfatizada a idéia de um escrever claro:
(...)Eu, quando escrevo, o meu esforço não é escrever harmonioso, não é escrever
bonito, é escrever claro. Não me dar a entender como a linguagem matemática,
mas dar a ver aquela coisa da maneira mais clara. No poema não só há uma
obrigação moral do poeta ser claro, como também eu tenho a impressão de que o
esforço mais fecundo que ele pode fazer é procurar ser claro. (MELO NETO,
1989)
Essa é a tese do poeta, ao tratar da função moderna da poesia, em 1954.
Sob esse aspecto, escrever claro, dar a ver a realidade não significa simplesmente
organizar o texto dentro de uma lógica matemática, geométrica, ou como rezam
algumas propostas de objetividade que antecedem a produção poética de João Cabral,
sobretudo no Brasil , mas usar palavras concretas.
Por isso, ao se referir aos três tipos de poesia propostos por Erza Pound, o poeta
afirma que as poesias portuguesa e brasileira são “preponderantemente melopéia e
logopéia” (MELO NETO, 1958), ou seja, poesia de sugestão auditiva e poesia que
transmite uma idéia, respectivamente. A poesia cabralina é vista por ele mesmo como
uma poesia de “fanopéia”, isto é, aquela que apresenta uma realidade visual ou
visualizável. Este tipo de poesia, a fanopéica, ao sugerir uma maçã, por exemplo, cria
um símbolo, um objeto concreto, que pode ser lido tanto pelo escritor, como pelo
leitor, por dar a ver o que o escritor quer dizer. Desse modo, a comunicação entre os
dois se estabelece prontamente,porque quando se lê maçã, não se lê o conceito de
maçã. Ao passo que melancolia, cada um lê de um jeito. Para João Cabral a palavra
concreta, porque muito mais sensorial, é sempre mais poética do que a palavra
abstrata, pois a palavra concreta é a palavra entendida pelos sentidos e a palavra
abstrata é a palavra que se atinge pela inteligência. (MELO
NETO, 1989)
Em virtude dessas afirmações, perfilamos a racionalidade cabralina à vertente que
pretende a organização de um tipo de linguagem literária que corporifica a palavra, a
fim de que esta seja percebida pelo leitor e se encarne como algo que produza uma
nova e diferente ordem significativa, isto é, numa perspectiva fenomenológica. Nesse
sentido,devemos observar que o ato de corporificar o pensamento como imagem vai
além da simples preocupação com o fazer artístico, pois visa a alcançar as sensações
dadas pela natureza do objeto.O próprio poeta tenta explicar esse processo, ao falar
da influência de Murilo Mendes em sua poética:
Pois bem: creio que nenhum poeta brasileiro me ensinou como ele a importância
do visual sobre o conceitual, do plástico sobre o musical (a poesia dele, que tanto
parecia gostar de música, é muito mais de pintor ou cineasta do que de músico).
Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais
poética do que a palavra abstrata, e que assim a função do poeta é dar a ver (a
cheirar, a tocar, a provar, de certa forma a ouvir: enfim, a sentir) o que ele quer
dizer, isto é, dar a pensar. (MELO NETO, 1976)
Além de Murilo Mendes, percebemos que essa tendência em estruturar um tipo de
linguagem que alcance a forma do objeto pela sua concretude também advém de
outras leituras do poeta. Graciliano Ramos, por exemplo, é o nome citado por João
Cabral, no momento em que a temática do texto problematiza a propensão formal e
social da linguagem literária, ou seja, quando tenta articular o “fazer e o dizer” no seu
canto “A palo seco”:
Chamamos a atenção para o perigo de confundirmos potencialidade significativa da
linguagem de João Cabral com ambigüidade discursiva, recurso marcado pelo poder
de sugestão, que permite o mistério, a indefinição do texto. A priori, tal efeito ofuscaria
a clareza da expressão, embora o próprio poeta tenha admitido essa ambigüidade em
alguns de seus depoimentos:
“Agora eu sinto que apesar de todo meu esforço de não ser hermético, eu sou um
poeta hermético, disso não tenho dúvida.” (In: 34 Letras. Rio de Janeiro, nº
03, março, 1989, p.44)
A Palo Seco
Trechos do poema
( Quaderna – 1960 )
João Cabral de Melo Neto¹
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
…
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
¹João Cabral de Melo Neto
* Recife, Pe. – 9 de Janeiro de 1920 d.C.
+ Rio de Janeiro, Rj. – 9 de Outubro de 1999 d.C.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
(MELO NETO, 1986, p.164)
A descoberta de um estilo "árido" em José Américo de Almeida
depurou-se ao máximo, no âmbito nordestino, com Graciliano
Ramos. No poema "A palo seco", de Quaderna (1956-1959),
Cabral (1997a, p.234-5) associou a economia de recursos do
cante flamenco com um nome que por si só já traduziria uma
busca constante por concisão e objetividade:
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
Na coletânea seguinte, Serial (1959-1961), o signo "Graciliano
Ramos" retorna; a identificação é tamanha, que o poeta toma
emprestada a voz do romancista:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.
♣
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:
que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.
♣
Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:
e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.
♣
Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:
que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.
(Melo Neto, 1997a, p.302-3)
Como em vários momentos, Cabral "fala" da obra ou atuação
do outro para "falar" de si mesmo. As quatro partes do poema
refletem os intensos contatos entre as propostas do Romance
de 30 e a poesia cabralina voltada para o Nordeste. A partir de
uma forma escassa e contundente, ambos procuram denunciar
uma terra e um homem duramente castigados pela seca.
Cabral, à maneira de seus poemas divididos em duas ou mais
partes, a contrastarem diversos aspectos de um mesmo objeto
ou tema, sintoniza-se tanto com esse estilo "árido" de
Graciliano, quanto com a procedência da Zona da Mata de Zé
Lins. Porém, apenas um trabalho mais detido pode confirmar
essa impressão "geográfica" e "estilística", ao detectar
possíveis procedimentos da prosa de Graciliano ou Zé Lins na
poesia de Cabral, assim como imagens de outros romancistas
nordestinos.
Ciente da impossibilidade de dizer o real, de Graciliano Ramos o poeta aprende a
direcionar o seu canto para a linguagem do objeto, por isso recorre a recursos de
construção da imagem que possam dar a ver uma realidade contida na imagem mesma.
Tentando esclarecer essas questões de maneira mais objetiva, alguns anos mais
tarde, em fevereiro de 1970, em entrevista a Ruiz Nestosa, João Cabral volta a falar
sobre a função da poesia na era moderna, lembrando que à poesia não se pode atribuir a função de outros gêneros literários. O poeta brasileiro alega que a poesia e a arte devem ter algum comprometimento, mas que isso não pode ofuscar a personalidade do artista.João Cabral,nesse contexto, refere-se, sobretudo, ao realismo socialista praticado pelos espanhóis .
Nos anos 40, começo dos 50, segundo Joan Brossa (1919-1998). O poeta pernambucano discorda do realismo espanhol, considerando que aquele tipo de literatura inibe a força individual. Para João Cabral, a força individual, aquilo que é do artista, não pode ser oprimido por nenhuma ideologia. Sua idéia é que a poesia deve indicar um caminho de crítica social, mas sem jamais se submeter a qualquer teoria.
Portanto, nos dois momentos em que fala da função da poesia, temos a impressão de que João Cabral tenta desarticular o fazer poético do poeta moderno da questão
políticosocial,como se a poesia estivesse acima de qualquer intenção ideológica ou partidária.
Dizer a verdade em poesia não significa, para o autor, converter a literatura em
testemunho da realidade, mas em oferecer uma das possibilidades de apreensão dessa mesma realidade.
Luiz Costa Lima (1967), em entrevista, foi um dos primeiros críticos a chamar a
atenção para o tipo de realismo cabralino, alegando que,na consciente traição à poética mallarmeana, a obra de João Cabral nos tem proposto a possibilidade de repensarmos não só nossas idéias sobre o discurso poético, e sua maneira de realização, como, e de maneira drástica, de pormos em cheque o conceito de realismo. Na verdade, se confundirmos, como é freqüente,realismo e expressão testemunhal ou seremos obrigados, neste caso, a desprezar o conceito por sua estreita utilidade, ou não entenderemos o alcance da lição cabralina, forçando-a por senda descabida. Pois em Cabral madura e se condensa a tensão que notávamos desde Manuel Bandeira: a de fazer da palavra mais que indício do real, a de construir pelo próprio tipo das relações de palavra a palavra,de frase a frase, de verso a verso, um realismo de linguagem.[...] Com João Cabral chega a seu tempo a fase criadora do modernismo.[...](LIMA,1967)
Em entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, 1998,
Literatura não é só o ato de captar na obra literária uma determinada coisa: há a
contraparte, que é a capacidade de comunicar a coisa captada.(...)... o critério para
saber se a coisa foi bem expressa é justamente a possibilidade de que ela tenha
sido comunicada a outras pessoas além do artista.(MELO NETO, 1953)
De acordo com essa definição, João Cabral não “sacrifica ao bem da expressão a
intenção de comunicar” (MELO NETO, 1998, p.99), como alguns individualistas
exacerbados de seu tempo, mas preocupa-se também com o poder de comunicação de
sua linguagem e com os modos de recepção de seus textos. Assim, a objetividade do
projeto cabralino está pautada em uma reflexão crítica acerca do fazer poético, ao mesmo tempo em que tenta resgatar a comunicação com o leitor, visto por ele como “contraparte essencial à atividade de criar literatura.” (MELO NETO, 1998, ).
A Imagem Poética da Realidade do Capibaribe:
Análise :
-Poema ‘O Cão sem Plumas’, de João Cabral de Melo Neto
Objetivo :analisar o poema “O cão sem plumas”, de João
Cabral de Melo Neto.
Perceber de que forma a linguagem consegue mimetizar a
realidade da região de Recife através da construção de
imagens que, ao mesmo tempo em que representam o real,
causam estranhamento pelo uso de aproximações
inesperadas. Como referencial teórico, sobretudo,
algumas reflexões sobre poesia e imagem, de Otávio Paz, além
de estudos críticos sobre a poesia cabralina.
INTRODUÇÃO
O poeta João Cabral de Melo Neto, situado na Geração de
45, é conhecido pela racionalidade intencional,
impessoalidade, consciência poética e habilidade com as
palavras. Ao propor uma nova concepção de poesia produção,
rompe com o tradicionalismo literário ao propor uma nova
concepção de lirismo e de poesia. Estamos diante de um novo
fazer poético, no qual o lirismo sentimental e confessional dos
românticos e a idéia platônica de “poeta possuído” passam a
ser questionados pelas idéias difundidas pelos poetas
franceses Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.
A forma como conteúdo do poema e um “eu lírico” universal
são fatores desencadeadores de crítica e divergência, pois,
acostumados com a revolução formal da geração de 1922 ou
com o conteúdo engajado da geração de 1930, alguns críticos
da época consideraram a geração de 45 um retrocesso às
conquistas das gerações anteriores.
João Cabral de Melo Neto foi considerado, durante muito
tempo,como um poeta antilírico, frio, seco e “neoparnasiano”.
Entretanto, a poesia cabralina está longe de ser merecedora de
tais críticas e sua forma hermética é conseqüência de um
trabalho laborioso com a palavra.
O poema cabralino analisado neste é “O cão sem
plumas”,1949, composto por 426 versos, divididos em quatro
partes – nas duas primeiras trata da paisagem e, nas duas
últimas, do discurso – e a intenção é levantar algumas
possibilidades de significação das imagens construídas a
partir de aproximações surpreendentes, que causam
estranhamento.
De que maneira a linguagem do poema consegue
representar a realidade da região do Recife?
Existe relação entre as comparações imprevistas, a iniciar
pelo título, “O cão sem plumas”, e a realidade
representada?
Podemos pensar em uma mimese da linguagem?
A PALAVRA POÉTICA COMO MIMESE DA REALIDADE
A arte poética tem como princípio essencial, de acordo com
Aristóteles,a questão da mimese. O verbo “imitar” em grego
significa criar, implantando um modo de ser novo, uma nova
realidade, e não copiar.
Mimese, portanto, é tomada como sinônimo de criação. Não
basta copiar, é necessário representar:
A mimese poética é uma representação que resulta de um
processo específico de construção a partir de determinados
efeitos. A construção mimética é presidida por um critério: a
verossimilhança.
Tudo é verossímil ou possível na mimese, até o inverossímil,
desde que motivado [...] (COSTA, 2003).
Segundo Costa, é por meio da mimese que o poeta
“desrealiza” o real para realizá-lo na sua plenitude, para
captá-lo no seu dinamismo de estruturação. Para Eduardo
Portella, a realidade para nós não é uma construção acabada, é
um dinamismo, um possível vir a ser. É por meio
da mimese da linguagem que a região do Recife é
representada:
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho
Capibaribe é o nome do rio deste poema, é um rio pobre,
guiado por sua realidade e observação ao que se passa em
suas margens. Para Benedito Nunes, o rio ocupa condição de
protagonista e narra as etapas de seu percurso geográfico,
como se fosse desenhando, em detalhes, a região, o povo e a
cidade. Essa descrição do real relata ao leitor as condições
sociais do homem:
Em silêncio
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido da terra negra.
Platão considera mimese como sendo uma imitação, uma
cópia do objeto, enquanto Aristóteles
atribui à mimese caráter de representação da realidade.
O poeta descreve que a pobreza do rio está em suas águas
cheias de lama, pois são as águas em abundância que
constituem a riqueza de um rio. O verso “o rio que carrega a
fecundidade pobre” demonstra a falta de perspectiva de vida,
sua “fecundidade”, ou seja, a esperança
de uma “nova vida” é levada pela lama negra, o rio “grávido de
terra negra” reforça o determinismo das condições precárias
de vida daqueles que lá moram. As palavras fecundidade e
grávido remetem à idéia de “vida nova”, mas no contexto do
poema analisado elas ressaltam a continuidade do sofrimento
e o futuro obscuro: cheio de lama ou “grávido de terra negra”.
Por isso, falamos em mimese da linguagem, pois as figuras de
linguagem utilizadas criam, mesmo que de forma poética, a
realidade da região:
A poesia descritiva, além de manifestar a semelhança existente
entre o significante e o significado, o que é comum a toda
poesia, busca uma representação verossímil de um referente
concreto, de um objeto do mundo físico. Michael Riffaterre
comenta que a poesia descritiva, como todas as formas da
mimese, cria uma ilusão de realidade. Uma das maneiras de se
conseguir esta ilusão é fazer com que a linguagem poética
pareça incontrolavelmente adequada
ao objeto que ela representa (PEIXOTO, 1983, p. 87).
O poeta demonstra indignação ao questionar como o rio negro
pode parecer pintado de azul no mapa:
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
O rio grávido de terra negra é colorido de azul no mapa. As
interrogações questionam a validade do compromisso de
fidelidade com o real; ora, o mapa que é considerado como
representação,oficial, do real na verdade, não é fiel à realidade,
enquanto a poesia,descompromissada com o mundo real,
consegue (re)apresentar o mundo em sua essência. Quem vê o
rio negro pintado de azul não consegue imaginar a realidade
daquela região.
O RIO, O CÃO E O HOMEM: IMAGENS SEM
PLUMAS
No poema “O cão sem plumas”, deparamo-nos com a
utilização de figuras, as quais são artifícios de que a linguagem
dispõe para romper como o caráter monossignificativo da
linguagem comum e que proporciona a pluralidade de
sentidos, através de construções que constituem um certo
desvio da norma estabelecida e cristalizada,causando
estranhamento.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Observamos no poema que as comparações feitas pelo
poeta –
“Aquele rio era como um cão sem plumas”
– representam um grande salto da diversidade entre os
elementos que causam estranhamento,pois colocam como
equivalentes o rio e o cão, não um cão qualquer,
mas um cão sem plumas. De que forma as comparações de
semelhanças entre elementos diferentes podem ser
pertinentes?
A metáfora moderna não nasce da necessidade de
reconduzir conceitos desconhecidos. Realiza o grande salto da
diversidade de seus elementos a uma unidade alcançável só
no experimento da linguagem e, em verdade, de tal forma que
busque a maior diversidade possível, a reconheça como tal e,
ao mesmo tempo,a anule poeticamente (...) A lírica moderna,
graças à capacidade metafórica fundamental de unir algo
próximo com algo distante,desenvolveu as combinações mais
desconcertantes, ao transformar um elemento que já longínquo
num absolutamente remoto, sem se importar com a exigência
de uma reabilizabilidade concreta
ou mesmo lógica .
O óbvio e o previsível não causam estranhamento, Friedrich
explica que o uso de metáforas se transforma no meio
estilístico mais adequado à fantasia da lírica moderna e causa
impacto ao leitor porque se baseia na semelhança entre
elementos diferentes. A metáfora é um dos recursos
predominantes no poema analisado e por meio dessa
figura a palavra poética consegue performatizar a realidade de
um modo que a linguagem convencional não permite.
Para Aristóteles (2005, p.19), “a essência do enigma
consiste em falar de coisas reais; isso não é possível com a
combinação de palavras próprias, mas é admissível com a
metáfora”. Ora, o poeta compara o rio a um cão e ainda sem
plumas, ou seja, o rio é pobre pelas lamas negras, por isso é
comparado a um cão. A expressão “sem plumas”
utilizada no título, retomada várias vezes no poema, intensifica
o quanto a região pela qual o rio Capibaribe passa é pobre e
reforça a afirmação de Friedrich, do quanto as forças
metafóricas são fundamentais na poesia, porque elas removem
os limites de suas figuras e permitem a união de seus
extremos.
O poema apresenta um percurso geográfico e na primeira
estrofe observamos os termos que serão utilizados em
permutações subseqüentes:
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
por uma espada
Nestes versos percebemos que a cidade cortada pelo rio é
semelhante ao movimento inconseqüente de um cão como ao
ato de cortar uma fruta:
O rio é colhido como um complexo simultaneamente de
geografia e de humanidade. Assim se entende a edificação
imagética ser realizada a partir dos vocábulos ‘cachorro’ e
‘espada’. Elas nada têm de raras, de misteriosas”
E os elementos comparados, rio e cidade; rua e cão; fruta e
espada reaparecerão ao longo do poema em novas
combinações:
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir,
Tem, o rio, um parto fluente e
invertebrado
como o de uma cadela
Conforme Costa Lima salientou, percebemos, no trecho
acima, as novas combinações das palavras, as quais
comparam o rio com o ventre de uma cadela e atribui ao poema
a real pobreza do Capibaribe.
Um outro recurso presente no poema são as analogias e os
símiles.
Para Dante Tringali (1988, p. 132), símile “é notar semelhança e
diferença entre duas coisas” e analogia “é ponto de
semelhança entre coisas diferentes”, estes recursos
estilísticos podem ser exemplificados:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais que um cão assassinado
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
Agora, a relação entre rio e cão é uma analogia entre rio e
homem.
A negatividade da expressão “sem plumas” se transmite
por meio de diversos degraus semelhantes e intensos. João
Cabral de Melo Neto cria analogias inéditas baseadas na
aparência física e na percepção de uma semelhança de função,
de caráter ou de natureza essencial. Os conceitos de
fertilidade, maturidade e estagnação são construídos
pela analogia rio–fruta:
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre
como que iam pousar moscas?
A expressão fruta denota a terra contida nas águas do rio. O
cão sem plumas representa a realidade obscura, sombria e
sem brilho da junção entre o rio e a cidade. A união entre a
paisagem humana e a física é construída por meio das
metáforas com base metonímica.
metonímia “são palavras utilizadas no lugar de outra, não por
semelhança, mas porque há entre ambas as coisas uma
relação de contigüidade”, ou seja, a relação
entre “cão sem plumas”, “rio”, “cidade” e “homem” não é
estabelecida a partir de uma relação de igualdade, mas sim por
critérios de proximidade, o que media a comparação é uma
condição comum.
A semelhança entre os elementos que se mantêm em
contigüidade espacial, próximos uns dos outros,
contribui para prender o homem e o meio ambiente, cuja
relação prejudica ambos:
Ele tinha algo, então
da estagnação de um louco,
algo de estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
de vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Nestes versos percebemos que o rio materializa aspectos
da paisagem e do sistema social em decadência. O homem que
vive neste sistema social é representado no poema de maneira
perturbadora:
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama, numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama
Na paisagem do rio,
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Como o rio
aqueles homens
são cães sem plumas
Não há distinção entre homem/rio/lama, os aspectos
humanos,geográficos e sociais fundem-se através destas
construções metafóricas,nas quais o rio e o homem são “cães
sem plumas”. As metáforas e os símiles baseados na
semelhança entre as condições reais do homem e
do meio retratam, de forma objetiva, o mal causado pelas
condições sociais em detrimento das condições físicas da
região, o que resulta num“homem sem plumas”. Peixoto (1983)
comenta que essas construções metafóricas representam um
realismo transcendental, responsável pelo caráter de
verossimilhança do poema, desta forma, percebemos
que são as figuras de linguagem que conseguem mimetizar as
reais condições da vida natural e social daquela região.
A IMAGEM DE CONTRÁRIOS
Como em vários momentos, Cabral "fala" da obra ou atuação
do outro para "falar" de si mesmo. As quatro partes do poema
refletem os intensos contatos entre as propostas do Romance
de 30 e a poesia cabralina voltada para o Nordeste. A partir de
uma forma escassa e contundente, ambos procuram denunciar
uma terra e um homem duramente castigados pela seca.
Cabral, à maneira de seus poemas divididos em duas ou mais
partes, a contrastarem diversos aspectos de um mesmo objeto
ou tema, sintoniza-se tanto com esse estilo "árido" de
Graciliano, quanto com a procedência da Zona da Mata de Zé
Lins. Porém, apenas um trabalho mais detido pode confirmar
essa impressão "geográfica" e "estilística", ao detectar
possíveis procedimentos da prosa de Graciliano ou Zé Lins na
poesia de Cabral, assim como imagens de outros romancistas
nordestinos.
Ciente da impossibilidade de dizer o real, de Graciliano Ramos o poeta aprende a
direcionar o seu canto para a linguagem do objeto, por isso recorre a recursos de
construção da imagem que possam dar a ver uma realidade contida na imagem mesma.
Tentando esclarecer essas questões de maneira mais objetiva, alguns anos mais
tarde, em fevereiro de 1970, em entrevista a Ruiz Nestosa, João Cabral volta a falar
sobre a função da poesia na era moderna, lembrando que à poesia não se pode atribuir a função de outros gêneros literários. O poeta brasileiro alega que a poesia e a arte devem ter algum comprometimento, mas que isso não pode ofuscar a personalidade do artista.João Cabral,nesse contexto, refere-se, sobretudo, ao realismo socialista praticado pelos espanhóis .
Nos anos 40, começo dos 50, segundo Joan Brossa (1919-1998). O poeta pernambucano discorda do realismo espanhol, considerando que aquele tipo de literatura inibe a força individual. Para João Cabral, a força individual, aquilo que é do artista, não pode ser oprimido por nenhuma ideologia. Sua idéia é que a poesia deve indicar um caminho de crítica social, mas sem jamais se submeter a qualquer teoria.
Portanto, nos dois momentos em que fala da função da poesia, temos a impressão de que João Cabral tenta desarticular o fazer poético do poeta moderno da questão
políticosocial,como se a poesia estivesse acima de qualquer intenção ideológica ou partidária.
Dizer a verdade em poesia não significa, para o autor, converter a literatura em
testemunho da realidade, mas em oferecer uma das possibilidades de apreensão dessa mesma realidade.
Luiz Costa Lima (1967), em entrevista, foi um dos primeiros críticos a chamar a
atenção para o tipo de realismo cabralino, alegando que,na consciente traição à poética mallarmeana, a obra de João Cabral nos tem proposto a possibilidade de repensarmos não só nossas idéias sobre o discurso poético, e sua maneira de realização, como, e de maneira drástica, de pormos em cheque o conceito de realismo. Na verdade, se confundirmos, como é freqüente,realismo e expressão testemunhal ou seremos obrigados, neste caso, a desprezar o conceito por sua estreita utilidade, ou não entenderemos o alcance da lição cabralina, forçando-a por senda descabida. Pois em Cabral madura e se condensa a tensão que notávamos desde Manuel Bandeira: a de fazer da palavra mais que indício do real, a de construir pelo próprio tipo das relações de palavra a palavra,de frase a frase, de verso a verso, um realismo de linguagem.[...] Com João Cabral chega a seu tempo a fase criadora do modernismo.[...](LIMA,1967)
Em entrevista publicada nos Cadernos de Literatura Brasileira, 1998,
Literatura não é só o ato de captar na obra literária uma determinada coisa: há a
contraparte, que é a capacidade de comunicar a coisa captada.(...)... o critério para
saber se a coisa foi bem expressa é justamente a possibilidade de que ela tenha
sido comunicada a outras pessoas além do artista.(MELO NETO, 1953)
De acordo com essa definição, João Cabral não “sacrifica ao bem da expressão a
intenção de comunicar” (MELO NETO, 1998, p.99), como alguns individualistas
exacerbados de seu tempo, mas preocupa-se também com o poder de comunicação de
sua linguagem e com os modos de recepção de seus textos. Assim, a objetividade do
projeto cabralino está pautada em uma reflexão crítica acerca do fazer poético, ao mesmo tempo em que tenta resgatar a comunicação com o leitor, visto por ele como “contraparte essencial à atividade de criar literatura.” (MELO NETO, 1998, ).
A Imagem Poética da Realidade do Capibaribe:
Análise :
-Poema ‘O Cão sem Plumas’, de João Cabral de Melo Neto
Objetivo :analisar o poema “O cão sem plumas”, de João
Cabral de Melo Neto.
Perceber de que forma a linguagem consegue mimetizar a
realidade da região de Recife através da construção de
imagens que, ao mesmo tempo em que representam o real,
causam estranhamento pelo uso de aproximações
inesperadas. Como referencial teórico, sobretudo,
algumas reflexões sobre poesia e imagem, de Otávio Paz, além
de estudos críticos sobre a poesia cabralina.
INTRODUÇÃO
O poeta João Cabral de Melo Neto, situado na Geração de
45, é conhecido pela racionalidade intencional,
impessoalidade, consciência poética e habilidade com as
palavras. Ao propor uma nova concepção de poesia produção,
rompe com o tradicionalismo literário ao propor uma nova
concepção de lirismo e de poesia. Estamos diante de um novo
fazer poético, no qual o lirismo sentimental e confessional dos
românticos e a idéia platônica de “poeta possuído” passam a
ser questionados pelas idéias difundidas pelos poetas
franceses Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.
A forma como conteúdo do poema e um “eu lírico” universal
são fatores desencadeadores de crítica e divergência, pois,
acostumados com a revolução formal da geração de 1922 ou
com o conteúdo engajado da geração de 1930, alguns críticos
da época consideraram a geração de 45 um retrocesso às
conquistas das gerações anteriores.
João Cabral de Melo Neto foi considerado, durante muito
tempo,como um poeta antilírico, frio, seco e “neoparnasiano”.
Entretanto, a poesia cabralina está longe de ser merecedora de
tais críticas e sua forma hermética é conseqüência de um
trabalho laborioso com a palavra.
O poema cabralino analisado neste é “O cão sem
plumas”,1949, composto por 426 versos, divididos em quatro
partes – nas duas primeiras trata da paisagem e, nas duas
últimas, do discurso – e a intenção é levantar algumas
possibilidades de significação das imagens construídas a
partir de aproximações surpreendentes, que causam
estranhamento.
De que maneira a linguagem do poema consegue
representar a realidade da região do Recife?
Existe relação entre as comparações imprevistas, a iniciar
pelo título, “O cão sem plumas”, e a realidade
representada?
Podemos pensar em uma mimese da linguagem?
A PALAVRA POÉTICA COMO MIMESE DA REALIDADE
A arte poética tem como princípio essencial, de acordo com
Aristóteles,a questão da mimese. O verbo “imitar” em grego
significa criar, implantando um modo de ser novo, uma nova
realidade, e não copiar.
Mimese, portanto, é tomada como sinônimo de criação. Não
basta copiar, é necessário representar:
A mimese poética é uma representação que resulta de um
processo específico de construção a partir de determinados
efeitos. A construção mimética é presidida por um critério: a
verossimilhança.
Tudo é verossímil ou possível na mimese, até o inverossímil,
desde que motivado [...] (COSTA, 2003).
Segundo Costa, é por meio da mimese que o poeta
“desrealiza” o real para realizá-lo na sua plenitude, para
captá-lo no seu dinamismo de estruturação. Para Eduardo
Portella, a realidade para nós não é uma construção acabada, é
um dinamismo, um possível vir a ser. É por meio
da mimese da linguagem que a região do Recife é
representada:
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho
Capibaribe é o nome do rio deste poema, é um rio pobre,
guiado por sua realidade e observação ao que se passa em
suas margens. Para Benedito Nunes, o rio ocupa condição de
protagonista e narra as etapas de seu percurso geográfico,
como se fosse desenhando, em detalhes, a região, o povo e a
cidade. Essa descrição do real relata ao leitor as condições
sociais do homem:
Em silêncio
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido da terra negra.
Platão considera mimese como sendo uma imitação, uma
cópia do objeto, enquanto Aristóteles
atribui à mimese caráter de representação da realidade.
O poeta descreve que a pobreza do rio está em suas águas
cheias de lama, pois são as águas em abundância que
constituem a riqueza de um rio. O verso “o rio que carrega a
fecundidade pobre” demonstra a falta de perspectiva de vida,
sua “fecundidade”, ou seja, a esperança
de uma “nova vida” é levada pela lama negra, o rio “grávido de
terra negra” reforça o determinismo das condições precárias
de vida daqueles que lá moram. As palavras fecundidade e
grávido remetem à idéia de “vida nova”, mas no contexto do
poema analisado elas ressaltam a continuidade do sofrimento
e o futuro obscuro: cheio de lama ou “grávido de terra negra”.
Por isso, falamos em mimese da linguagem, pois as figuras de
linguagem utilizadas criam, mesmo que de forma poética, a
realidade da região:
A poesia descritiva, além de manifestar a semelhança existente
entre o significante e o significado, o que é comum a toda
poesia, busca uma representação verossímil de um referente
concreto, de um objeto do mundo físico. Michael Riffaterre
comenta que a poesia descritiva, como todas as formas da
mimese, cria uma ilusão de realidade. Uma das maneiras de se
conseguir esta ilusão é fazer com que a linguagem poética
pareça incontrolavelmente adequada
ao objeto que ela representa (PEIXOTO, 1983, p. 87).
O poeta demonstra indignação ao questionar como o rio negro
pode parecer pintado de azul no mapa:
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
O rio grávido de terra negra é colorido de azul no mapa. As
interrogações questionam a validade do compromisso de
fidelidade com o real; ora, o mapa que é considerado como
representação,oficial, do real na verdade, não é fiel à realidade,
enquanto a poesia,descompromissada com o mundo real,
consegue (re)apresentar o mundo em sua essência. Quem vê o
rio negro pintado de azul não consegue imaginar a realidade
daquela região.
O RIO, O CÃO E O HOMEM: IMAGENS SEM
PLUMAS
No poema “O cão sem plumas”, deparamo-nos com a
utilização de figuras, as quais são artifícios de que a linguagem
dispõe para romper como o caráter monossignificativo da
linguagem comum e que proporciona a pluralidade de
sentidos, através de construções que constituem um certo
desvio da norma estabelecida e cristalizada,causando
estranhamento.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Observamos no poema que as comparações feitas pelo
poeta –
“Aquele rio era como um cão sem plumas”
– representam um grande salto da diversidade entre os
elementos que causam estranhamento,pois colocam como
equivalentes o rio e o cão, não um cão qualquer,
mas um cão sem plumas. De que forma as comparações de
semelhanças entre elementos diferentes podem ser
pertinentes?
A metáfora moderna não nasce da necessidade de
reconduzir conceitos desconhecidos. Realiza o grande salto da
diversidade de seus elementos a uma unidade alcançável só
no experimento da linguagem e, em verdade, de tal forma que
busque a maior diversidade possível, a reconheça como tal e,
ao mesmo tempo,a anule poeticamente (...) A lírica moderna,
graças à capacidade metafórica fundamental de unir algo
próximo com algo distante,desenvolveu as combinações mais
desconcertantes, ao transformar um elemento que já longínquo
num absolutamente remoto, sem se importar com a exigência
de uma reabilizabilidade concreta
ou mesmo lógica .
O óbvio e o previsível não causam estranhamento, Friedrich
explica que o uso de metáforas se transforma no meio
estilístico mais adequado à fantasia da lírica moderna e causa
impacto ao leitor porque se baseia na semelhança entre
elementos diferentes. A metáfora é um dos recursos
predominantes no poema analisado e por meio dessa
figura a palavra poética consegue performatizar a realidade de
um modo que a linguagem convencional não permite.
Para Aristóteles (2005, p.19), “a essência do enigma
consiste em falar de coisas reais; isso não é possível com a
combinação de palavras próprias, mas é admissível com a
metáfora”. Ora, o poeta compara o rio a um cão e ainda sem
plumas, ou seja, o rio é pobre pelas lamas negras, por isso é
comparado a um cão. A expressão “sem plumas”
utilizada no título, retomada várias vezes no poema, intensifica
o quanto a região pela qual o rio Capibaribe passa é pobre e
reforça a afirmação de Friedrich, do quanto as forças
metafóricas são fundamentais na poesia, porque elas removem
os limites de suas figuras e permitem a união de seus
extremos.
O poema apresenta um percurso geográfico e na primeira
estrofe observamos os termos que serão utilizados em
permutações subseqüentes:
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
por uma espada
Nestes versos percebemos que a cidade cortada pelo rio é
semelhante ao movimento inconseqüente de um cão como ao
ato de cortar uma fruta:
O rio é colhido como um complexo simultaneamente de
geografia e de humanidade. Assim se entende a edificação
imagética ser realizada a partir dos vocábulos ‘cachorro’ e
‘espada’. Elas nada têm de raras, de misteriosas”
E os elementos comparados, rio e cidade; rua e cão; fruta e
espada reaparecerão ao longo do poema em novas
combinações:
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir,
Tem, o rio, um parto fluente e
invertebrado
como o de uma cadela
Conforme Costa Lima salientou, percebemos, no trecho
acima, as novas combinações das palavras, as quais
comparam o rio com o ventre de uma cadela e atribui ao poema
a real pobreza do Capibaribe.
Um outro recurso presente no poema são as analogias e os
símiles.
Para Dante Tringali (1988, p. 132), símile “é notar semelhança e
diferença entre duas coisas” e analogia “é ponto de
semelhança entre coisas diferentes”, estes recursos
estilísticos podem ser exemplificados:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais que um cão assassinado
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
Agora, a relação entre rio e cão é uma analogia entre rio e
homem.
A negatividade da expressão “sem plumas” se transmite
por meio de diversos degraus semelhantes e intensos. João
Cabral de Melo Neto cria analogias inéditas baseadas na
aparência física e na percepção de uma semelhança de função,
de caráter ou de natureza essencial. Os conceitos de
fertilidade, maturidade e estagnação são construídos
pela analogia rio–fruta:
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre
como que iam pousar moscas?
A expressão fruta denota a terra contida nas águas do rio. O
cão sem plumas representa a realidade obscura, sombria e
sem brilho da junção entre o rio e a cidade. A união entre a
paisagem humana e a física é construída por meio das
metáforas com base metonímica.
metonímia “são palavras utilizadas no lugar de outra, não por
semelhança, mas porque há entre ambas as coisas uma
relação de contigüidade”, ou seja, a relação
entre “cão sem plumas”, “rio”, “cidade” e “homem” não é
estabelecida a partir de uma relação de igualdade, mas sim por
critérios de proximidade, o que media a comparação é uma
condição comum.
A semelhança entre os elementos que se mantêm em
contigüidade espacial, próximos uns dos outros,
contribui para prender o homem e o meio ambiente, cuja
relação prejudica ambos:
Ele tinha algo, então
da estagnação de um louco,
algo de estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
de vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Nestes versos percebemos que o rio materializa aspectos
da paisagem e do sistema social em decadência. O homem que
vive neste sistema social é representado no poema de maneira
perturbadora:
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama, numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama
Na paisagem do rio,
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Como o rio
aqueles homens
são cães sem plumas
Não há distinção entre homem/rio/lama, os aspectos
humanos,geográficos e sociais fundem-se através destas
construções metafóricas,nas quais o rio e o homem são “cães
sem plumas”. As metáforas e os símiles baseados na
semelhança entre as condições reais do homem e
do meio retratam, de forma objetiva, o mal causado pelas
condições sociais em detrimento das condições físicas da
região, o que resulta num“homem sem plumas”. Peixoto (1983)
comenta que essas construções metafóricas representam um
realismo transcendental, responsável pelo caráter de
verossimilhança do poema, desta forma, percebemos
que são as figuras de linguagem que conseguem mimetizar as
reais condições da vida natural e social daquela região.
A IMAGEM DE CONTRÁRIOS
“a imagem é um recurso desesperado
contra o silêncio que nos invade cada vez que tentamos
exprimir a terrível experiência que nos rodeia nós mesmos”.
Nessa perspectiva percebemos em “O cão sem plumas” que a
imagem realiza-se por meio da descrição dos elementos
concretos comparados, que possuem características
contrárias que se fundem, ou seja, quando o rio é comparado
a um cão sem plumas, atribuímos ao rio as características de
um animal que não tem como sobreviver e constatamos que
para a sobrevivência do rio é preciso água em abundância, o
que ele não possui.
Quando as características do rio e do cão se fundem,
recriamos,por meio da palavra poética, a imagem da própria
realidade do rio cheio de lama. O fenômeno antropomórfico
concede características humanas ao rio:
O rio sabia
daqueles homens sem plumas
Sabia de suas barbas expostas,
do seu doloroso cabelo
do camarão e estopa.
E sabia
Da magra cidade
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
É atribuída ao rio consciência humana, o rio sem plumas
“sabia”do homem sem plumas. Luiz Costa Lima (1995), sobre a
fusão entre rio e homem, comenta que os habitantes possuem
as mesmas características que constituem o rio. O sintagma
“sem plumas” passa a se referir também ao homem, que vive
às margens do rio, em situação tão precária que, segundo o
próprio Cabral, não ultrapassa os 28 anos.
Observamos também em “O cão sem plumas”, a percepção
sensorial através da construção de imagens sinestésicas:
Aquele rio era como um cão sem plumas
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
na brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia de lama
como uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Nos versos acima, a chuva azul, fonte cor-de-rosa, copo de
água,água de cântaro, peixes e brisa aparecem em oposição às
imagens dos caranguejos, do lodo e da ferrugem, da lama, da
mucosa, dos polvos e da mulher febril. Através das cores rosa
e azul e da presença do elemento água, presentes no primeiro
grupo, é construída uma imagem positiva que remete à vida, a
leveza e a tranqüilidade, enquanto as imagens do segundo
grupo são de cunho negativo: o caranguejo,que anda para trás;
o lodo, a ferrugem e a lama criam imagens sombrias
e escuras, ou seja, imagens sem plumas, e são essas as
imagens que o rio conhece. Alexandre Barbosa (2001, p. 39)
comenta sobre a dicotomia de imagens criadas pelo poema
bem como sua relação com o homem que habita a região:
Nas duas “paisagens do Capibaribe”, trata-se, por um lado,
de indicar o modo pelo qual o rio sabe ou não sabe daquilo por
onde passa e, por outro de estabelecer a relação entre o que
foi definido“sem plumas” e o próprio homem que habita as
suas margens.
De acordo com Marta Peixoto, a transformação ocorrida
pelo percurso do rio, a partir de “Fábula do Capibaribe” e
“Discurso do Capibaribe”, revela o significado do rio,
separando-o do seu curso geográfico e focalizando-o na
memória: aquele rio/está na memória/
como um cão vivo. A analogia rio-cão modifica o seu calor: de
manso e humilde é agora “vivo acima de tudo”:
O significado simbólico da fábula deriva-se desta luta, que
sugere,implicitamente uma forma de ação para os “homens
sem plumas”.
O rio, humilde e pobre, fortifica-se na união a outros rios.
Juntos todos os rios preparam a sua luta, e na exploração de
seus próprios recursos previamente desconhecidos .
O poema, ao celebrar a luta, sugere, de forma implícita, a ação
dos homens sem plumas:
porque é muito mais espessa
a vida que se luta
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia,
o dia que se adquire
cada dia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da análise realizada, percebemos que o uso de
metáforas e analogias como “rio/homem”; “rio/fruta”; “cão sem
plumas/homem sem plumas” é responsável pela construção de
imagens no poema “O cão sem plumas” e causa
estranhamento ao leitor, porque tais imagens são comparações
baseadas em diferenças. São elas que conseguem recriar a
realidade do Capibaribe.
A descrição do meio e do homem da região do Recife foi
mimetizada pela linguagem. A utilização de comparações
imprevistas e palavras concretas, “espada/ fruta/ rio/ cão/
homens/ terra”, fazem com que o poema consiga materializar a
realidade rústica, seca e discrepante daquele lugar.
Com este estudo sobre um poema da obra cabralina, tentamos
encaminhar-nos para a totalização do poema, mas sabemos
que a linguagem poética estará, evidentemente, além de
nossas apreensões.
Seu poder é sempre maior, em decorrência de sua natureza
disseminada,portanto, o que fizemos foi levantamento de
possibilidades.
Diálogos Pertinentes – Rev. Cient. de Letr as • Fr anca (SP) • v. 3 • p. 127-140 • jan./dez. 2007
Morte e vida severina
(Auto de Natal Pernambucano)
(Auto de Natal Pernambucano)
João Cabral de Melo Neto
— O meu nome é Severino, como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!" — A quem estais carregando, irmãos das almas, embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. — A um defunto de nada, irmão das almas, que há muitas horas viaja à sua morada. — E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama ou se chamava? — Severino Lavrador, irmão das almas, Severino Lavrador, mas já não lavra. — E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que começou vossa jornada? — Onde a Caatinga é mais seca, irmão das almas, onde uma terra que não dá nem planta brava. — E foi morrida essa morte, irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? — Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte matada, numa emboscada. — E o que guardava a emboscada, irmão das almas, e com que foi que o mataram, com faca ou bala? — Este foi morto de bala, irmão das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara. — E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? — Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. — E o que havia ele feito, irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? — Ter um hectares de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. — Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia ele plantar na pedra avara? — Nos magros lábios de areia, irmão das almas, os intervalos das pedras, plantava palha. — E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? — Tinha somente dez quadros, irmão das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. — Mas então por que o mataram, irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? — Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. — E agora o que passará, irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? — Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala. — E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente de chumbo que tem guardada? — Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada. — E poderei ajudar, irmãos das almas? vou passar por Toritama, é minha estrada. — Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das almas quem ouve nossa chamada. — E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa. — Vou eu, que a viagem é longa, irmãos das almas, é muito longa a viagem e a serra é alta. — Mais sorte tem o defunto, irmãos das almas, pois já não fará na volta a caminhada. — Toritama não cai longe, irmão das almas, seremos no campo santo de madrugada. — Partamos enquanto é noite, irmão das almas, que é o melhor lençol dos mortos noite fechada. O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO — Antes de sair de casa aprendi a ladainha das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; sei que há simples arruados, sei que há vilas pequeninas, todas formando um rosário cujas contas fossem vilas, todas formando um rosário de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila. Vejo agora: não é fácil seguir essa ladainha; entre uma conta e outra conta, entre uma a outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, vazias até de donos, e onde o pé se descaminha. Não desejo emaranhar o fio de minha linha nem que se enrede no pêlo hirsuto desta caatinga. Pensei que seguindo o rio eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida? Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham. Tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam. Mas não vejo almas aqui, nem almas mortas nem vivas; ouço somente à distância o que parece cantoria. Será novena de santo, será algum mês-de-Maria; quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria? NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES — Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas... — Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. — Finado Severino, etc. ... — Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação. — Finado Severino, etc. ... — Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves. — Uma excelência dizendo que a hora é hora. — Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora. — Duas excelências... — ... dizendo é a hora da plantação. — Ajunta os carregadores... — ... que a terra vai colher a mão. CANSADO DA VIAGEM O RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE ENCONTRA. — Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, só a morte deparei e às vezes até festiva; só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina (aquela vida que é menos vivida que defendida, e é ainda mais severina para o homem que retira). Penso agora: mas porque parar aqui eu não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? ao menos até que as águas de uma próxima invernia me levem direto ao mar ao refazer sua rotina? Na verdade, por uns tempos, parar aqui eu bem podia e retomar a viagem quando vencesse a fadiga. Ou será que aqui cortando agora minha descida já não poderei seguir nunca mais em minha vida? (será que a água destes poços é toda aqui consumida pelas roças, pelos bichos, pelo sol com suas línguas? será que quando chegar o rio da nova invernia um resto de água no antigo sobrará nos poços ainda?) Mas isso depois verei: tempo há para que decida; primeiro é preciso achar um trabalho de que viva. Vejo uma mulher na janela, ali, que se não é rica, parece remediada ou dona de sua vida: vou saber se de trabalho poderá me dar notícia. DIRIGE-SE À MULHER NA JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ — Muito bom dia, senhora, que nessa janela está; sabe dizer se é possível algum trabalho encontrar? — Trabalho aqui nunca falta a quem sabe trabalhar; o que fazia o compadre na sua terra de lá? — Pois fui sempre lavrador, lavrador de terra má; não há espécie de terra que eu não possa cultivar. — Isso aqui de nada adianta, pouco existe o que lavrar; mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá? — Também lá na minha terra de terra mesmo pouco há; mas até a calva da pedra sinto-me capaz de arar. — Também de pouco adianta, nem pedra há aqui que amassar; diga-me ainda, compadre, que mais fazia por lá? — Conheço todas as roças que nesta chã podem dar: o algodão, a mamona, a pita, o milho, o caroá. — Esses roçados o banco já não quer financiar; mas diga-me, retirante, o que mais fazia lá? — Melhor do que eu ninguém sei combater, quiçá, tanta planta de rapina que tenho visto por cá. — Essas plantas de rapina são tudo o que a terra dá; diga-me ainda, compadre; que mais fazia por lá? — Tirei mandioca de chãs que o vento vive a esfolar e de outras escalavradas pela seca faca solar. — Isto aqui não é Vitória nem é Glória do Goitá; e além da terra, me diga, que mais sabe trabalhar? — Sei também tratar de gado, entre urtigas pastorear: gado de comer do chão ou de comer ramas no ar. — Aqui não é Surubim nem Limoeiro, oxalá! mas diga-me, retirante, que mais fazia por lá? — Em qualquer das cinco tachas de um banguê sei cozinhar; sei cuidar de uma moenda, de uma casa de purgar. — Com a vinda das usinas há poucos engenhos já; nada mais o retirante aprendeu a fazer lá? — Ali ninguém aprendeu outro ofício, ou aprenderá: mas o sol, de sol a sol, bem se aprende a suportar. — Mas isso então será tudo em que sabe trabalhar? vamos, diga, retirante, outras coisas saberá. — Deseja mesmo saber o que eu fazia por lá? comer quando havia o quê e, havendo ou não, trabalhar. — Essa vida por aqui é coisa familiar; mas diga-me retirante, sabe benditos rezar? sabe cantar excelências, defuntos encomendar? sabe tirar ladainhas, sabe mortos enterrar? — Já velei muitos defuntos, na serra é coisa vulgar; mas nunca aprendi as rezas, sei somente acompanhar. — Pois se o compadre soubesse rezar ou mesmo cantar, trabalhávamos a meias, que a freguesia bem dá. — Agora se me permite minha vez de perguntar: como senhora, comadre, pode manter o seu lar? — Vou explicar rapidamente, logo compreenderá: como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar. — E ainda se me permite que volte a perguntar: é aqui uma profissão trabalho tão singular? — É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há: sou de toda a região rezadora titular. — E ainda se me permite mais outra vez indagar: é boa essa profissão em que a comadre ora está? — De um raio de muitas léguas vem gente aqui me chamar; a verdade é que não pude queixar-me ainda de azar. — E se pela última vez me permite perguntar: não existe outro trabalho para mim nesse lugar? — Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear. O RETIRANTE CHEGA À ZONA DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM
— Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nesta terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm a água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não tenho medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra a piçarra da Caatinga será fácil amansar esta aqui, tão feminina. Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina; somente ali à distância aquele bueiro de usina; somente naquela várzea um banguê velho em ruína. Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Feriando: que nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida. Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe da morte em vida, vida em morte, severina; e aquele cemitério ali, branco na verde colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha. ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO — Essa cova em que estás, com palmos medida, é a cota menor que tiraste em vida. — É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio. — Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. — É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo. — É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo. — É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca. — Viverás, e para sempre, na terra que aqui aforas: e terás enfim tua roça. — Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas. — Agora trabalharás só para ti, não a meias, como antes em terra alheia. — Trabalharás uma terra da qual, além de senhor, serás homem de eito e trator. — Trabalhando nessa terra, tu sozinho tudo empreitas: serás semente, adubo, colheita. — Trabalharás numa terra que também te abriga e te veste: embora com o brim do Nordeste. — Será de terra tua derradeira camisa: te veste, como nunca em vida. — Será de terra e tua melhor camisa: te veste e ninguém cobiça. — Terás de terra completo agora o teu fato: e pela primeira vez, sapato. — Como és homem, a terra te dará chapéu: fosses mulher, xale ou véu. — Tua roupa melhor será de terra e não de fazenda: não se rasga nem se remenda. — Tua roupa melhor e te ficará bem cingida: como roupa feita à medida. — Esse chão te é bem conhecido (bebeu teu suor vendido). — Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo). — Esse chão te é bem conhecido (bebeu tua força de marido). — Desse chão és bem conhecido (através de parentes e amigos). — Desse chão és bem conhecido (vive com tua mulher, teus filhos). — Desse chão és bem conhecido (te espera de recém-nascido). — Não tens mais força contigo: deixa-te semear ao comprido. — Já não levas semente viva: teu corpo é a própria maniva. — Não levas rebolo de cana: és o rebolo, e não de caiana. — Não levas semente na mão: és agora o próprio grão. — Já não tens força na perna: deixa-te semear na coveta. — Já não tens força na mão: deixa-te semear no leirão. — Dentro da rede não vinha nada, só tua espiga debulhada. — Dentro da rede vinha tudo, só tua espiga no sabugo. — Dentro da rede coisa vasqueira, só a maçaroca banguela. — Dentro da rede coisa pouca, tua vida que deu sem soca. — Na mão direita um rosário, milho negro e ressecado. — Na mão direita somente o rosário, seca semente. — Na mão direita, de cinza, o rosário, semente maninha. — Na mão direita o rosário, semente inerte e sem salto. — Despido vieste no caixão, despido também se enterra o grão. — De tanto te despiu a privação que escapou de teu peito a viração. — Tanta coisa despiste em vida que fugiu de teu peito a brisa. — E agora, se abre o chão e te abriga, lençol que não tiveste em vida. — Se abre o chão e te fecha, dando-te agora cama e coberta. — Se abre o chão e te envolve, como mulher com quem se dorme. O RETIRANTE RESOLVE APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE — Nunca esperei muita coisa, digo a Vossas Senhorias. O que me fez retirar não foi a grande cobiça; o que apenas busquei foi defender minha vida de tal velhice que chega antes de se inteirar trinta; se na serra vivi vinte, se alcancei lá tal medida, o que pensei, retirando, foi estendê-la um pouco ainda. Mas não senti diferença entre o Agreste e a Caatinga, e entre a Caatinga e aqui a Mata a diferença é a mais mínima. Está apenas em que a terra é por aqui mais macia; está apenas no pavio, ou melhor, na lamparina: pois é igual o querosene que em toda parte ilumina, e quer nesta terra gorda quer na serra, de caliça, a vida arde sempre, com a mesma chama mortiça. Agora é que compreendo porque em paragens tão ricas o rio não corta em poços como ele faz na Caatinga: vivi a fugir dos remansos a que a paisagem o convida, com medo de se deter grande que seja a fadiga. Sim, o melhor é apressar o fim desta ladainha, o fim do rosário de nomes que a linha do rio enfia; é chegar logo ao Recife, derradeira ave-maria do rosário, derradeira invocação da ladainha, Recife, onde o rio some e esta minha viagem se fina. CHEGANDO AO RECIFE, O RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS — O dia de hoje está difícil; não sei onde vamos parar. Deviam dar um aumento, ao menos aos deste setor de cá. As avenidas do centro são melhores, mas são para os protegidos: há sempre menos trabalho e gorjetas pelo serviço; e é mais numeroso o pessoal (toma mais tempo enterrar os ricos). — Pois eu me daria por contente se me mandassem para cá. Se trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar. De trabalhar no de Santo Amaro deve alegrar-se o colega porque parece que a gente que se enterra no de Casa Amarela está decidida a mudar-se toda para debaixo da terra. — É que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se vê. Fique-se por aí um momento e não tardarão a aparecer os defuntos que ainda hoje vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde se enterram os ricos, são como o porto do mar: não é muito ali o serviço: no máximo um transatlântico chega ali cada dia, com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia. Mas este setor de cá é como a estação dos trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém. — Mas se teu setor é comparado à estação central dos trens, o que dizer de Casa Amarela onde não pára o vaivém? Pode ser uma estação mas não estação de trem: será parada de ônibus, com filas de mais de cem. — Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo, que te mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço? Não creio que te mandassem para as belas avenidas onde estão os endereços e o bairro da gente fina: isto é, para o bairro dos usineiros, dos políticos, dos banqueiros, e no tempo antigo, dos banguezeiros (hoje estes se enterram em carneiros); bairro também dos industriais, dos membros das associações patronais e dos que foram mais horizontais nas profissões liberais. Difícil é que consigas aquele bairro, logo de saída. — Só pedi que me mandassem para as urbanizações discretas, com seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra. — Esse é o bairro dos funcionários, inclusive extranumerários, contratados e mensalistas (menos os tarefeiros e diaristas). Para lá vão os jornalistas, os escritores, os artistas; ali vão também os bancários, as altas patentes dos comerciários, os lojistas, os boticários, os localizados aeroviários e os de profissões liberais que não se liberaram jamais. — Também um bairro dessa gente temos no de Casa Amarela: cada um em seu escaninho, cada um em sua gaveta, com o nome aberto na lousa quase sempre em letras pretas. Raras as letras douradas, raras também as gorjetas. — Gorjetas aqui, também, só dá mesmo a gente rica, em cujo bairro não se pode trabalhar em mangas de camisa; onde se exige quépi e farda engomada e limpa. — Mas não foi pelas gorjetas, não, que vim pedir remoção: é porque tem menos trabalho que quero vir para Santo Amaro; aqui ao menos há mais gente para atender a freguesia, para botar a caixa cheia dentro da caixa vazia. — E que disse o Administrador, se é que te deu ouvido? — Que quando apareça a ocasião atenderá meu pedido. — E do senhor Administrador isso foi tudo que arrancaste? — No de Casa Amarela me deixou mas me mudou de arrabalde. — E onde vais trabalhar agora, qual o subúrbio que te cabe? — Passo para o dos industriários, que é também o dos ferroviários, de todos os rodoviários e praças-de-pré dos comerciários. — Passas para o dos operários, deixas o dos pobres vários; melhor: não são tão contagiosos e são muito menos numerosos. — É, deixo o subúrbio dos indigentes onde se enterra toda essa gente que o rio afoga na preamar e sufoca na baixa-mar. — É a gente sem instituto, gente de braços devolutos; são os que jamais usam luto e se enterram sem salvo-conduto. — É a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos ininterruptos. — É a gente retirante que vem do Sertão de longe. — Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante. — E que então, ao chegar, não têm mais o que esperar. — Não podem continuar pois têm pela frente o mar. — Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar. — E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar. — Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes, e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris que apanha; pois bem: quando sua morte chega, temos que enterrá-los em terra seca. — Na verdade, seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte. — O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água; e também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. — E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não precisava oração e não precisava inscrição. — Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço crescendo mais cada dia; morre gente que nem vivia. — E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando cemitérios esperando. — Não é viagem o que fazem, vindo por essas caatingas, vargens; aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro. O RETIRANTE APROXIMA-SE DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE — Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário de cidade e de vilas, e mesmo aqui no Recife ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam. Mas que se este não mudasse seu uso de toda vida, esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, ao meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila (que o rio, aqui no Recife, não seca, vai toda a vida). APROXIMA-SE DO RETIRANTE O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO
— Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabes me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabe me dizer se é funda esta água grossa e carnal? — Severino, retirante, jamais o cruzei a nado; quando a maré está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de grande calado. — Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não é preciso muito água: basta que chega ao abdome, basta que tenha fundura igual à de sua fome. — Severino, retirante, pois não sei o que lhe conte; sempre que cruzo este rio costumo tomar a ponte; quanto ao vazio do estômago, se cruza quando se come. — Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água são grandes braços de mar? — Severino, retirante, o meu amigo é bem moço; sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la vale bem qualquer esforço. — Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau? quando a força que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão das águas não é melhor se entregar? — Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alaga e devasta a terra inteira. — Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que como frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados num braço do mar miséria? — Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais. — Seu José, mestre carpina, e que diferença faz que esse oceano vazio cresça ou não seus cabedais, se nenhuma ponte mesmo é de vencê-lo capaz? — Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita: há muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre comprada à vista? — Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la. — Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga, há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia comprá-la em grandes partidas? — Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida. — Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e da vida? UMA MULHER, DA PORTA DE ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
— Compadre José, compadre, que na relva estais deitado: conversais e não sabeis que vosso filho é chegado? Estais aí conversando em vossa prosa entretida: não sabeis que vosso filho saltou para dentro da vida? Saltou para dento da vida ao dar o primeiro grito; e estais aí conversando; pois sabei que ele é nascido. APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC. — Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou. — Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta e o mau-cheiro não voou. — E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante, veio varrer nossas ruas enviada do mar distante. — E a língua seca de esponja que tem o vento terral veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal. — Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna num mocambo sedutor. — Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar. — E a banda de maruins que toda noite se ouvia por causa dele, esta noite, creio que não irradia. — E este rio de água cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas. COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO — Minha pobreza tal é que não trago presente grande: trago para a mãe caranguejos pescados por esses mangues; mamando leite de lama conservará nosso sangue. — Minha pobreza tal é que coisa não posso ofertar: somente o leite que tenho para meu filho amamentar; aqui são todos irmãos, de leite, de lama, de ar. — Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor: trago papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. — Minha pobreza tal é que não tenho presente caro: como não posso trazer um olho d'água de Lagoa do Carro, trago aqui água de Olinda, água da bica do Rosário. — Minha pobreza tal é que grande coisa não trago: trago este canário da terra que canta corrido e de estalo. — Minha pobreza tal é que minha oferta não é rica: trago daquela bolacha d'água que só em Paudalho se fabrica. — Minha pobreza tal é que melhor presente não tem: dou este boneco de barro de Severino de Tracunhaém. — Minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar: dou da pitu que o pintor Monteiro fabricava em Gravatá. — Trago abacaxi de Goiana e de todo o Estado rolete de cana. — Eis ostras chegadas agora, apanhadas no cais da Aurora. — Eis tamarindos da Jaqueira e jaca da Tamarineira. — Mangabas do Cajueiro e cajus da Mangabeira. — Peixe pescado no Passarinho, carne de boi dos Peixinhos. — Siris apanhados no lamaçal que há no avesso da rua Imperial. — Mangas compradas nos quintais ricos do Espinheiro e dos Aflitos. — Goiamuns dados pela gente pobre da Avenida Sul e da Avenida Norte. FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS — Atenção peço, senhores, para esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, como goiamuns, e a correr o ensinarão o anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo o que cheira a comida; depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. Vejo-o, uns anos mais tarde, na ilha do Maruim, vestido negro de lama, voltar de pescar siris; e vejo-o, ainda maior, pelo imenso lamarão fazendo dos dedos iscas para pescar camarão. — Atenção peço, senhores, também para minha leitura: também venho dos Egitos, vou completar a figura. Outras coisas que estou vendo é necessário que eu diga: não ficará a pescar de jereré toda a vida. Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício, bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues, vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador de maré que vemos aqui, vestido de lama da cara ao pé. E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar-se destes mangues daqui do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe. FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC. — De sua formosura já venho dizer: é um menino magro, de muito peso não é, mas tem o peso de homem, de obra de ventre de mulher. — De sua formosura deixai-me que diga: é uma criança pálida, é uma criança franzina, mas tem a marca de homem, marca de humana oficina. — Sua formosura deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante. — Sua formosura eis aqui descrita: é uma criança pequena, enclenque e setemesinha, mas as mãos que criam coisas nas suas já se adivinha. — De sua formosura deixai-me que diga: é belo como o coqueiro que vence a areia marinha. — De sua formosura deixai-me que diga: belo como o avelós contra o Agreste de cinza. — De sua formosura deixai-me que diga: belo como a palmatória na caatinga sem saliva. — De sua formosura deixai-me que diga: é tão belo como um sim numa sala negativa. — É tão belo como a soca que o canavial multiplica. — Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas. — Belo como a última onda que o fim do mar sempre adia. — É tão belo como as ondas em sua adição infinita. — Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. — Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia. — Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia. — Ou como o caderno novo quando a gente o principia. — E belo porque com o novo todo o velho contagia. — Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. — Infecciona a miséria com vida nova e sadia. — Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria. O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA — Severino retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu com sua presença viva. E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida severina.
Este é o mais conhecido dos trabalhos do poeta pernambucano, que no último dia nove estaria completando 82 anos de idade. Os versos foram extraídos do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág. 171.
ANÁLISE LITERÁRIA - MORTE E VIDA SEVERINA
Nome do autor:
João Cabral de Melo Neto
Escola literária:
Modernismo
Gênero literário:
Poema dramático. O leitor pode observar que a "história" que se conta não é narrada, mas mostrada através de quadros e cenas que se sucedem. Este é um procedimento típico da linguagem teatral. Daí a sua classificação: é um poema porque é escrito em forma de versos; e é dramático porque sua apresentação dá-se através de quadros, as personagens falando diretamente ao leitor (ou espectador).
Características da escola literária:
O Modernismo no Brasil começou com a Semana de Arte Moderna de 1922. Apesar de não ter sido dominante no começo, como atestam as vaias da platéia da época, com o tempo suplantou os estilos anteriores. Era marcado por uma liberdade de estilo e aproximação da linguagem com a linguagem falada.
Quanto à forma:
Versos livres;
Liberdade na escolha de palavras;
Síntese na linguagem, parágrafos curtos;
Busca de uma linguagem brasileira;
Pontuação relativa.
Quanto às idéias:
Nacionalismo;
Ironia, humor, piada;
Valorização de temas ligados ao cotidiano;
Urbanismo.
Linguagem:
É impossível ler Morte e Vida Severina sem recorrer com freqüência ao dicionário. João Cabral usa uma linguagem culta e corrente, porém sem distanciar-se de seu universo: o nordeste brasileiro.
Ainda que escrito há mais de 40 anos, o poema contando a travessia sertaneja do retirante Severino envolve o leitor com sua linguagem simples e objetiva, mas sem abrir mão de uma forte identidade regional.
Em Morte e Vida Severina, a linguagem regional entra de cabeça erguida, ombro a ombro com a linguagem comum aos grandes centros. Os regionalismos aqui têm a função específica de marcar a trajetória de Severino, conferindo-lhe a autenticidade testemunhada pela linguagem popular.
Há também a escassez de imagens "poéticas", típica da poesia de João Cabral de Melo Neto, sempre tão econômico em metáforas, metonímias e outras figuras que embelezam uma certa poesia de consumo fácil.
Em João Cabral, a linguagem reflete a própria paisagem que ele descreve: agreste, dura, seca. As exceções, raras, mostram imagens belamente cruéis (!), como no quadro dos "irmãos das almas", quando a bala assassina é chamada liricamente de "ave-bala" e "pássara"...
Estilo de linguagem:
Versos polimétricos; Destaque para o verso redondilho maior; Mescla de rimas toantes e consoantes; Linguagem seca, elíptica e concisa; Humor negro. Morte e Vida Severina foi escrita entre 1954-55. Naquela ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro Tablado, no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O poeta escreveu, então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem lidos em voz alta" e os dedicou a Rubem Braga e Fernando Sabino, "que tiveram a idéia deste repertório". A obra tem como subtítulo "Auto de Natal pernambucano" e tem inspiração nos autos pastoris medievais ibéricos, além de espelhar-se na cultura popular nordestina. Personagens: Severino – retirante nordestino que quer viver além dos trinta anos e por isso viaja até Recife, pois acredita que a vida lá seja melhor. Dois homens e o defunto – dois homens que Severino encontra no caminho, carregando um defunto chamado Severino Lavrador. Pessoas que cantam excelências para um defunto e um homem que faz paródia das palavras dos cantadores – Mulher na janela – mulher bem vivida que ganha a vida fazendo velórios, ladainhas, enterros, novenas etc. Trabalhador da roça (defunto) e amigos – trabalhador é enterrado enquanto amigos o homenageiam. Dois coveiros – Em Muro Alto (Recife), dois coveiros conversam sobre melhores condições de trabalho. José – mestre carpina que incentiva Severino a lutar pela vida, por mais severina que seja. Mulher – dá a entender ser a parteira do filho de José. Vizinhos, amigos e duas ciganas – todos vêm presentear o filho de José e as duas ciganas fazem a leitura do futuro do menino. Foco narrativo:Terceira pessoa. Tipo de narrador:Observador onisciente. Severino se apresenta no primeiro capítulo e nos demais ele conta toda a história. Espaço:Partida: Sertão de Pernambuco Estações: – "Irmãos das almas" "Excelências" "Mulher na janela" "Funeral do lavrador" "Conversa de coveiros" Chegada aos Mocambos do Recife: "Presépio" Tempo:Cronológico, seqüencial. Enredo: 1° capítulo Severino nasce, tenta de várias maneiras ser reconhecido como Severino, mas como em cada situação em que ele se depara há muitos Severinos, decide que será apenas Severino (que em vossa presença emigra). 2° capítulo Severino encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de "Ó irmão das almas que matei não!" e conversa com eles na tentativa de entender a causa da morte. O que o finado Severino tinha de tão importante para que quisessem matá-lo. Somente dez quadras, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. Quem o matou foi a ambição de alguém que queria mais terras e não ficará só naquela morte, pois certamente mais terras irá procurar. Como o retirante estava migrando e ia passar por Toritama, para o mesmo lugar em que os homens estavam levando o defunto, se ofereceu a ajudar e sendo assim, um deles achou melhor voltar porque não havia necessidade de três carregar o defunto. 3° capítulo Severino continua seu caminho e sabe que vai passar por muitas cidades e vilarejos. Chega até a comprar o caminho com um rosário, que tem várias contas de diferentes tamanhos, de acordo com o tipo de oração. Também acha que pode se guiar pelo leito do rio Capibaribe, acreditando ser este o melhor guia, o caminho mais certo. No entanto, em alguns trechos do caminho, o rio corta a descida e em outros, por causa da seca, não continua seu leito (pernas que não caminham). Porém, enquanto Severino tenta escolher um caminho ouve uma cantoria à distância. 4° capítulo Na casa em que o retirante chega,estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores. Cansado da viajem, o retirante pensa em interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra. Explica Severino que em toda a sua jornada ele só deparava com a morte e então vai à procura de um trabalho para sobreviver. 5° capítulo Após falar de si mesmo, Severino resolve então perguntar a uma mulher que estava na janela, como ela vivia, com que renda. Ela então explica que vive da morte, fazendo novenas, velórios, enterros, ladainhas etc. e diz a Severino que se ele soubesse rezar, serviço não iria faltar. 6° capítulo O retirante chega à Zona da Mata, que o faz pensar outra vez em interromper a viajem, pois vê que a terra é boa (doce para os pés e para a vista) e os rios têm água mais limpa. Acredita que talvez seja nessa terra que continuará sua vida. Avista então folhas de cana fina, um casebre (bangüê) velho em ruína e um bueiro de usina, mas não sabe onde estão as pessoas que ali cultivam a cana. Pensa então que com uma terra tão boa, uma água tão limpa, a plantação vai muito bem e com isso, as pessoas não precisam trabalhar tanto, podem aproveitar um pouco mais a vida, viver mais. 7° capítulo Severino assiste ao enterro de um trabalhador da roça e ouve o que os amigos que o levavam ao cemitério, lhe fazendo uma homenagem. 8° capítulo O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife porque percebe que não tem mais muita vida. No sertão, acreditava que morreria antes dos 30. Severino não almejava ser rico, o que queria mesmo, quando começou a andar (retirar), era viver um pouco mais. Porém, conforme vai caminhando, percebe que a vida é igual em qualquer lugar: na Caatinga, no Agreste e na Mata. A diferença, segundo Severino, está na terra, que é mais macia na Mata. 9° capítulo Chegando ao Recife, Severino senta para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros. Os coveiros conversam sobre os baixos salários, questionando sobre o emprego do trabalhador da cidade, que é melhor.Nas cidades, os nomes dos defuntos são escritos em letras de ouro, enquanto que nos sertões, os defuntos não passam de indigentes. Os retirantes vês para Recife e quando chegam ao mar percebem que não podem continuar. Ficam então por lá, vivendo dos siris que conseguem pegar. Sugerem até que esse tipo de gente seja jogada no rio para que o enterro seja mais fácil e mais barato. 10° capítulo Severino aproxima-se de um dos cais do Capibaribe e começa a pensar na morte, na sua própria morte e percebe que veio para o Recife para morrer. Lembra então, da conversa dos dois coveiros e por um instante deseja que sua morte seja igual, ou seja, que o rio faça seu enterro. 11° capítulo O morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio aproxima-se de Severino e este começa a lhe questionar como consegue suportar tal vida, porque não se entrega à morte. José diz então que apesar das dificuldades, da vida sofrida, não devemos nos entregar, devemos lutar, viver nem que seja um pouco a cada dia. Severino sugere ainda que não faz diferença continuar lutando ou saltar, na noite, de uma ponte, tirando a própria vida. 12° capítulo Uma mulher, da porta de onde saiu José, anuncia o nascimento de seu filho. 13° capítulo Vizinhos, amigos e duas ciganas aparecem e aproxima-se da casa do homem para ver o bebê. Dizem que tudo ao redor celebra seu nascimento: o mar, o céu, a terra, o mangue, a alfazema, etc. O nascimento de uma criança, ou seja, a vida faz tudo parecer bonito. 14° capítulo Começam a chegar pessoas trazendo diversos presentes para o recém-nascido, como caranguejos, leite, bolacha, água da bica, canário, etc. Todos eram presentes simples, devido à pobreza do povo nordestino da região. 15° capítulo Duas ciganas que vieram com os vizinhos fizeram a leitura do futuro do menino. Disseram que apesar de crescer no mangue do Capibaribe, quando adulto, já trabalhando em uma fábrica, o menino se mudaria para uma casa melhor nos mangues do Beberibe. 16° capítulo Vizinhos, amigos e pessoas que vieram com presentes falam da formosura do menino. Apesar de magro, pálido e franzino, o menino tem a aparência de homem. E isso basta, além de ser belo como o coqueiro, como um sim numa sala negativa. 17° capítulo José fala com Severino sobre a pergunta que ele havia feito: se não vale mais saltar fora da ponte e da vida e responde que nem conhece a resposta e que é difícil defender a vida só com palavras. O nascimento de uma criança respondeu por si só à pergunta, porque esse é o espetáculo da vida, mesmo quando é a explosão de uma vida severina. OBSERVAÇÃO
O vocabulário é culto, mas traz palavras regionais, como: EITO BANGÜÊ MORTE MORRIDA ou MORTE MATADA CANTAR EXCELÊNCIAS PARODIAR LADAINHA RETIRANTE MAMONA PITA CAROÁ FARDA ENGOMADA MANGUE CACIMBA
Romance
Perto do Coração Selvagem (1944)
O Lustre (1946)
A Cidade Sitiada (1949)
A Maçã no Escuro (1961)
A Paixão segundo G.H. (1964)
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres (1969)
Água Viva (1973)
A Hora da Estrela (1977)
Um Sopro de Vida (pulsações) (1978)
Conto
Alguns Contos (1952)
Laços de Família (1960)
A Legião Estrangeira (1964)
Felicidade Clandestina (1971)
A Imitação da Rosa (1973)
A Via Crucis do Corpo (1974)
Onde Estivestes de Noite (1974)
Crônica
Visão do Esplendor (1975)
Para não Esquecer (1978)
Literatura infantil
O Mistério do Coelho Pensante (1967)
A Mulher que Matou os Peixes (1968)
A Vida Íntima de Laura (1974)
Quase de Verdade (1978)
Obras póstumas
Coletâneas de contos, crônicas ou entrevistas organizadas e publicadas postumamente
A Bela e a Fera (1979) – reunião de contos inéditos escritos em épocas diferentes
A Descoberta do Mundo (1984) – seleção de crônicas publicadas em jornal entre agosto de 1967 e dezembro de 1973
Como Nasceram as Estrelas (1987) – contos infantis
Cartas Perto do Coração (2001) – cartas trocadas com Fernando Sabino
Correspondências (2002)
Aprendendo a Viver (2004) – seleção de crônicas publicadas em jornal entre agosto de 1967 e dezembro de 1973
Outros Escritos (2005) – reunião de textos de natureza diversa
Correio Feminino (2006) – reunião de textos publicados em suplementos femininos de jornais, nas décadas de 1950 e 1960
Entrevistas (2007) – seleção de entrevistas realizadas nas décadas de 1960 e 1970
Minhas Queridas (2007) – correspondências
Só para Mulheres (2008) – reunião de textos publicados em suplementos femininos de jornais, nas décadas de 1950 e 1960Versos polimétricos; Destaque para o verso redondilho maior; Mescla de rimas toantes e consoantes; Linguagem seca, elíptica e concisa; Humor negro. Morte e Vida Severina foi escrita entre 1954-55. Naquela ocasião, Maria Clara Machado, que dirigia o teatro Tablado, no Rio, pedira que João Cabral escrevesse algo sobre retirantes. O poeta escreveu, então, um grupo de poemas dramáticos, para "serem lidos em voz alta" e os dedicou a Rubem Braga e Fernando Sabino, "que tiveram a idéia deste repertório". A obra tem como subtítulo "Auto de Natal pernambucano" e tem inspiração nos autos pastoris medievais ibéricos, além de espelhar-se na cultura popular nordestina. Personagens: Severino – retirante nordestino que quer viver além dos trinta anos e por isso viaja até Recife, pois acredita que a vida lá seja melhor. Dois homens e o defunto – dois homens que Severino encontra no caminho, carregando um defunto chamado Severino Lavrador. Pessoas que cantam excelências para um defunto e um homem que faz paródia das palavras dos cantadores – Mulher na janela – mulher bem vivida que ganha a vida fazendo velórios, ladainhas, enterros, novenas etc. Trabalhador da roça (defunto) e amigos – trabalhador é enterrado enquanto amigos o homenageiam. Dois coveiros – Em Muro Alto (Recife), dois coveiros conversam sobre melhores condições de trabalho. José – mestre carpina que incentiva Severino a lutar pela vida, por mais severina que seja. Mulher – dá a entender ser a parteira do filho de José. Vizinhos, amigos e duas ciganas – todos vêm presentear o filho de José e as duas ciganas fazem a leitura do futuro do menino. Foco narrativo:Terceira pessoa. Tipo de narrador:Observador onisciente. Severino se apresenta no primeiro capítulo e nos demais ele conta toda a história. Espaço:Partida: Sertão de Pernambuco Estações: – "Irmãos das almas" "Excelências" "Mulher na janela" "Funeral do lavrador" "Conversa de coveiros" Chegada aos Mocambos do Recife: "Presépio" Tempo:Cronológico, seqüencial. Enredo: 1° capítulo Severino nasce, tenta de várias maneiras ser reconhecido como Severino, mas como em cada situação em que ele se depara há muitos Severinos, decide que será apenas Severino (que em vossa presença emigra). 2° capítulo Severino encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de "Ó irmão das almas que matei não!" e conversa com eles na tentativa de entender a causa da morte. O que o finado Severino tinha de tão importante para que quisessem matá-lo. Somente dez quadras, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. Quem o matou foi a ambição de alguém que queria mais terras e não ficará só naquela morte, pois certamente mais terras irá procurar. Como o retirante estava migrando e ia passar por Toritama, para o mesmo lugar em que os homens estavam levando o defunto, se ofereceu a ajudar e sendo assim, um deles achou melhor voltar porque não havia necessidade de três carregar o defunto. 3° capítulo Severino continua seu caminho e sabe que vai passar por muitas cidades e vilarejos. Chega até a comprar o caminho com um rosário, que tem várias contas de diferentes tamanhos, de acordo com o tipo de oração. Também acha que pode se guiar pelo leito do rio Capibaribe, acreditando ser este o melhor guia, o caminho mais certo. No entanto, em alguns trechos do caminho, o rio corta a descida e em outros, por causa da seca, não continua seu leito (pernas que não caminham). Porém, enquanto Severino tenta escolher um caminho ouve uma cantoria à distância. 4° capítulo Na casa em que o retirante chega,estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores. Cansado da viajem, o retirante pensa em interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra. Explica Severino que em toda a sua jornada ele só deparava com a morte e então vai à procura de um trabalho para sobreviver. 5° capítulo Após falar de si mesmo, Severino resolve então perguntar a uma mulher que estava na janela, como ela vivia, com que renda. Ela então explica que vive da morte, fazendo novenas, velórios, enterros, ladainhas etc. e diz a Severino que se ele soubesse rezar, serviço não iria faltar. 6° capítulo O retirante chega à Zona da Mata, que o faz pensar outra vez em interromper a viajem, pois vê que a terra é boa (doce para os pés e para a vista) e os rios têm água mais limpa. Acredita que talvez seja nessa terra que continuará sua vida. Avista então folhas de cana fina, um casebre (bangüê) velho em ruína e um bueiro de usina, mas não sabe onde estão as pessoas que ali cultivam a cana. Pensa então que com uma terra tão boa, uma água tão limpa, a plantação vai muito bem e com isso, as pessoas não precisam trabalhar tanto, podem aproveitar um pouco mais a vida, viver mais. 7° capítulo Severino assiste ao enterro de um trabalhador da roça e ouve o que os amigos que o levavam ao cemitério, lhe fazendo uma homenagem. 8° capítulo O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife porque percebe que não tem mais muita vida. No sertão, acreditava que morreria antes dos 30. Severino não almejava ser rico, o que queria mesmo, quando começou a andar (retirar), era viver um pouco mais. Porém, conforme vai caminhando, percebe que a vida é igual em qualquer lugar: na Caatinga, no Agreste e na Mata. A diferença, segundo Severino, está na terra, que é mais macia na Mata. 9° capítulo Chegando ao Recife, Severino senta para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros. Os coveiros conversam sobre os baixos salários, questionando sobre o emprego do trabalhador da cidade, que é melhor.Nas cidades, os nomes dos defuntos são escritos em letras de ouro, enquanto que nos sertões, os defuntos não passam de indigentes. Os retirantes vês para Recife e quando chegam ao mar percebem que não podem continuar. Ficam então por lá, vivendo dos siris que conseguem pegar. Sugerem até que esse tipo de gente seja jogada no rio para que o enterro seja mais fácil e mais barato. 10° capítulo Severino aproxima-se de um dos cais do Capibaribe e começa a pensar na morte, na sua própria morte e percebe que veio para o Recife para morrer. Lembra então, da conversa dos dois coveiros e por um instante deseja que sua morte seja igual, ou seja, que o rio faça seu enterro. 11° capítulo O morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio aproxima-se de Severino e este começa a lhe questionar como consegue suportar tal vida, porque não se entrega à morte. José diz então que apesar das dificuldades, da vida sofrida, não devemos nos entregar, devemos lutar, viver nem que seja um pouco a cada dia. Severino sugere ainda que não faz diferença continuar lutando ou saltar, na noite, de uma ponte, tirando a própria vida. 12° capítulo Uma mulher, da porta de onde saiu José, anuncia o nascimento de seu filho. 13° capítulo Vizinhos, amigos e duas ciganas aparecem e aproxima-se da casa do homem para ver o bebê. Dizem que tudo ao redor celebra seu nascimento: o mar, o céu, a terra, o mangue, a alfazema, etc. O nascimento de uma criança, ou seja, a vida faz tudo parecer bonito. 14° capítulo Começam a chegar pessoas trazendo diversos presentes para o recém-nascido, como caranguejos, leite, bolacha, água da bica, canário, etc. Todos eram presentes simples, devido à pobreza do povo nordestino da região. 15° capítulo Duas ciganas que vieram com os vizinhos fizeram a leitura do futuro do menino. Disseram que apesar de crescer no mangue do Capibaribe, quando adulto, já trabalhando em uma fábrica, o menino se mudaria para uma casa melhor nos mangues do Beberibe. 16° capítulo Vizinhos, amigos e pessoas que vieram com presentes falam da formosura do menino. Apesar de magro, pálido e franzino, o menino tem a aparência de homem. E isso basta, além de ser belo como o coqueiro, como um sim numa sala negativa. 17° capítulo José fala com Severino sobre a pergunta que ele havia feito: se não vale mais saltar fora da ponte e da vida e responde que nem conhece a resposta e que é difícil defender a vida só com palavras. O nascimento de uma criança respondeu por si só à pergunta, porque esse é o espetáculo da vida, mesmo quando é a explosão de uma vida severina. OBSERVAÇÃO
O vocabulário é culto, mas traz palavras regionais, como: EITO BANGÜÊ MORTE MORRIDA ou MORTE MATADA CANTAR EXCELÊNCIAS PARODIAR LADAINHA RETIRANTE MAMONA PITA CAROÁ FARDA ENGOMADA MANGUE CACIMBA
CLARISSE LISPECTOR
CLARISSE LISPECTOR
CLARISSE LISPECTOR
"Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..."
Retrato a óleo de Clarice Lispector pintado por Giorgio de Chirico, em Roma, em 1945.
Clarice na passeata contra a ditadura militar, no Rio de Janeiro, em 22 de junho de 1968
Da esq. para a dir.: Fauzi Arap, José Wilker, Glauce Rocha, Clarice Lispector e Dirce Migliaccio. Foto faz parte do livro "Clarice Fotobiografia"
1920
- Clarice Lispector nasce em Tchetchelnik, na Ucrânia, no dia 10 de dezembro, tendo recebido o nome de Haia Lispector, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Seu nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América.
Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário vitimada por uma súbita obstrução intestinal, de origem desconhecida que, depois, veio-se a saber, ter sido motivada por um adenocarcinoma de ovário irreversível. O enterro aconteceu no Cemitério Comunal Israelita, no bairro do Caju, no dia 11.
A obra de Clarice Lispector é plena de construções linguísticas próprias, reforçadas por uma estrutura sintática peculiar, capaz de,simultaneamente, encantar e envolver o leitor em um universo linguístico, poético e mítico, renovando seus conceitos de leitura.
Clarice Lispector costuma ter uma temática voltada para questões existenciais e para a história da mulher na sociedade.
Na relação masculino e feminino, a opressão e explor A história das sociedades até agora
existentes constituiria uma história da subordinação das mulheres pelos homens em base aos sistemas gênero-sexo que culturalmente produziram. Donde não se tratar de pura
diferença, mas sim de diferença hierarquizada em vista de poder.
Clarice Lispector sempre teve a tendência em mostrar essa opressão e exploração do sexo masculino para com o feminino,mostrando isso em suas obras.
Por isso que Clarice Lispector, como grande escritora e contista, inova na linguagem e suas perspectivas, utilizando a subjetividade e a
epifania nos seus questionamentos do mundo externo e interno, para que o leitor possa tomar consciência do mundo da personagem.
As obras de Lispector geralmente focam a epifania, traduzida em momentos de revelação, em que determinado personagem se defronta com a verdade.
A leitura desta autora acaba por levar o leitor a entender a tramacomo uma transfiguração, pois os personagens geralmente são levados ao patamar das divindades, já que a autora os coloca sempre em estado de epifania.
A epifania pode ser entendida num sentido místico-religioso e num sentido literário.
Em termos literários, epifania significa o relato de uma experiência aparentemente simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação. É a percepção de uma realidade nova e atordoante, quando os objetos mais simples e as situações mais cotidianas produzem uma iluminação súbita na consciência das personagens. Ainda mais especificamente em literatura, epifania é uma obra ou parte de uma obra onde se narra o
episódio da revelação .
O conto Amor foi escrito numa época em que havia uma crise de moralismo rígido no país, na década de 50. Na década de 60 para 70, a liberação do estado de espírito anterior foi grande, com as experiências com drogas, a revolução sexual e os protestos juvenis, além, é claro, do endurecimento do governo e o controle de tudo e de todos. Com isso,muitos jovens e artistas se rebelavam e surgiram nesse contexto muitos movimentos civis a favor das mulheres, dos negros e dos homossexuais.
Nos anos 60, houve muitos conflitos. A ditadura militar calava os artistas e não deixava que suas obras fossem expostas, pois se acreditava que seriam contra o governo. Nessa época, ocorreram conflitos internos, inquietações e crises de identidades na sociedade, que buscavam uma alternativa para sair daquela situação. Muitos autores dramatizavam suas experiências em letras de músicas ou em narrativas de suas produções literárias. E Amor, de Clarice Lispector, transcreve muito bem essa busca por mostrar o mundo como ele é.
Em “Amor”, Clarice usa de metáforas para mostrar as agonias da dona de casa Ana. Ela critica, subjetivamente, o papel da mulher na sociedade, mostrando as angústias da tomada de consciência desta mulher e do seu papel na sociedade.
No conto Amor, que será o foco deste estudo, ocorre a epifania em diversos momentos, nas conotações da viscosidade dos ovos que Ana leva para casa, e que vai tomando corpo em todas as cenas descritas,fazendo comparações com a vida, cotidiano, amor, etc. A epifania neste conto é marcante,como a transformação a qual passava a personagem Ana, uma simples doméstica até se deparar com um deficiente visual.
Clarice Lispector enuncia essa junção entre amor e saber tanto em um conto de 1964 quanto em seu romance de 1969 –Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. No conto Os desastres de Sofia, publicado em uma coletânea de contos intitulado A Legião Estrangeira,a história é contada pela própria Sofia adulta que revisita as memórias de sua préadolescência. Esse eu-narrador, ressignificando seu passado, retoma seus nove anos de idade, idade essa em que teve uma história um tanto peculiar com um professor. A história se inicia com a descrição desse professor:O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos.
Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro em cima do nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. (LISPECTOR, 1999:
Num sentido mais amplo, pretende-se apreender a grande força da imaginação de Clarice Lispector, aliada ao seu poder de manipulação linguística, às vezes irônica, cujo processo de criação reflete a vida social, os costumes, os medos e o comportamento de seus personagens na época, mostrando a importância dessa contista para a literatura brasileira.
COMO VAMOS FAZER ANÁLISE DE UM CONTO,VEREMOS PRIMEIRO O QUE É CONTO?
O TEXTO NARRATIVO E A ESTRUTURA DO CONTO
O conto é um gênero muito antigo, sobretudo o conto infantil e o popular. Todavia, o conto literário, como hoje conhecemos, é um tanto recente, e esse formato novo se inicia a partir do século XIX, o qual fora conhecido como o século de ouro do conto. Seuprincipal objetivo é prender o leitor e ainda surpreendê-lo no final da obra.
Para tanto, é preciso construir uma forma que possibilite provocar a impressão total ou o efeito único. A narrativa deverá ser,primeiramente, breve, pois a brevidade facilita a manutenção do interesse; ao mesmo tempo, terá que apresentar coerência e
unidade entre as partes, do princípio ao fim, desenvolvendo-se no sentido de uma tensão crescente que se resolve no desfecho. (MELLO,
Amor
Clarice Lispector
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.
Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.
O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.
A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.
Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.
Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.
Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.
Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.
Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.
Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros.
Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.
Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.
Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
— O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago. — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela. — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.
Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.
Clarice Lispector: tudo sobre a autora e sua obra em "Biografias".
ANÁLISE
No conto "Amor", de Clarice Lispector, a epifania acontece a uma dona-de-casa,que ao voltar de bonde para casa, com as compras do dia, vê um cego mascando chicles: a visão do cego é o que desencadeia o processo epifânico.
Roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro ."Ana quer dominar seu destino para que nada interfira na sua rotina de esposa e mãe, embora admita sentir certa inquietação,às vezes, como algo abafado que vem à tona, à revelia de quem o sente. Seu lar, o marido, os filhos, as tarefas cotidianas representam para ela uma defesa contra a ameaça de desordem, de
instabilidade, que outro tipo de vida poderia trazer - mas renunciando a esse tipo de vida, renunciar também à paixão, ao sentir profundamente: "O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável."
Então, Ana vê o cego no ponto do bonde e é como se levasse um choque. Há uma ruptura da sua tranquilidade anterior, e isso é mostrado na narrativa por meio de um desconcerto geral: sintático (o parágrafo é composto com muitos travessões, que rompem a estrutura das sentenças); no cenário (o bonde dá uma arrancada súbita e suas compras caem no chão); e de comportamento (Ana grita, o condutor dá ordem de parada sem saber porquê,os passageiros se assustam).
Aqui tem início o processo epifânico, que atinge seu ápice no Jardim Botânico, paraonde Ana se dirige após passar de seu ponto de descida do bonde. Lá se dá conta de um novo universo, mais intenso. O jardim contribui de forma definitiva para essa impressão, Ana observa as árvores, as frutas, as flores e as plantas de maneira diferente, nova: vê as frutas apodrecendo e sente uma mistura de fascínio
e nojo. Percebe que viver é esgotar a vida, é também morrer; da mesma forma, sentir demais leva ao enjôo, à axaustão da sensação.
Na maioria dos contos de Clarice Lispector, o núcleo da narrativa é um momento de tensão conflitiva. No conto "Amor", o conflito que se estabelece é entre o que o cego representa("o perigo de viver", ter que sentir "piedade de leão") e a vida aparentemente organizada e tranquila da personagem. Drama da Linguagem, "essa mesma crise arma-a [Ana] de uma percepção visual penetrante, que lhe dá a conhecer as coisas em sua nudez, revelando-lhe a existência nelas represada, como força impulsiva e caótica, e desligando-a da realidade cotidiana, do âmbito das relações familiares. Momento privilegiado sob o aspecto do descortínio da existência, maldição e fatalidade sob o aspecto da ruptura, esse instante assinala o clímax do desenvolvimento da narrativa" .
MANUEL BANDEIRA
Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho nasceu em Recife (PE) em 1886. Depois de morar no Rio, em Santos e em São Paulo, a família regressou ao Recife, onde permaneceu por mais algum tempo. Com 17 anos, Manuel Bandeira foi para São Paulo, a fim de ingressar na Escola Politécnica, mas já no ano seguinte (1904) ficou tuberculoso. Abandonou os estudos, passando temporadas em várias outras cidades, de clima mais propício ao seu estado de saúde. Em 1913 partiu para a Suíça em busca de tratamento. Regressou no ano seguinte, pois estava começando a Primeira Guerra Mundial. Em 1917 publicou seu primeiro livro: A Cinza das Horas.
O ritmo dissoluto, cujo título já indica tratar-se de um livro integrado ao espírito modernista, mostra a opção definitiva de Bandeira pelo corriqueiro, pelo cotidiano, como matéria poética.
Libertinagem apresenta alguns poemas fundamentais para se entender a poesia de Bandeira: "Vou-me embora pra Pasárgada", "Poética", "Evocação do Recife", entre eles. No mesmo livro começam a aparecer assuntos que se tornariam freqüentes. Entre eles, o amor, a lembrança de vultos familiares e da infância, o folclore.
"Estrela da Tarde" atesta a inquietação do poeta, sempre procurando novos recursos formais para expressar sua visão de mundo:
Apesar de simpatizar com o concretismo, Bandeira advertiu: "Vamos devagar. Não aderi à poesia concreta". Sua produção, nesse sentido, resume-se a oito poemas.
São características da obra de Bandeira: emprego do verso livre, mas não com exclusividade. Mesmo em suas últimas obras Bandeira recorre a formas fixas, entre elas o soneto; até escreveu uma cantiga medieval: uma demonstração a mais de sua liberdade de expressão... É bom lembrar ainda que verso livre não é sinônimo de ausência de ritmo; aproveitamento da fala coloquial; poesia simples, direta; aproveitamento de fatos do cotidiano; sentimento de humildade diante dos fatos; humor; e visão de amor quase sempre tangenciando o erotismo, o amor físico.
Ele próprio afirmou: "... a poesia está em tudo - tanto nos amores quanto nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas". Bandeira não se ocupou de temas de natureza social ou de reflexão filosófica. Sua visão de mundo decorria da descoberta da poesia nos fatos corriqueiros, do dia-a-dia, ou nas experiências de vida do poeta.
Quando se relacionam os poemas de Bandeira à sua biografia, é necessário fugir do simplismo de achar que cada poema surgiu de um dado biográfico. Primeiro, porque essa relação só pode ser feita se ancorada em informações fornecidas pelo poeta - como é o caso de "Pneumotórax" ou mesmo de "Vou-me embora pra Pasárgada". Segundo, porque a partir do cotidiano o poeta recria poeticamente o mundo, dando à sua obra dimensão universal, ou seja, o cotidiano adquire significação simbólica e passa a ser aplicável a qualquer homem.
Obra
Poesia: A Cinza das Horas (1917); Carnaval (1919); O Ritmo Dissoluto (1924); Libertinagem (1930); Estrela da Manhã (1936); Lira dos cinquent'anos (1940); Belo, Belo (1948); Mafuá do Malungo (1954); Estrela da Tarde (1963); Estrela da vida inteira, incluindo todas essas obras, é de 1966 e foi lançada para comemorar os 80 anos do poeta.
Prosa: Crônicas da Província do Brasil (1937); Itinerário de Pasárgada (1954); Andorinha, Andorinha (1966).
Manuel Bandeira foi um autor que escreveu relativamente pouco, "pois era um poeta extremamente meticuloso, que trabalhava muito a utilização da palavra, e buscava incessantemente a expressão certa, empregando-a da maneira mais correta possível".
Sem Manuel Bandeira provavelmente não haveria no Brasil poesia modernista, ou, então, ela não seria o que foi. Por ser um homem receptivo a tudo o que era novo, não se filiando a nenhuma escola, moda ou estilo, Bandeira era tido como exemplo de inovação e técnica e dono de uma escrita apurada, começando por fazer versos livres antes mesmo do Movimento Modernista de 22. Com Carnaval (1919), seu segundo livro, o poeta acabou antecipando determinados conceitos do Modernismo; embora preso a reminiscências simbolistas e parnasianas, também impregnadas da velha herança do lirismo português, Bandeira mereceu mais tarde o cognome de São João Batista do Modernismo, que lhe fora dado por Mário de Andrade.
Bandeira foi um dos mais populares entre os poetas brasileiros, artistas, pensadores e até mesmo músicos. Certa vez, Carlos Drummond de Andrade afirmou que "Manuel era o poeta nacional".
Morte e Vida Severina
Gênese e história da obra
Morte e Vida Severina foi escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que não pôde levar ao palco a peça. Publicado inicialmente no livro Duas Águas (1956), o texto foi finalmente montado pelo grupo do TUCA (Teatro da Universidade Católica de São Paulo), dirigido por Roberto Freire e Silnei Siqueira, com música de Chico Buarque de Holanda, e obteve sucesso mundial numa turnê em 1966. A partir daquele ano, passou a integrar o volume Poemas em Voz Alta, que reúne a parcela mais comunicativa da obra do "poeta engenheiro".
As duas águas de João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu sua obra em duas "águas", duas facetas como as do telhado de uma casa: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil consumo; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, de comunicação com um público mais amplo e menos cultivado. Nesta última se incluem os seus "poemas em voz alta", que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. O poema dramático Morte e Vida Severina com certeza pertence à segunda ''água", pois, embora tenha algumas características fundamentais do poeta cerebral que é João Cabral como o rigor formal da metrificação variada e aproximativa e das rimas toantes e o "falar com coisas", a utilização de imagens contundentes e concretas foi escrito com o intuito de alcançar um público maior e recorre a diversas fontes da poesia popular na sua elaboração.
Um Auto de Natal Pernambucano - influências
O subtítulo do livro revela seu débito aos autos sacramentais da tradição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, assim como uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica, os romances, João Cabral reelabora parodicamente, nas cenas do presépio final a poesia do folclore pernambucano. Outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30, com sua preocupação realista de observação, crítica e denúncia social que podemos encontrar em autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queirós e, principalmente, Graciliano Ramos. O enredo: da morte à vida severina A inversão do sintagma "vida e morte" no título da peça demonstra o percurso do retirante Severino: parte da morte no Sertão para encontrar a vida em Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando a Recife, foz do rio, o mesmo se repete. Desesperançado, pensa em cometer suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de uma criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são "severinas", adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os "severinos" quase anônimos do Sertão nordestino. Estrutura geral Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que
O subtítulo do livro revela seu débito aos autos sacramentais da tradição ibérica medieval, dos quais herda o teor poético e alegórico, assim como uma tendência à justaposição das cenas e à sátira dos costumes. Além de se inspirar na antiga poesia narrativa ibérica, os romances, João Cabral reelabora parodicamente, nas cenas do presépio final a poesia do folclore pernambucano. Outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30, com sua preocupação realista de observação, crítica e denúncia social que podemos encontrar em autores como José Américo de Almeida, Rachel de Queirós e, principalmente, Graciliano Ramos. O enredo: da morte à vida severina A inversão do sintagma "vida e morte" no título da peça demonstra o percurso do retirante Severino: parte da morte no Sertão para encontrar a vida em Recife. Severino acompanha o rio Capibaribe e só vai encontrando pobreza e morte pelo caminho. Chegando a Recife, foz do rio, o mesmo se repete. Desesperançado, pensa em cometer suicídio atirando-se ao rio, quando testemunha o nascimento de uma criança que devolve a esperança à vida severina. Tanto morte quanto vida são "severinas", adjetivo neológico formado a partir do nome próprio, pois ambas se aplicam a todos os "severinos" quase anônimos do Sertão nordestino. Estrutura geral Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que
As cenas da morte
1. (Monólogo) - Severino se apresenta. Tem dificuldades para se diferenciar dos outros "severinos", pois são "iguais em tudo na vida". Este Severino representa a todos.
2. (Diálogo) - Conversa com dois homens carregando um defunto numa rede.
3. (Monólogo) - Teme se perder porque o rio Capibaribe secou com o verão.
4. (Diálogo) - Ouve cantarem excelências para um defunto dentro de uma casa, enquanto um homem, do lado de fora, vai ironizando as palavras dos cantadores.
5. (Monólogo) - Cansado da viagem e desiludido, pensa interrompê-la por algum tempo e procurar trabalho ali onde se encontra.
6. (Diálogo) - Dirige-se a uma mulher na janela em busca de trabalho, mas esta, rezadeira, diz que por lá não há serviço para lavradores como ele, só para quem lida profissionalmente com a morte.
7. (Monólogo) - Chega, maravilhado, à Zona da Mata, região de vegetação mais rica, que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
8. (Diálogo) - Assiste ao enterro de um lavrador e ouve os amigos do morto dizerem, com ironia, que agora sim este tinha a sua terra, a terra da cova rasa.
9. (Monólogo) - Cercado pela morte, resolve apressar os passos para chegar logo a Recife, na esperança de uma mudança para melhor.
10. (Diálogo) - Chegando a Recife, senta-se para descansar ao pé do muro de um cemitério e ouve, sem ser notado, a conversa pessimista de dois coveiros.
11. (Monólogo) - Desiludido, aproxima-se de um dos cais do Capibaribe e pensa em se atirar ao rio para acabar de vez com seu sofrimento.
12. (Diálogo) - Conversa com José, mestre carpina, morador de um dos mocambos à margem do rio, e lhe pergunta se não é melhor se atirar logo ao rio e à morte.
O presépio: encontro com a vida
13. Uma mulher, da porta da casa de José, anuncia-lhe que seu filho nascera.
14. Os vizinhos, os amigos, duas ciganas, etc. cantam em louvor ao menino.
15. Falam as pessoas que trazem presentes de todos os tipos e de todos os cantos de Pernambuco para o recém-nascido.
16. Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos. Uma prevê uma vida enlameada de pescador pobre, outra de operário um pouco menos pobre.
17. Todos cantam a beleza do recém-nascido. Beleza da novidade, da vida que se multiplica e renova, incansável.
18. O carpina responde à pergunta que Severino fizera, reafirmando o valor da vida, mesmo que seja "severina".
Resumo:
Severino é um retirante: ele é como muitos outros e que está partindo para o litoral, fugindo da seca, da morte _ _ . A vida na Capital parece mais atraente, mais "vida", menos "severina". Em suas andanças, entretanto, Severino se depara a todo momento não com a vida, mas sim com o que já conhece como coisa vulgar: a morte e o desespero que a cerca _ .
Em seu primeiro encontro com ela, o retirante topa com dois homens carregando um defunto até sua última morada. Durante uma conversa, descobre que o pobre coitado havia sido assassinado e que o motivo fora ter querido expandir um pouco suas terras, que praticamente não eram produtíveis _ _ . O retirante segue sua viagem e percebe que na região onde se encontra, nem o rio Capibaribe - seco no verão - consegue cumprir o seu papel. Severino sente medo de não conseguir chegar ao seu destino.
Escuta, então, uma cantoria e, aproximando-se, vê que está sendo encomendado um defunto. Pela primeira vez, Severino pensa em interromper sua "descida" para o litoral e procurar trabalho naquela vila. Ao dirigir-se a uma mulher, descobre que tudo que sabe fazer não serve ali, e o único trabalho existente e lucrativo é o que ajuda na morte: médico, rezadeira, farmacêutico, coveiro _ _ . E o lucro é certo nessas profissões, pois não faltam fregueses, uma vez que ali a morte também é coisa vulgar _ .
Se não há como trabalhar, mais uma vez Severino retoma seu rumo e chega à Zona da Mata, onde novamente pensa em interromper sua viagem e se fixar naquela terra branda e macia, tão diferente da solo do Sertão. Mais do que isso: começou a acreditar que não via ninguém porque a vida ali deveria ser tão boa, que todos estavam de folga e que ninguém deveria conhecer a morte em vida, a vida severina _ . Ilusão de quem está à procura do paraíso: logo Severino assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério _ . Severino se dá conta que ali as privações são as mesmas que ele conhece bem e que também a única parte que pode ser sua daquela terra é uma cova para sepultura, nada mais _ _ .
O retirante resolve então apressar o passo para chegar logo ao Recife. Severino senta-se para descansar ao pé de um muro alto e ouve uma conversa _ . É mais uma vez a morte rondando, são dois coveiros que lhe dão a má notícia: toda a gente que vai do Sertão até ali procurando morrer de velhice, vai na verdade é seguindo o próprio enterro, pois logo que chegam, são os cemitérios que os esperam _ _ _ .
Severino nunca quis muito da vida, mas está desiludido: esperava encontrar trabalho, trabalho duro mas agora - desespero! - já se imagina um defunto como aqueles que os coveiros descreviam, faltava apenas cumprir seu destino de retirante _ _ _ .
Nesse momento, aproxima-se de Severino seu José, mestre carpina, morador de um dos mocambos que havia entre o cais e a água do rio. O retirante, desesperançado, revela ao mestre carpina sua intenção de suicídio, de se jogar naquele rio e ter uma mortalha "macia e líquida". Se José tenta convencer Severino que ainda vale a pena lutar pela vida, mesmo que seja vida severina _ . Mas Severino não vê mais diferença entre vida e morte e lança a pergunta: "que diferença faria/ se em vez de continuar/tomasse melhor saída:/a de saltar, numa noite,/ fora da ponte e da vida?"
Da porta de onde havia saído o mestre carpina, surge uma mulher, que grita uma notícia. Um filho nascera, o filho de seu José _ ! Chegam vizinhos, amigos, pessoas trazendo presentes ao recém-nascido _ _ . Vêm também duas ciganas, que fazem a previsão do futuro do menino: ele crescerá aprendendo com os bichos e no futuro trabalhará numa fábrica, lambuzado de graxa e, quem sabe, poderá morar num lugar um pouco melhor _ .
Severino assiste ao movimento, ao clima de euforia com a vinda do menino _ _ . O carpina se aproxima novamente do retirante e reata a conversa que estavam levando. Diz que não sabe a resposta da pergunta feita, mas, melhor que palavras, o nascimento da criança podia ser uma resposta: a vida vale a pena ser defendida.
Charles Chaplin - O Homem do Povo
por Leonardo Alexander

“Era preciso que um poeta brasileiro, [...]
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo - inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.”
No poema Canto ao Homem do Povo, publicado no livro A Rosa do Povo (1945), o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade celebra e homenageia o artista que deu representação a uma classe de indivíduos sem voz e visibilidade. Charles Spencer Chaplin nasceu em 16 de abril de 1889, em Walworth, distrito de Londres. A infância e a adolescência do artista foram marcadas pela falta de recursos, traumas, constantes dificuldades financeiras e por uma vida familiar conturbada. O jovem Charles chegou a passar fome e viveu, por alguns anos, em casas de caridade e asilos. Aos 13 anos, teve que abandonar por completo os estudos. O pai do garoto era alcóolotra e ausente, a mãe sofria de problemas mentais, tendo sido internada em um hospício, em 1898. Sem poder contar com os cuidados da família, Charles teve que aprender a sobreviver
sozinho e trabalhar desde muito cedo.

O pequeno Charles Chaplin.
O menino Charles cresceu nos bastidores do teatro, já que seus pais eram artistas de vaudeville. A primeira apresentação de Chaplin ocorreu aos cinco anos de idade e, aos nove, ele já tinha consciência de sua vocação para as artes cênicas. Depois de fazer parte de uma trupe de dançarinos, o adolescente Chaplin passou a integrar uma companhia de teatro londrina, pela qual ele estrelou algumas peças que lhe renderam destaque e elogios. Após deixar a companhia, Charles passou a se dedicar ao vaudeville. Em 1908, o jovem ator assinou um contrato com o poderoso produtor Fred Karno e passou a fazer parte de sua companhia. Ganhando seu maior salario até então, Chaplin se apresentou em algumas cidades da Europa e fez uma bem-sucedida temporada nos Estados Unidos.


Chaplin dirigiu e roteirizou grande parte dos filmes nos quais atuou. Sua primeira aventura por trás das câmeras se deu em 1914, com Caught in the Rain, um dos maiores sucessos da Keystone até então. Aos 26 anos, Chaplin assinou com a Mutual Film Corporation e se tornou um dos homens mais bem pagos do mundo. Segundo Chaplin, o período em que esteve sob o contrato da Mutual foi um dos mais felizes de sua carreira. Ele realizou quatro filmes para o estúdio, dentre eles O Imigrante (1917), uma importante crônica social.

O Garoto (1921)
O nome de Chaplin se tornou rapidamente conhecido no mundo inteiro e sua popularidade era sem limites. Como Chaplin não conseguia acompanhar as exigências de produção da Mutual, o contrato não foi renovado. Chaplin, que por anos se viu obrigado a produzir filmes em grande escala, queria priorizar a qualidade e não a quantidade. Em 1919, em um projeto ousado, ele uniu forças com grandes nomes da indústria cinematográfica, como Douglas Fairbanks e Mary Pickford, e criou a United Artists. Chaplin passou a produzir e financiar seus próprios filmes e a fazer a distribuição pela nova companhia, procedimento que permitia finalmente ao artista ter integral controle sobre suas obras.

Luzes da Cidade (1931)
Chaplin realizou mais de 70 filmes em sua carreira, dentre eles, as obras-primas: O Garoto (1921), A Corrida do Ouro (1925), O Circo (1928), Luzes da Cidade (1931), Tempos Modernos (1936), O Grande Ditador (1940) e Luzes da Ribalta (1952). Além de produtor, diretor, ator e roteirista, Chaplin também era compositor. É dele, "Smile"(Sorria), o célebre tema musical do filme Tempos Modernos, além dos temas de A Condessa de Hong Kong (1967) e de Luzes da Ribalta.

Charles Chaplin na cerimônia do Oscar em 1972.
O atraso em 20 anos da estreia de Luzes da Ribalta em território americano fez com que a trilha sonora do filme fosse elegível ao Oscar de 1973. Foi assim que Charles Chaplin ganhou seu inesperado terceiro Oscar, após ter levado um prêmio honorário pela carreira na edição anterior do show. Ele já tinha levado um Oscar honorário em 1929 pelo seu trabalho em O Circo. Nos últimos anos de sua vida, Chaplin compôs trilhas sonoras para grande parte de seus filmes mudos anteriores a 1927 e relançou alguns deles no cinema posteriormente. Foi o caso de
O Garoto, relançado em 1971.
Smile – Tempos Modernos
Tema de A Condessa de Hong Kong
Tema de Luzes da Ribalta
O Grande Ditador foi um marco na carreira de Charles Chaplin. O primeiro filme “falante” (não confundir com “sonoro”) de Chaplin foi filmado e lançando no início da Segunda Guerra Mundial, apenas um ano antes dos Estados Unidos entrarem oficialmente no conflito. Ao criticar abertamente o nazismo e Adolf Hitler, através da paródia, Chaplin fez uma das maiores e mais ousadas declarações políticas que o cinema já conheceu. A contundente denúncia ao poder alienante do fascismo, à ditadura e à perseguição cruel das minorias faz desta obra um monumento histórico, político e artístico atemporal. O monólogo final do filme, um belo discurso humanista, é um dos momentos máximos da carreira de Chaplin. Não é difícil compreender por que o artista, que, por muito tempo recusou a fala em seus filmes, se viu compelido pela confusão do mundo em 1939, a dar voz a um verdadeiro clamor por justiça e paz.
Discurso Final –
O Grande Ditador
Após a guerra, durante o macarthismo, Charles Chaplin foi acusado de atividades antiamericanas e de ser comunista. Chaplin, cuja orientação política era sobretudo de esquerda, foi colocado na lista negra de Hollywood. O artista foi objeto de inúmeras investigações comandadas pelo FBI. Em 1952, enquanto fazia a divulgação de Luzes da Ribalta na Inglaterra, seu visto de entrada e moradia americano foi revogado e ele não pôde retornar aos Estados Unidos. Desde então, até a sua morte, por causas naturais, no Natal de 1977, Chaplin viveu em Vevey, cidade da Suíça. Sobre o exílio forçado, ele comentou: "Desde o fim da última guerra mundial, eu tenho sido alvo de mentiras e propagandas por poderosos grupos reacionários que, por sua influência e com a ajuda da imprensa marrom, criaram um ambiente doentio no qual indivíduos de mente liberal possam ser apontados e perseguidos. Nestas condições, acho que é praticamente impossível continuar meu trabalho do ramo do cinema e, portanto, me desfiz de minha residência nos Estados Unidos".

O Grande Ditador (1940)
Em 1992, foi lançada uma eficiente cinebiografia do ator, dirigida por Richard Attenborough (ganhador do Oscar em 1982 por Gandhi) e protagonizada por Robert Downey Jr., indicado ao Oscar de Melhor Ator. Charles Chaplin é, provavelmente, o artista mais completo que o cinema já viu. Sua versatilidade e seu brilhantismo podem ser comprovados tanto em seus grandes clássicos, como em seus primeiros curtas, muitos deles redescobertos e restaurados recentemente. Este gênio da sétima arte tinha uma habilidade única de nos fazer rir e chorar. Chaplin influenciou e continua inspirando artistas do mundo inteiro. Não é por acaso que nosso Drummond dedicou ao saudoso mestre alguns de seus belos versos:
“[...]És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.
Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,
aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano
apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos.
[...]
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.”

Tempos Modernos (1936)
ANÁLISE DE FILMES;
Tempos modernos [filme] Enviado sab, 27/03/2010 - 19:38 por Thiago Henrique... Tempos modernos
Tempos modernos (1936), dirigido por Charlie Chaplin, (o avanço técnico e tecnológico, as relações sociais, a comunicação, a instrumentalidade), mas vistas de uma perspectiva histórico-social diferente. Ainda que trate de um tema sério, o filme de Chaplin apresenta cenas engraçadas; mas mais do que nos fazer rir por diversão, o riso pode funcionar como uma arma poderosa quando se mostra uma expressão do drama que assistimos — e que vivemos atualmente. Podemos rir de situações engraçadas vivenciadas por Carlitos, mas não podemos nos esquecer de que a época atual é a continuação da época representada no filme, continuação esta que de certo modo é ainda mais grave do que a retratada na fábrica e nas ruas da cidade em Tempos modernos. Vale lembrar que o filme foi lançado em 1936, o que nos remete a um acontecimento importante ocorrido nos Estados Unidos e que devemos ter em mente para compreender melhor a história: a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque; focaliza-se, portanto, a vida urbana dos EUA na década de 30. Vejamos, agora, alguns pontos interessantes do filme, mas sem entrar em muitas especulações (é mais útil apontarmos caminhos para que cada um siga do que apontar apenas um, que acaba por ser compreendido erroneamente como “o único possível”; fica, pois, o convite para que interpretem as situações listadas abaixo, aceitando ou negando o que sobre elas se dirá). A respeito das primeiras cenas, que se passam dentro da fábrica, é bem nítida a crítica satírica feita sobre o sistema capitalista e a industrialização (ou, em duas palavras, sobre o “capitalismo industrial”). É mostrada a vida na sociedade industrial, caracterizada pela produção em massa, pela linha de montagem e pela especialização do trabalho. Tais pontos, vale lembrar, referem-se ao Fordismo, modo de produção capitalista baseado em inovações organizacionais e técnicas que se articulam a fim de se garantir uma maior racionalização e objetividade da produção; o trabalho é simplificado, fragmentando, e cada operário é responsável apenas por uma pequena parte do todo (algo bem diferente de tempos mais remotos, em que os artesãos, por exemplo, responsabilizavam-se pela produção total de um produto, do início ao fim, realizando todas as etapas do processo). Isso é bem nítido nas cenas iniciais do filme, quando Carlitos, na linha de montagem, é responsável por uma única coisa: apertar parafusos. Algo interessante de se notar é que o sistema fordista de produção requer menos tempo para a formação e o treinamento do trabalhador, algo útil na produção capitalista por não exigir pessoas com maior qualificação para fazer o trabalho. Assim, operários também são, de certa maneira, produzidos “em massa”: uma simples pessoa do povo, sem grande formação educacional, pode rapidamente ser transformada em um trabalhador para a linha de montagem. A charge acima é significativa se levarmos em conta o filme. Nele, não sabemos o que a fábrica produz. Ainda que possamos vê-la de dentro, seu maquinário, seus operários, não sabemos o que ali se produz; não são apenas os trabalhadores (tanto os da charge acima quanto os do filme) que desconhecem o que estão ajudando a fazer, pois nós também não temos esse conhecimento. Outro ponto importante é a produção acelerada (ainda mais quando o diretor ordena que a produção seja acelerada). É válido, sobre isso, notarmos os efeitos que essa rapidez causa nos trabalhadores, que mal dão conta de seguir o ritmo imposto. Note-se o uso da expressão “ritmo imposto”, pois os operários não têm o direito de ditar o ritmo do processo; na verdade, é a máquina (sob as ordens do capitalista) que impõe o ritmo, não os operários que as manuseiam. Nesse ponto podemos nos lembrar de um conceito importante, que é o de “fetichização”, ou seja, uma espécie de “culto à máquina”, admirada pelo capitalista por ser o aparelho tecnológico que lhe permite a criação de novos produtos e, consequentemente, o lucro. E se por um lado o maquinário tem extrema importância nesse processo, por outro lado o operário não tem grande valor, torna-se um artigo descartável — afinal, se não estiver fazendo bem sua parte, com facilidade pode ser substituído por outro (vale lembrar: mão de obra sem qualificação para esse tipo de trabalho não é algo difícil de se encontrar). Nesse sentido, nota-se tanto a mecanização da fábrica quanto a mecanização do trabalhador: este é alienado, está robotizado, agindo maquinalmente, fazendo incessantemente os mesmos movimentos. E essa situação, claro, acaba por ter resultados negativos, o que é ilustrado no filme pela crise nervosa de Carlitos, que “surta” depois do desgaste que sofreu. Ele, e os outros trabalhadores, são vítimas de uma situação na qual acabam por se tornar impessoais (são números, não pessoas), tendo sua vida prejudicada, tornada fria, dura, automatizada, irrefletida, acelerada, instantânea, pois a rapidez é essencial para a existência desse “homem moderno” — que não foi feito para viver sob a pressão desse ritmo incessante. O operário torna-se, nesse meio, uma coisa; é negado, engolido pelo poder do capital, e até mesmo perseguido se tentar qualquer espécie de revolta. É o que nos mostram as cenas posteriores, nas quais vemos o início de um protesto por parte de Carlitos. Mas esse protesto não é calculado, organizado: ocorre por acaso, quando Carlitos levanta uma bandeira vermelha (simbologia que nos liga ao Socialismo) e a multidão passa a acompanhá-lo, talvez realizando aquilo que queria realizar (o protesto) mas que nunca o havia feito por não ter um líder que iniciasse uma revolta. O curioso é que esse protesto também acaba sendo feito de forma automática, e os operários, maquinalmente, seguem cegamente quem lhes levante a bandeira. Durante todo o filme, há cenas muito interessantes que nos instigam a pensar a respeito. Vejamos algumas delas. Já na primeira cena temos uma questão interessante; nela, enquanto aparecem os créditos do filme, vemos ao fundo um relógio. Ora, um relógio nos faz lembrar de tempo, e se tivermos em mente a célebre frase moderna “tempo é dinheiro”, poderemos compreender que essa cena inicial é o prenúncio daquilo que será mostrado depois: a fábrica em ritmo frenético; a aceleração da produção, ordenada pelo diretor; a falta de tempo dos trabalhadores para descansar por um instante (ponto que fica claro se nos lembrarmos de quando Carlitos para descansar e acaba interferindo no processo todo, chegando até a ser necessário parar a linha de montagem). Outra cena emblemática é a que se segue ao close up do relógio: nela, vemos um rebanho de ovelhas, uma série de animais que totalizam uma massa sem identidade. O que torna a cena interessante é a mescla feita para uma cena posterior, quando então podemos ver uma multidão de homens e ficamos com a forte sugestão de serem, também, uma massa sem identidade, tratada como um grupo de animais: os operários, como já dissemos, perdem sua humanidade, sua individualidade, a partir do momento em que são inseridos nessa massa sem face. Como resultado, eles se tornam alienados, isto é, passam a viver sem conhecer ou compreender a realidade social e política que os cerca, deixando, por isso, que sejam influenciados e condicionado a agirem como agem, mas sem pensarem sobre a maneira como atuam. O que também podemos notar durante o filme é a clara distinção entre ricos e pobres. Na fábrica, a imagem do burguês em seu terno choca-se com as cenas que nos apresentam os trabalhadores em seus trajes sujos. Essa desigualdade ficará visível em outros momentos do filme, e ficará clara a configuração de uma situação em que a exploração do operário, do trabalhador, do proletariado, é que permite todo conforto e todo divertimento da burguesia: o lucro gerado pelo trabalho das massas desfavorecidas move o mundo de riquezas da classe mais abastada. Mais um ponto interessante é o que diz respeito ao filme em si, que é mudo. Mas não é totalmente mudo: se, por um lado, os operários não têm voz, por outro lado o burguês é o único que a tem. Isso é significativo, pois nos aponta a situação da sociedade capitalista, na qual aqueles que detêm o poder, o capital, podem expressar o que pensam, podem se fazer ouvir, mas a massa de trabalhadores não; a ela resta a obediência silenciosa. Mas podemos também notar que o rádio tem “voz”: ouvimos as palavras do locutor e, se quisermos, podemos ouvir uma espécie de eco dessa situação, qual seja, o rádio, os meios de comunicação, como uma extensão do sistema capitalista, isto é, a parte midiática de seu poder. Isso é bastante visível atualmente, já que os meios de comunicação monopolizam a informação e acabamos por consumir apenas aquilo que julgam ser notícia válida; não somos nós que escolhemos saber o que aconteceu, pois essa escolha é feita por nós, que estamos no fim dessa cadeia (que, para sermos poéticos, nos prende). Afinal, as informações de que dispomos podem passar, sem que suspeitemos, por uma série de “lavagens”, de modo que recebemos notícias “impuras” e, geralmente, tendenciosas. Em outra cena célebre, Carlitos é engolido pela maquinaria. Ainda que engraçada, ela nos aponta uma situação preocupante: Carlitos, o operário, torna-se momentaneamente parte da máquina — seja literalmente, dentro das engrenagens, seja metaforicamente, dentro do sistema de produção em que ele, como mão de obra, é uma parte, uma peça do todo. Isso nos leva ao conceito de “reificação”, ou seja, um processo a partir do qual a atividade produtiva (e os trabalhadores que dela fazem parte), as relações sociais e a subjetividade humana se identificam com a condição do inanimado; o homem é transformado em coisa (e tratado como coisa), tendo seus sentimentos ignorados pelo sistema, tornando-se embrutecido, inumano; em suma, é aceito como um objeto. Outra cena pilhérica é a do “revolucionário” aparelho automático de alimentação. Podemos rir com a imagem de Carlitos sofrendo com a máquina a entupir-lhe com comida, mas isso traz à tona algo sério: a tecnologização das coisas banais do cotidiano. Os homens, sob a vontade de facilitarem suas vidas (talvez querendo facilitá-la demais), criam aparelhos que realizem atos comuns. Hoje em dia temos escovas de dente elétricas, facas elétricas, lâmpadas que são acesas sem a necessidade de tocarmos em um interruptor... Por mais que algumas invenções de fato facilitem nosso viver (o automóvel, a lâmpada, o computador), é importante não fazermos delas mestras de nossas vidas; isso ocorrendo, cada vez mais seremos servos das máquinas, estaremos sujeitados até chegar um ponto em que não saberemos mais viver sem elas (se ficarmos uma semana acampados em algum lugar afastado da cidade, viveremos na pele essa situação e sentiremos a falta que algumas invenções fazem). Nesse processo de desenvolvimento acelerado, poderemos compreender que tal situação transparece como um grande limitador das relações humanas: o tempo é cada vez mais gasto com máquinas, e nós, ainda que não sejamos Carlitos, ficamos a cada dia mais “maquinizados” e impessoais ao fazermos de nós mesmos pessoas dependentes dos instrumentos tecnológicos. Voltando à cena, o que a torna engraçada é o fato de que, nesse caso, a máquina não melhora a situação para a qual foi concebida; incontrolável, ele acaba por atrapalhar e fazer de uma ação simples (comer) uma situação maquinal, artificial e, de certo modo, perigosa. Mas esse aparelho automático de alimentação pode nos fazer pensar em algo mais: se tivermos em mente que ela foi concebida para que os trabalhadores se alimentassem mais rapidamente, assim sobrando mais tempo para o trabalho e para o lucro do capitalista, poderemos trazer tal situação para nossos dias e perceber que é exatamente esta a lógica das redes de fast-food, onde podemos comer (mal, mas sem perder tempo) e voltar ao trabalho. Em outra ocasião, o capitalista em sua sala é visto tomando um comprimido. Não podemos saber do que se trata, mas podemos fazer uma ligação com o mundo atual e lembrar de doenças como a úlcera gástrica, a dor de cabeça e o stress, problemas de saúde eminentemente “modernos”. Alguns estudos científicos já relacionaram o stress, por exemplo, como efeito de uma vida acelerada, em que somos abocanhados por prazos, tempo curto, pouco dinheiro, problemas e preocupações diárias que, aos poucos, nos levam ao célebre “estado de nervos”. A propósito, não é outra a situação a que chega Carlitos quando “surta”. Não é, pois, apenas o capitalista que sofre com esses problemas: é sobretudo o trabalhador a vítima dessas complicações da vida moderna. E Carlitos, em crise nervosa, comporta-se de modo instigante ao apresentar atitudes anti-hierárquicas. Lembremo-nos, por exemplo, que ele joga óleo no patrão. E, ainda para especular, não poderíamos dizer que essa atitude não é uma forma de deixar implícito que todos os personagens dessa situação (Carlitos, os outros operários, o capitalista...) não passam de engrenagens dessa gigantesca máquina capitalista, e que precisam ser “lubrificados” para “funcionarem” melhor? Outra interessante cena é aquela em que Carlitos acende um cigarro no banheiro. O que temos, quase que imediatamente, é a aparição do capitalista numa tela gigante, mostrando-se onipresente e colocando em dúvida a validade e a existência, nessa sociedade, de direitos como a liberdade e a privacidade. Se nos lembrarmos da atualidade, saberemos bem que ter privacidade não é algo tão fácil quando estamos em muitos momentos sendo filmados por câmeras em uma situação que, se por um lado, tem o intuito de nos garantir maior proteção, por outro lado nos faz suspeitos em potencial. Longe de ser uma situação agradável, é algo que nos rouba muito de nossa intimidade, além de ser uma condição um tanto irônica quando lemos as famigeradas placas de “sorria, você está sendo filmado!” — sorrir? Mas qual é a graça? No geral, o que temos em Tempos modernos é um constante movimento de máquinas, de homens e também do Estado (representado pela polícia, por exemplo), buscando a ordem em uma sociedade feita de contradições — o que resulta em uma situação de constantes e inevitáveis conflitos. O filme, ainda que retrate os altos e baixos de Carlitos, não nos deixa ilesos porque podemos reconhecer na sociedade apresentada pelo filme a nossa própria sociedade. Em outras palavras, e como disse Villegas Lôpez, “em Tempos modernos não temos mais o drama de Carlitos, mas Carlitos vivendo nosso drama”. E por ser nosso esse drama que se evidencia em cada cena do filme, não podemos deixar de trazer questões que as imagens nos incitam a fazer. Uma delas, e talvez a mais preocupante, é: se tomarmos por base o mundo atual, o que Tempos modernos nos evidencia seria uma sátira ou uma espécie de profecia? E ainda podemos questionar: todo esse avanço tecnológico de fato atinge o objetivo de melhorar a vida de todos, da sociedade em geral, ou apenas a de alguns? Há, obviamente, outras muitas perguntas que poderíamos fazer. Fica o convite para fazermos esse levantamento e tentarmos (por que não?) responder algumas das interrogações. Para finalizar, dois poemas. O primeiro, escrito por Carlos Drummond de Andrade, diz respeito a Carlitos, o célebre personagem criado e personificado por Charlie Chaplin e que nos conduziu nesse passeio chamado “Tempos modernos”. O segundo, de Fernando Pessoa (sob o heterônimo de Álvaro de Campos), a cantar o novo mundo das máquinas que se estende, insaciável, desde o advento da Revolução Industrial. Canto ao homem do povo Carlos Drummond de Andrade I Era preciso que um poeta brasileiro, não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa, girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos, era preciso que esse pequeno cantor teimoso, de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia, era preciso que um antigo rapaz de vinte anos, preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo, viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema. Para dizer-te como os brasileiros te amam e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece com qualquer gente do mundo — inclusive os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos, vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia, e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua. Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece, e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua, e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas, só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram. Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço, eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum, nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins. Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo, que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida, são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música, visitemos no escuro as imagens — e te descobriram e salvaram-se. Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração, os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos, os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos. E falam as flores que tanto amas quando pisadas, falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões, os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas, cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam. II A noite banha tua roupa. Mal a disfarças no colete mosqueado, no gelado peitilho de baile, de um impossível baile sem orquídeas. És condenado ao negro. Tuas calças confundem-se com a treva. Teus sapatos inchados, no escuro do beco, são cogumelos noturnos. A quase cartola, sol negro, cobre tudo isto, sem raios. Assim, noturno cidadão de uma república enlutada, surges a nossos olhos pessimistas, que te inspecionam e meditam: Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado, o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde a um mundo muito velho. E a lua pousa em teu rosto. Branco, de morte caiado, que sepulcros evoca mas que hastes submarinas e álgidas e espelhos e lírios que o tirano decepou, e faces amortalhadas em farinha. O bigode negro cresce em ti como um aviso e logo se interrompe. É negro, curto, espesso. O rosto branco, de lunar matéria, face cortada em lençol, risco na parede, caderno de infância, apenas imagem entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe, sozinha, experiente, calada vem a boca sorrir, aurora, para todos. E já não sentimos a noite, e a morte nos evita, e diminuímos como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos ao país secreto onde dormem os meninos. Já não é o escritório e mil fichas, nem a garagem, a universidade, o alarme, é realmente a rua abolida, lojas repletas, e vamos contigo arrebentar vidraças, e vamos jogar o guarda no chão, e na pessoa humana vamos redescobrir aquele lugar — cuidado! — que atrai os pontapés: sentenças de uma justiça não oficial. III Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome dos que não foram chamados à ceia celeste ou industrial. Há ossos, há pudins de gelatina e cereja e chocolate e nuvens nas dobras do teu casaco. Estão guardados para uma criança ou um cão. Pois bem conheces a importância da comida, o gosto da carne, o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata, e sabes a arte sutil de transformar em macarrão o humilde cordão de teus sapatos. Mais uma vez jantaste: a vida é boa. Cabe um cigarro: e o tiras da lata de sardinhas. Não há muitos jantares no mundo, já sabias, e os mais belos frangos são protegidos em pratos chineses por vidros espessos. Há sempre o vidro, e não se quebra, há o aço, o amianto, a lei, há milícias inteiras protegendo o frango, e há uma fome que vem do Canadá, um vento, uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida que mal decifras o cristal infrangível. Entre a mão e a fome, os valos da lei, as léguas. Então te transformas tu mesmo no grande frango assado que flutua sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro e chama, comida geral, que tarda. IV O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas. No festim solitário teus dons se aguçam. És espiritual e dançarino e fluido, mas ninguém virá aqui saber como amas com fervor de diamante e delicadeza de alva, como, por tua mão a cabana se faz lua. Mundo de neve e sal, de gramofones roucos urrando longe o gozo de que não participas. Mundo fechado, que aprisiona as amadas e todo o desejo, na noite, de comunicação. Teu palácio se esvai, lambe-te o sono, ninguém te quis, todos possuem, tudo buscaste dar, não te tomaram. Então encaminhas no gelo e rondas o grito. Mas não tens gula de festa, nem orgulho nem ferida nem raiva nem malícia. És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa correndo, os copos voam, os corpos saltam rápido, as amadas te procuram na noite... e não te veem, tu pequeno, tu simples, tu qualquer. Ser tão sozinho em meio a tantos ombros, andar aos mil num corpo só, franzino, e ter braços enormes sobre as casas, ter um pé em Guerrero e outro no Texas, falar assim a chinês a maranhense, a russo, a negro: ser um só, de todos, sem palavra, sem filtro, sem opala: há uma cidade em ti, que não sabemos. V Uma cega te ama. Os olhos abrem-se. Não, não te ama. Um rico, em álcool, é teu amigo e lúcido repele tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos o que há de água, de sopro e de inocência no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos que cultuamos, falsos: flores pardas, anjos desleais, cofres redondos, arquejos poéticos acadêmicos; convenções do branco, azul e roxo; maquinismos, telegramas em série, e fábricas e fábricas e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras. Ficaste apenas um operário comandado pela voz colérica do megafone. És parafuso, gesto, esgar. Recolho teus pedaços: ainda vibram, lagarto mutilado. Colo teus pedaços. Unidade estranha é a tua, em mundo assim pulverizado. E nós, que a cada passo nos cobrimos e nos despimos e nos mascaramos, mal retemos em ti o mesmo homem, aprendiz bombeiro caixeiro doceiro emigrante forçado maquinista noivo patinador soldado músico peregrino artista de circo marquês marinheiro carregador de piano apenas sempre entretanto tu mesmo, o que não está de acordo e é meigo, o incapaz de propriedade, o pé errante, a estrada fugindo, o amigo que desejaríamos reter na chuva, no espelho, na memória e todavia perdemos VI Já não penso em ti. Penso no ofício a que te entregas. Estranho relojoeiro cheiras a peça desmontada: as molas unem-se, o tempo anda. És vidraceiro. Varres a rua. Não importa que o desejo de partir te roa; e a esquina faça de ti outro homem; e a lógica te afaste de seus frios privilégios. Há o trabalho em ti, mas caprichoso, mas benigno, e dele surgem artes não burguesas, produtos de ar e lágrimas, indumentos que nos dão asa ou pétalas, e trens e navios sem aço, onde os amigos fazendo roda viajam pelo tempo, livros se animam, quadros se conversam, e tudo libertado se resolve numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol. O ofício é o ofício que assim te põe no meio de nós todos, vagabundo entre dois horários; mão sabida no bater, no cortar, no fiar, no rebocar, o pé insiste em levar-te pelo mundo, a mão pega a ferramenta: é uma navalha, e ao compasso de Brahms fazes a barba neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos. Foi bom que te calasses. Meditavas na sombra das chaves, das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame, juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas, anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta de mil, os braços cruzados de mil. E nada dizias. E um bolo, um engulho formando-se. E as palavras subindo. Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo. Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos. Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo, crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores, ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e de esperança. Ode triunfal Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica Tenho febre e escrevo. Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno! Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria! Em fúria fora e dentro de mim, Por todos os meus nervos dissecados fora, Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto! Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, De vos ouvir demasiadamente de perto, E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso De expressão de todas as minhas sensações, Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas! Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical - Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força - Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, Porque o presente é todo o passado e todo o futuro E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes, Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando, Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma. Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! Ser completo como uma máquina! Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo! Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento A todos os perfumes de óleos e calores e carvões Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável! Fraternidade com todas as dinâmicas! Promíscua fúria de ser parte-agente Do rodar férreo e cosmopolita Dos comboios estrénuos, Da faina transportadora-de-cargas dos navios, Do giro lúbrico e lento dos guindastes, Do tumulto disciplinado das fábricas, E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão! Horas europeias, produtoras, entaladas Entre maquinismos e afazeres úteis! Grandes cidades paradas nos cafés, Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas Onde se cristalizam e se precipitam Os rumores e os gestos do Útil E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo! Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares! Novos entusiasmos de estatura do Momento! Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas, Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos! Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific! Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis, Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots, E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram Pela minh'alma dentro! Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule! Tudo o que passa, tudo o que pára às montras! Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos; Membros evidentes de clubes aristocráticos; Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete De algibeira a algibeira! Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa! Presença demasiadamente acentuada das cocotes Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?) Das burguesinhas, mãe e filha geralmente, Que andam na rua com um fim qualquer; A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos; E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra E afinal tem alma lá dentro! (Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!) A maravilhosa beleza das corrupções políticas, Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos, Agressões políticas nas ruas, E de vez em quando o cometa dum regicídio Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana! Notícias desmentidas dos jornais, Artigos políticos insinceramente sinceros, Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes - Duas colunas deles passando para a segunda página! O cheiro fresco a tinta de tipografia! Os cartazes postos há pouco, molhados! Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca! Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, Como eu vos amo de todas as maneiras, Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!) E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar! Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós! Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura! Química agrícola, e o comércio quase uma ciência! Ó mostruários dos caixeiros-viajantes, Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria, Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios! Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos! Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar! Olá grandes armazéns com várias secções! Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem! Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem! Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos! Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos! Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos! Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera. Amo-vos carnivoramente. Pervertidamente e enroscando a minha vista Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis, Ó coisas todas modernas, Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima Do sistema imediato do Universo! Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus! Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks, Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes - Na minha mente turbulenta e encandescida Possuo-vos como a uma mulher bela, Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama, Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima. Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas! Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios! Eh-lá-hô recomposições ministeriais! Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos, Orçamentos falsificados! (Um orçamento é tão natural como uma árvore E um parlamento tão belo como uma borboleta). Eh-lá o interesse por tudo na vida, Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras Até à noite ponte misteriosa entre os astros E o mar antigo e solene, lavando as costas E sendo misericordiosamente o mesmo Que era quando Platão era realmente Platão Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro, E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele. Eu podia morrer triturado por um motor Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída. Atirem-me para dentro das fornalhas! Metam-me debaixo dos comboios! Espanquem-me a bordo de navios! Masoquismo através de maquinismos! Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho! Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby, Morder entre dentes o teu cap de duas cores! (Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta! Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!) Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais! Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas. E ser levado da rua cheio de sangue Sem ninguém saber quem eu sou! Ó tramways, funiculares, metropolitanos, Roçai-vos por mim até ao espasmo! Hilla! hilla! hilla-hô! Dai-me gargalhadas em plena cara, Ó automóveis apinhados de pândegos e de..., Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas, Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria! Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto! Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro, As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam, Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto E os gestos que faz quando ninguém pode ver! Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva, Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos Em crispações absurdas em pleno meio das turbas Nas ruas cheias de encontrões! Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma, Que emprega palavrões como palavras usuais, Cujos filhos roubam às portas das mercearias E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada. A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão. Maravilhosamente gente humana que vive como os cães Que está abaixo de todos os sistemas morais, Para quem nenhuma religião foi feita, Nenhuma arte criada, Nenhuma política destinada para eles! Como eu vos amo a todos, porque sois assim, Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus, Inatingíveis por todos os progressos, Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida! (Na nora do quintal da minha casa O burro anda à roda, anda à roda, E o mistério do mundo é do tamanho disto. Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente. A luz do sol abafa o silêncio das esferas E havemos todos de morrer, Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo, Pinheirais onde a minha infância era outra coisa Do que eu sou hoje...) Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante! Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus. E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios De todas as partes do mundo, De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios, Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas. Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado! Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores! Eh-lá grandes desastres de comboios! Eh-lá desabamentos de galerias de minas! Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos! Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá, Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim, A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa, E outro Sol no novo Horizonte! Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento, O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro, O Momento estridentemente ruidoso e mecânico, O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais. Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar, Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos, Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar, Engenhos brocas, máquinas rotativas! Eia! eia! eia! Eia electricidade, nervos doentes da Matéria! Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente! Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez! Eia todo o passado dentro do presente! Eia todo o futuro já dentro de nós! eia! Eia! eia! eia! Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita! Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô! Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me. Engatam-me em todos os comboios. Içam-me em todos os cais. Giro dentro das hélices de todos os navios. Eia! eia-hô! eia! Eia! sou o calor mecânico e a electricidade! Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa! Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia! Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá! Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá! Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o! Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z! Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!