Edição 185 - Janeiro 2013
As novas caras de Fernando Pessoa
Um grupo de jovens
pesquisadores europeus e latino-americanos lança em Portugal vários
inéditos do autor lisboeta. São poemas, contos, argumentos para cinema e
ensaios sobre política
por Ricardo Viel
Ilustração Indio San
Um dos retratos mais famosos de Fernando Pessoa. O escritor se interessava por astrologia e ocultismo
“I know not what tomorrow will bring”, escreveu Fernando Pessoa no dia
29 de novembro de 1935, horas antes de sucumbir a uma complicação
hepática, provavelmente causada pelo excessivo consumo de álcool. Aos 47
anos e com apenas um livro publicado em português (Mensagem), o poeta
fazia constar em seu derradeiro manuscrito, na cama de um hospital
lisboeta, a dúvida inquietante: não sabia o que o amanhã traria.
Não sabia, mas desconfiava que o futuro lhe reservaria o reconhecimento
não alcançado em vida. Já em 1912, numa séria de ensaios sobre poesia,
Pessoa previu a iminente aparição de um “supra Camões”, alguém que
“descolaria para segundo plano” a figura do autor de Os Lusíadas. Está
claro que falava de si. E foi pensando nessa posteridade que guardou com
tanto cuidado os milhares de papéis que escritos ao longo de quatro
décadas. Deixou duas arcas que continham cerca de 30 mil folhas, na
grande maioria, inéditas. Havia ainda textos publicados em revistas e
jornais, além de cartas e outros itens particulares.
“Pessoa disse, certa vez, que o reconhecimento seria a memória futura.
Claramente tinha a noção de sua genialidade”, aponta Vasco Silva,
diretor do selo Babel, que nos últimos anos vem trazendo à tona muito
texto desconhecido do autor. “Cerca de 30% do espólio segue inédito. Por
diversas vezes, se pensou que o essencial da obra de Pessoa estivesse
publicado, mas não está. Há material para décadas. Ele foi um
trabalhador infatigável, e tratá-lo como poeta não é de todo correto.
Afinal, escreveu até mais em prosa do que em poesia”, diz o publisher
que, com orgulho, se apresenta como o editor que mais publicou Pessoa.
*O poeta no colo da mãe, em 1888, e aos 7 anos, em 1895. Ele era trilíngue - dominava português, o inglês e o francês
No início dos anos 40, a Ática, dona do selo coordenado por Vasco
Silva, foi a primeira casa a lançar versos do literato após sua morte.
Ao longo das décadas seguintes, deu a conhecer a grandeza de heterônimos
como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares.
Deste último editou, em 1982, o Livro do Desassossego. A obra, de prosa,
demonstrou que, ao contrário do que se dizia, ainda havia muita riqueza
de Pessoa a ser descoberta. Trata-se da mesma sensação que se tem hoje
com as recentes publicações de inéditos. São poemas, ensaios sobre
tradições portuguesas e sobre política, contos, correspondências
amorosas e até argumentos de filmes. Um tesouro que as editoras
brasileiras ainda não adquiriram.
Grafia incompreensível
Causa estranheza que, 77 anos depois da morte de um dos maiores poetas
do século 20, continue existindo tanto material desconhecido. Uma das
explicações possíveis é que a pesquisa dos documentos legados por Pessoa
nunca foi fácil. Primeiro, porque os papéis estiveram espalhados
durante décadas e quase inacessíveis à consulta. Depois, porque Pessoa
anotava em qualquer lugar – muitas vezes uma mesma página trazia
extratos de textos diferentes –, e compreender sua grafia,
principalmente a do final da vida, é tarefa quase de detetive. Das cerca
de 30 mil folhas encontradas nas duas arcas, a grande maioria se
constitui de manuscritos, embora haja alguns textos datilografados.
Não bastasse, o autor deixou centenas de projetos inconclusos, o que
também dificulta a tarefa de ordenar o material. Escreveu sobre assuntos
absolutamente diversos (filosofia, astrologia, ocultismo) e em três
idiomas, já que nasceu em Lisboa, mas aos seis anos se mudou com a
família para a África do Sul, onde foi alfabetizado em inglês. O
francês, aprendeu quando adulto.
Hoje, quase todo o seu espólio está digitalizado e já não é necessário
pagar direitos autorais de nenhuma obra aos herdeiros. Daí terem surgido
recentemente tantas publicações com inéditos de Pessoa. Um dos
responsáveis, e talvez o maior deles, por tal advento é Jerônimo
Pizarro, colombiano de 35 anos que dedicou os últimos dez a estudar o
legado do autor, com a ajuda de bolsas científicas. Em suas pesquisas
nos papéis deixados pelo poeta, acabou por conhecer outros
investigadores, jovens como ele – e, na maioria, estrangeiros –, que vêm
desenvolvendo estudos semelhantes. Graças ao suporte do selo Babel, o
colombiano passou a coordenar o grupo e as publicações dos novos livros,
sejam os que trazem textos do próprio Pessoa, sejam os que discorrem
sobre ele e seus heterônimos. Por sinal, foi devido a Alberto Caeiro que
Pizarro travou os primeiros contatos com o escritor português, ainda na
Colômbia, há 15 anos. “Lembro-me até hoje. Estava no gramado da
universidade e tinha nas mãos um livro de poesia do Caeiro.”
“O Jerônimo revelou-se essencial para juntar pessoas que são
completamente diferentes e que, se não fosse por ele, provavelmente
nunca trabalhariam juntas”, diz Patricio Ferrari, doutor em linguística
de 37 anos. O argentino editou em 2010, ao lado de Pizarro, o livro
Provérbios Portugueses, compilação inédita de 300 máximas que Pessoa
reuniu e traduziu para o inglês entre 1913 e 1914.
*À esquerda, o autor com 27 anos. À direita, em outro retrato famoso, caminhando por Lisboa
Em fevereiro de 2003, após uma longa viagem à Índia, Ferrari – que morou por uma década nos Estados Unidos –fazia mestrado em literatura comparada na França quando, aconselhado pelo irmão, leu o poema Tabacaria, de Álvaro de Campos. Sentiu uma empatia tão profunda que, meses depois, desembarcou em Lisboa para continuar seus estudos, agora tendo como foco a poesia trilíngue de Pessoa. Caminho parecido seguiu o filósofo Antonio Cardiello, também de 37 anos. Em 1999, por recomendação de um amigo, o italiano de Padova leu o Livro do Desassossego. “Comecei a folhear uma versão traduzida numa livraria. Como não sabia quem era Pessoa, achei que estivesse vivo. Foi um amor cego. Não conseguia entender como um autor desconhecido internacionalmente podia ter escrito prosa tão linda e tão fecunda em termos filosóficos.”
À semelhança dos outros dois pesquisadores, Cardiello chegou a Lisboa
atraído pelo poeta e sem falar português. “Em 2006, conheci o Pizarro,
que me levou à Biblioteca Nacional, onde está guardado o espólio. Até
então, me parecia que Pessoa não passava de uma invenção, talvez do
[Jorge Luis] Borges. Só tive certeza de que realmente existiu quando vi
aquele material, com a caligrafia dele.” Cardiello e o colombiano
editaram, em 2012, a antologia Prosa de Álvaro de Campos e desnudaram
uma faceta inesperada do heterônimo que se dizia engenheiro.
Companheirismo
Além da equipe ligada a Pizarro e do selo Babel, há outros investigadores descobrindo novas caras do poeta e outras editoras publicando materiais inéditos. Em 2012, a Assírio Alvim, por exemplo, lançou uma coletânea de contos de Pessoa e um livro com as cartas de amor trocadas entre ele e a namorada Ofélia. Não é casual, aliás, que sejam pesquisadores jovens e em sua maioria estrangeiros que estejam na vanguarda dos estudos pessoanos. Como se viu, para fazer um trabalho de qualidade a respeito do literato, é necessário debruçar-se sobre os milhares de papéis deixados por ele, tarefa que requer tempo e disciplina. Boa parte dos estrangeiros que chegou a Lisboa na década passada com o intuito de analisar o escritor tinha bolsas acadêmicas e podia se dedicar exclusivamente à pesquisa. “Curiosamente, não há vaidade entre nós. Pelo contrário, existe muito companheirismo. Um ajuda o outro, até mesmo a decifrar a caligrafia de Pessoa”, garante o espanhol Pablo Javier Pérez López, 29 anos, que descobriu “o poeta filósofo” numa visita a Portugal. Ele publicou recentemente na Espanha um livro sobre a filosofia na obra do lisboeta (Poesía, Ontología y Tragedia en Fernando Pessoa).
Essa união de cérebros num projeto coletivo era algo até então raro nos
estudos do autor português. Havia muita competição e desconfiança entre
os investigadores, e cada um guardava suas descobertas como se fosse um
segredo. “Quando se diz que cada pessoano quer o poeta só para si é
verdade. Mas nossa geração procura ficar fora disso”, afirma Cardiello.
Sob a ótica do italiano, a chave para estudar e editar Pessoa é ser
humilde e não buscar sentenças conclusivas. “Todos nós corremos o risco
de assumir uma posição definitiva em relação à obra e aos pensamentos
dele, o que seria uma tolice. Pessoa nunca foi definitivo.” “Sê plural
como o universo!”, escreveu certa vez o autor, dando a pista de que não
se deve buscar a unidade em sua obra e, sim, tratar de entendê-la como
uma colcha de fragmentos.
Não à toa, o trabalho de editar o literato sempre se mostrou complexo e
bastante subjetivo. Maior prova disso são as várias versões do Livro do
Desassossego, diferentes inclusive em número de páginas. Às vezes, nem
mesmo Pessoa sabia como classificar as próprias criações. Nos congressos
sobre ele, os pesquisadores frequentemente citam um documento do
espólio. Trata-se de um manuscrito em que o poeta anotou: “Álvaro de
Campos ou Livro do Desassossego ou outra coisa qualquer”. Editar é, de
certo modo, também criar um novo Pessoa.
Um dia especial
O fato de jovens estrangeiros estarem atualmente na vanguarda dos estudos sobre o escritor causa certa tensão entre acadêmicos e especialistas portugueses. Uma das críticas, quase sempre feita na surdina, é de que os novos pesquisadores inflam desnecessariamente a bibliografia do autor ao publicar textos menores. Mas também há espaço para elogios: “O trabalho desse grupo é muito importante por abrir novas possibilidades de investigação acerca de Pessoa”, avalia Manuel Portela, professor da Universidade de Coimbra e coordenador de um projeto de reedição virtual e coletiva do Livro do Desassossego.
*Das esq. para a dir., Patricio Ferrari, Jerónimo Pizarro e Antonio Cardiello. Os três são responsavéis por muitas das novas descobertas sobre Fernando Pessoa
Entre as empreitadas que o grupo de Pizarro levou adiante, destacam-se a
digitalização e a catalogação da biblioteca pessoal do poeta, que se
encontra na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa. A tarefa é importante por
dois motivos. Primeiro, porque, ao analisar minuciosamente a biblioteca,
consegue-se decifrar o que o literato estava lendo enquanto escrevia
determinados textos. Ou melhor: pode-se avaliar a influência de certos
autores em sua obra. O segundo motivo deriva da peculiaridade de o
escritor fazer muitas notas marginais em seus livros. Por isso, ao
folheá-los, existe a chance de descobrir preciosidades. Foi o que
aconteceu numa tarde de 2008, quando Cardiello se encontrava sozinho na
Casa Fernando Pessoa, escarafunchando o livro Pioneer Humanists, de John
M. Robertson. Na última página, se deparou com umas anotações. “Gosto
do céu porque não creio que elle seja infinito/ Que pode ter comigo o
que não começa nem acaba?”, diziam as primeiras linhas de uma poesia sem
título de Alberto Caeiro. “Vi que se tratava de um poema completo,
acabado, mas imaginei que o Jerônimo já o conhecia. Quando ele voltou do
almoço e leu os versos, percebemos que estávamos diante de algo
inédito. Foi um dia muito especial”, recorda o italiano.
Depois de anos em Portugal, a legião estrangeira de pesquisadores
começa se separar. Pérez Lopez regressou à Espanha. Pizarro voltou a
Bogotá, onde é professor catedrático de literatura. Ferrari obteve uma
bolsa de pós-doutorado e passará seu tempo entre Lisboa, Rhode Island e
Estocolmo. Já Cardiello sonha em ir para o Brasil. “A situação na Europa
está muito difícil. Aqui não acontece mais nada. O único país que pode
seguir os passos de Portugal na tarefa de divulgar Fernando Pessoa é o
Brasil.” O grupo se distancia geograficamente, mas tem claro que sua
missão não terminou. “Ainda desconhecemos muito do que o Pessoa
conhecia”, resume Pérez Lopez.
Ricardo Viel é jornalista.